Fernando Villavicencio, morto a tiro; corpos pendurados em pontes; decapitações; pessoas queimadas vivas: história de um ex-paraíso

CNN Portugal , MJC
10 jan, 19:11
Candidato a Presidente do Equador Fernando Villavicencio (Associated Press)

Gangues e geografia: os dois fatores que mudaram o Equador. Que o tornaram brutal. Onde se mata um candidato presidencial sob proteção policial. Onde se mata quatro vezes mais do que antes. "Este é o momento dos corajosos"

9 de janeiro de 2023: um grupo armado entra com "bombas" na televisão pública do Equador, o presidente equatoriano decreta um estado de "conflito armado interno". Não é um acontecimento isolado, é um estado de pânico continuado. Que tem um contexto, contexto esse que a CNN Portugal contou a 10 de agosto de 2023 e que convém contar de novo agora para se perceber como um país inteiro fica subitamente em pânico - e sim, "este é o momento dos corajosos"

 

"Aqui pagamos pela democracia com as nossas vidas", disse Fernando Villavicencio há cinco anos, durante um comício. Nem ele sabia como essas palavras eram acertadas. Esta quarta-feira, Villavicencio, candidato às próximas eleições presidenciais, foi baleado ao deixar o comício na capital do Equador, Quito.

O seu assassínio não é um incidente isolado. No mês passado, o presidente da cidade de Manta foi morto a tiro, enquanto em fevereiro foi assassinado um candidato a presidente da cidade de Puerto López; também já se viram corpos pendurados em pontes e líderes de gangues publicaram vídeos nos quais ameaçam matar políticos a menos que eles cumpram as suas ordens - estes são apenas alguns dos incidentes violentos que têm dominado as notícias no país. 

Em 2018, a taxa de homicídios foi de 5,8 por 100 mil habitantes. Numa sondagem realizada em 2020 pela Gallup, a maioria da população admitiu que não se sentia segura a andar na rua à noite. Em 2022, a taxa de homicídios do Equador mais do quadruplicou. 

Presidente da Câmara de Manta, Equador, Agustin Intriago, foi morto em julho (AP)

Como é que o Equador, um país que até recentemente era considerado um oásis seguro para turistas e moradores locais, se tornou uma nação onde políticos eleitos democraticamente são mortos a tiro?

A resposta, segundo Vanessa Buschschlüter, editora para assuntos da América Latina da BBC Online, é: gangues e geografia.

O Equador está espremido entre a Colômbia e o Peru, os dois maiores produtores de cocaína do mundo. A produção de cocaína atingiu recentemente um recorde, de acordo com o Relatório Global das Nações Unidas sobre Cocaína 2023. A Colômbia e o Peru, onde se cultiva a folha de coca - matéria-prima para a fabricação da cocaína -, estão no centro desse comércio ilegal que se espalha por quase todo o globo.

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Como a corrupção e a guerra de gangues transformaram o Equador

Ao mesmo tempo que a produção aumenta, também aumentam as apreensões da droga feitas pela polícia em todo o mundo. A polícia da Colômbia recebeu formação e apoio dos EUA e está há décadas a tentar conter o fluxo de cocaína. Mas, por outro lado, os gangues também se tornaram mais internacionais e adotaram novas estratégias para escapar ao controlo. Após a desmobilização do grupo rebelde Farc da Colômbia - outrora um dos principais intervenientes no comércio de cocaína - surgiram novos atores. Cartéis de drogas mexicanos e grupos criminosos dos Balcãs conquistaram o seu lugar na América do Sul e no comércio com a Europa e os Estados Unidos, introduzindo novas rotas - que colocam, cada vez mais, o Equador como um país de trânsito para os carregamentos de droga.

A frágil fronteira com a Colômbia, as suas boas infraestruturas e os seus grandes portos na costa do Pacífico - como Guayaquil - tornaram o Equador geograficamente conveniente para esses gangues.

As forças de segurança do Equador também tinham pouca experiência em lidar com cartéis poderosos, o que significa que não estavam preparadas para o surgimento de criminosos fortemente armados.

Assassínios acontecem com frequências nas ruas do Equador (AP)

Portanto, não demorou muito até que os principais responsáveis pelo tráfico internacional se infiltrassem nos grupos locais, que até então se dedicavam a crimes menores. Muitas dessas novas alianças nasceram dentro das prisões do Equador. Centenas de presos foram mortos em lutas nas prisões superlotadas do Equador nos últimos anos. Alguns dos incidentes mais mortais aconteceram na prisão de El Litoral, em Guayaquil. Os esforços para acabar com a violência, transferindo prisioneiros para diferentes estabelecimentos, parecem apenas ter espalhado o problema por todo o país.

Mais de 400 reclusos foram mortos – muitos queimados vivos ou decapitados – desde fevereiro de 2021 até abril deste ano. No mês passado, 136 guardas foram mantidos como reféns por reclusos que organizaram motins simultâneos em prisões de todo o país.

A partir das prisões, a onda de violência e brutalidade espalhou-se para as várias cidades do Equador. Através de telemóveis levados ilegalmente para as prisões, os líderes dos gangues continuam a dirigir ações criminosas do lado de fora e a ordenar o assassínio daqueles que se põe no seu caminho. Poucos estão dispostos a enfrentá-los. Fernando Villavicencio foi um deles.

Polícias tentam conter a violência na prisão de  Guayaquil, no Equador (AP)

Villavicencio estava decidido a combater o tráfico e a corrupção e a violência a ele associadas, de forma a fazer com que o Equador deixasse de ser um "estado-narco". Uma semana antes de morrer foi ameaçado por membros de Los Choneros, um gangue que tem o nome da cidade de Chone, no oeste do Equador. Los Choneros tem ligações com o cartel de Sinaloa, cujo ex-líder, Joaquín "El Chapo" Guzmán, está preso nos Estados Unidos.

Mesmo depois de ter sido ameaçado, Villavicencio, que tinha 59 anos, manteve-se fiel ao slogan da sua campanha: "É o momento dos corajosos". “Eles [os gangues] disseram que me iriam derrubar, mas não tenho medo deles”, disse o candidato num vídeo publicado na internet logo após ser ameaçado. Villavicencio recebeu proteção policial, mas continuou em campanha. Momentos antes de morrer, apertava as mãos dos eleitores.

Pouco depois de seu assassínio, apareceu um vídeo no qual homens mascarados admitiram o crime e ameaçaram outro candidato presidencial. Dizem que não pertencem a Los Choneros mas a um outro gangue que se autodenomina Los Lobos, que tem ligações com outra poderosa organização criminosa mexicana, o Cartel de Nova Geração de Jalisco.

Outro vídeo apareceu horas depois e no qual homens que diziam ser Los Lobos negavam ter participado no assassínio. "Não tapamos o rosto (...). O vídeo em que homens mascarados com espingardas fingem ser membros da nossa organização é totalmente falso."

Entretanto, esta quinta-feira de tarde foram detidos seis suspeitos do crime que, segundo a polícia, são colombianos, informa a agência Efe. Um sétimo suspeito, que foi atingido no momento do homicídio pelos seguranças de Villavicencio, acabou por morrer.

Embora a polícia ainda não tenha revelado quem está por trás do assassínio de Fernando Villavicencio, o facto de um candidato presidencial poder ser morto sob proteção policial durante um evento público na capital vai certamente contribuir para que os equatorianos se sintam ainda mais inseguros e que evitem até participar nas ações de campanha. 

“Em termos eleitorais, este ano é o mais violento de nossa história”, disse Arianna Tanca, cientista política equatoriana, ao New York Times. “Acho que o que vai mudar é a forma como concebemos a política. A partir de agora ser político torna-se uma profissão de alto risco”, afirmou ainda.

“O que testemunhámos foi como um filme de terror. Não tenho palavras para o que está a acontecer no país. Acabaram de matar a democracia”, disse Galo Valencia, sobrinho do candidato, que estava no local quando tudo aconteceu. "Que insegurança vivemos… Se um homem que lutou mais de 20 anos e que tinha probabilidade de vencer as eleições foi silenciado... É assim que se ganham eleições?"

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