«Parece-me difícil o Nottingham contratar jogadores ao Benfica neste momento»

5 jun, 23:54
Pedro Ferreira, ex-chief scout do Benfica

Entrevista ao Maisfutebol de Pedro Ferreira, ex-responsável pelo scout do Benfica, primeiro na formação e, de 2019 a 2024, no futebol profissional - PARTE V

Pedro Ferreira cumpre os primeiros dias de uma ligação de três épocas ao Nottingham Forest, onde vai chefiar o recrutamento da equipa da Premier League que é treinada por Nuno Espírito Santo.

Para trás ficam 17 anos de ligação profissional ao Benfica e muitos mais de conexão sentimental.

Aos 41 anos, o homem que chefiou o departamento de scouting do futebol profissional dos encarnados nas últimas cinco épocas e meia e que, antes disso, liderou a prospeção da formação do clube ao longo de sete anos, admite que estava na altura de sair da zona de conforto e de perceber que há vida para lá do Benfica. E de crescer enquanto profissional para, que sabe, um dia voltar a «casa».

Numa longa entrevista ao Maisfutebol, a primeira após a saída do Benfica, Pedro Ferreira passou em revista, de uma área à outra do campo, o percurso nas águias.

Desde a chegada em 2007, como adjunto de uma equipa de benjamins que tinha acabado de receber Renato Sanches, quando ainda era estudante e árbitro de futebol, à passagem para o departamento de prospeção e o caminho para ultrapassar os anos – ou décadas – de atraso em relação ao eterno rival Sporting e ajudar a fazer do Benfica uma referência também na prospeção de jovens talentos.

Pelo meio, foi um dos intervenientes na ida de João Félix do FC Porto para o Benfica em 2015, processo que recorda numa das partes desta conversa.

Em 2019, num período de «introspeção» no clube, passou a liderar o departamento de scouting do futebol profissional do clube, que desde então fez as três maiores vendas de sempre: de João Félix, de Enzo Fernández e de Darwin, todas com a contribuição dele e do seu – como lhe chama – «departamento de soluções», através da identificação talentos desde a formação até à elite.

Na última época, mais do que casos de sucesso, foram notícia os chamados «erros de casting» do Benfica no mercado. Jurásek, contratado por 14 milhões de euros para ser o substituto de Grimaldo, não resultou e nenhuma das opções para a frente do ataque fez esquecer Gonçalo Ramos enquanto a escassos quilómetros da Luz um outro avançado trazia fartura ao Sporting.

Nesta quinta e última parte da entrevista, Pedro Ferreira fala sobre o processo de saída do Benfica, dos desafios no histórico clube da Premier League e admite o desejo de um dia voltar ao clube pelo qual é apaixonado.

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Maisfutebol – Rui Costa disse recentemente que as várias saídas do departamento de scouting do Benfica eram sinal de que está a ser feito um bom trabalho e não o contrário.

Pedro Ferreira – Concordo a 100 por cento. Quando reformulámos e idealizámos uma nova fase do departamento de scouting, foi pensado por todos identificar bem os recursos humanos. Nesse momento, todos os recursos humanos que entraram no departamento de scouting do futebol profissional estiveram numa entrevista em que estava eu, o Rui Costa e o Tiago Pinto. Quando o Tomás Amaral, o Joaquim Pinto e o Gonçalo Bexiga entram, mesmo que já estivessem dentro do clube, quisemos ter ali um momento para se explicar aquilo que queria ser feito. E, da mesma forma que formamos jogadores e treinadores, também queremos formar scouts, dando-lhes condições como nos deram ao nível de recursos espaciais, informação para evoluírem e apoio. E isso aconteceu: enquanto líder, eu tinha de ser também o treinador, o formador, sabendo que eles estavam a ser formados para que amanhã pudessem um dia, por exemplo, substituir-me ou serem soluções noutros clubes, como foram. É um orgulho muito grande ver o Mauro Mouralinho sair para chief-scout do Marítimo e estar neste momento a trabalhar como scout no Atlético Madrid; o Gonçalo Bexiga foi idealizar um departamento de scouting no Al Ain [n.d.r.: atual campeão asiático] e teve ali momentos em que assumiu uma função muito semelhante à de um diretor-desportivo; o Tomás Amaral sai para diretor-desportivo do Spartak Moscovo; o Joaquim Pinto sai para chief-scout do Spartak; o Carlos Silva, que entra para scout do Benfica, e sai para diretor-desportivo do Farense. E eu saio para head of recruitment do Nottingham Forest. Isso é perceber que o trabalho está a ser bem feito, obviamente. Eu gosto sempre de falar da saída do Tomás para que se perceba: ele passou por muitas fases de seleção no Spartak para ser diretor-desportivo. O scout do Benfica, em competição com outras dezenas de pessoas, é o escolhido pela competência. E isto alegra-nos bastante. Estamos a falar de saídas, mas houve muita gente que foi tendo muitos convites e que foi optando por ficar.

Isso aconteceu também com o Pedro ao longo destes anos?

Eu fui tendo muitos convites e outros elementos também tiveram. Mas optámos por continuar a crescer no Benfica. Agora, falando no meu caso, senti que era a altura certa, depois de 17 anos de ligação ao clube, de sair daquela que era também a minha zona de conforto. Foi isto, foi a Premier League e foi o Nottingham, que me apresentou um projeto muito aliciante. Os proprietários são muito ambiciosos e querem que o Nottingham possa voltar a ganhar algum troféu. Eu perceber que posso ajudar a que isto aconteça e o facto de trabalhar com o mister Nuno Espírito Santo e criar uma relação de confiança fez-me pensar que estava ali algo que ia fazer-me sair da minha zona de conforto, num país diferente e que ia obrigar-me a continuar a crescer e a usar outras ferramentas para eu continuar a crescer. Tenho 41 anos e também tenho expectativas para aquilo que é a minha carreira e sinto que a minha passagem para o Nottingham vai ajudar-me a crescer. Quem sabe se para daqui a alguns anos poder regressar a um Benfica da vida mais bem preparado, por exemplo. Isto foi falado cara a cara com o Rui Pedro Braz e o Rui Costa. É muito importante conhecer por dentro outras realidades. E chegou a altura de algo sobre o qual eu falava muito com colegas da área: por exemplo, com o Flávio [Costa], do Sporting, que trabalhou comigo no Benfica durante sete anos e que saiu para Estoril, Famalicão e Sporting; o João Gião, o Carlos Fernandes, que está no Sporting, o Filipe Coelho, que sai para o Estoril. Perceber que há vida para lá do Benfica e que nós, quando trabalhamos muitas vezes fora do clube pelo qual somos apaixonados, podemos trabalhar sem essa afinidade clubística…

«Vejo-me como diretor-desportivo daqui a uns anos. É um padrão normal da carreira, mas não sei se o vou ser»

É benfiquista de berço?

Sempre fui e sempre serei benfiquista. Eu acho que conseguia pensar mais com a cabeça do que com o coração, mas a verdade é que eu era e sou apaixonado pelo clube. E agora vou-me tornar apaixonado pelo Nottingham, sabendo que nada vai superar a paixão pelo Benfica, mas penso nisto como algo para me ajudar também a formar-me no sentido daquilo que eu ambiciono para o futuro. Acho que estarei muito mais bem preparado do que passando só pelo Benfica.

No Estádio da Luz na noite da conquista do 38.º título de campeão nacional, em 2022/23. Aqui, juntamente com o diretor-desportivo Rui Pedro Braz e os restantes elementos do departamento de scouting à data. André Oliveira (de fato e grava em baixo à esquerda), David Silva (em cima à esquerda), Carlos Silva (em cima, segundo a contar da esquerda), Tomás Amaral (em baixo, a agarrar na taça com a mão direita), Pedro Costa (em baixo, a agarrar na taça com a mão direita), Joaquim Pinto (terceiro em cima a contar da direita, ao lado de Rui Pedro Braz), Ricardo Camacho (o mais à direita na fota) e André Costa (terceiro em cima a contar da esquerda, ao lado de Joaquim Pinto)

Acha que será um passo natural tornar-se um dia diretor-desportivo? É comum acontecer e aconteceu também com José Boto, seu antecessor no Benfica.

Exatamente. É um padrão muito normal de carreira. Não sei se o vou ser. Olho para isso como uma possibilidade, mas sou muito de viver o dia a dia. Até agora senti-me sempre muito motivado em tudo o que fiz, como estou a sentir-me agora nesta passagem para o Nottingham, com desafios completamente diferentes daqueles que tinha no clube e pensando muito na questão do grupo. Mas vejo-me como diretor-desportivo daqui a uns anos. Se vai acontecer? Vamos ver.

Mas este foi um passo fácil de dar ao fim de 17 anos num clube?

Não foi fácil. Fui tendo alguns convites e a verdade é que nunca consegui dar esse passo. Por aquilo que me prendia, pela ligação ao clube, pela ligação familiar, por ser alguém com muitas raízes fortes que me prendiam. Mas o Pedro Ferreira, aos 41 anos, com a vida que tem à sua volta, sentiu que estava preparado para dar esse passo. E foi um desafio que eu achei claramente muito aliciante: o Mr. Marinakis, o seu filho, o Miltiadis Marinakis e o George Syrianos criaram-me desafios e entenderam que o meu trabalho poderia acrescentar valor ao clube, permitindo-me também crescer e desenvolver as minhas competências. E isso é muito aliciante, além de trabalhar na Premier League com o Nuno Espírito Santo. Senti que estava na altura certa.

E a conversa com Rui Costa?

O processo foi muito simples, mas não foi fácil. Mas o momento de verbalizar a minha decisão e claramente dizer que estou a assumir perante toda a gente que o que eu quero é sair, é difícil. Em casa, perante a mulher, as filhas e a restante família, como perante o presidente, com quem já tinha uma relação de muitos anos no clube. Já não é só o presidente ou o ex-diretor desportivo a olhar para o seu diretor de scout, mas o Rui a olhar para o Pedro.

«Não saio porque não ganhámos, assim como não saí no ano passado só porque ganhámos. Isso não existe»

Ele tentou demovê-lo?

Acho que foi tudo muito claro e transparente. E os dois Ruis, o Rui Pedro Braz e o Rui Costa, perguntaram-me o que é que eu queria para a minha vida e o que é que eu achava que era o melhor. Ganhar mais era o menos importante, não era isso que estava em causa. E eles perceberam que o que eu ia ter fazia todo o sentido: um desafio diferente, trabalhar na Premier League, experienciar coisas que não experiencio aqui, continuar a minha evolução. E o próprio presidente disse-me uma coisa que era verdade: «Se quando recebeste convites tu comunicaste que não os aceitaste e agora estás a ponderar ir, é porque alguma coisa está diferente. Querendo ir, vamos ajudar-te a que o processo seja o mais simples e menos turbulento possível até para a equipa de trabalho.» E assim foi, tendo até havido uma preocupação grande em saber-se se estava tudo certo com o Nottingham. Eu só me via a sair do Benfica dessa forma.

Para que fique claro para quem nos lê: a saída do Pedro do Benfica não teve qualquer relação com um possível desgaste provocado pela má época desportiva?

Não. A minha saída tem a ver com os meus 17 anos no Benfica. Com tudo o que eu fiz, com tudo o que fui atingindo e crescendo, senti que precisava de um desafio diferente. Claramente! Agora, não saio porque não ganhámos, assim como não saí no ano passado só porque ganhámos. Isso não existe. Quem me dera a mim sair e o Benfica ganhar sempre. E poder voltar e o Benfica poder ganhar sempre. Nada contra A, B ou C. Senti, sim, que precisava de um desafio diferente para a minha carreira.

Estas muitas saídas do Benfica, sendo sinal da competência das pessoas, também mostra que se paga pouco nesta área em Portugal, mesmo no contexto de um clube grande?

Acho que é uma boa questão. É uma realidade com a qual nós lidamos. É assim em todas as áreas do país. Os melhores profissionais acabam por sair e muitas vezes com melhores condições financeiras, projetos mais aliciantes a nível de execução diária, mas sim: estamos num cantinho da Europa, somos um país pequenino e não temos a riqueza de outros. Isto é óbvio e acontece em todas as áreas e não só no scouting. Mas penso, falando do que conheço das pessoas que trabalharam mais diretamente comigo, ninguém diz que só sai porque vai ganhar mais. Quando há paixão pelo clube, há muita coisa. O salário emocional também é muito importante. Não há nada que pague o que se vive dia a dia no Benfica ou noutros clubes quando as pessoas estão bem. Ou o que se vive em nossa casa com a nossa família. Isso tudo é muito importante.

Faz-lhe sentido que o Benfica opte, pelo menos para já, por não preencher a sua vaga de chief-scout?

Eu ainda estava presente quando isso foi debatido e a ideia foi: «O mercado está a acontecer, está aberto, estamos a executar o trabalho que vinha sendo feito. As pessoas reportavam a ti e tu eras o interlocutor diário connosco e neste momento podem ser elas esses interlocutores connosco. Não sei o que vai acontecer, mas naquele momento percebi que se calhar o mais fácil foi aquela decisão, até porque estamos no final da época e com um trabalho feito com muitos meses e muitos alvos já definidos. Acho que era um bocadinho por aí.

É possível a estrutura de scout do Benfica não se ressentir depois de tantas saídas?

Para responder aos desafios imediatos do mercado de contratação de verão, acho que é possível. Iniciar uma época com este número de scouts será mais complicado, mas acredito que o Benfica já tem algo minimamente pensado para melhorar essa situação.

Como é que vai ser a dinâmica de trabalho no Nottingham Forest?

Não pode haver investimentos desmedidos, até porque a Premier League tem regras diferentes e o Nottingham foi punido com perda de pontos no passado e não quer que isso volte a acontecer. Não pode haver investimentos desmedidos se não houver receitas também elevadas. O projeto passa muito por reforçar a equipa de modo que ela esteja mais apta para responder aos desafios diários da Premier League, mas também identificar jovens talentos para poderem crescer e desenvolver-se dentro e depois fora.

Às vezes questionamo-nos porque é que muitos desses jovens talentos parecem escapar ao radar dos clubes da Premier League, acabando por ir para mercados mais periféricos como Portugal para depois serem vendidos por muito dinheiro a esses clubes.

Mas aí eu percebo. Aí estamos a falar do topo do futebol inglês, muitas vezes.

Não um Nottingham, sim.

Ainda [risos]. A ambição é sempre para crescer. Mas os clubes grandes ou enormes podem dar-se a esse luxo: e Portugal funciona como o teste do algodão. Estamos a falar de jogadores que lutam para ser campeões, que estão na Champions League. Em muitos casos são jogadores que vêm da América do Sul e o primeiro passo na Europa é aqui. E o contexto do Benfica – um clube que luta sempre para ganhar e que tem uma grande pressão dos adeptos – dá-lhes a segurança de que se o jogador conseguiu responder a isso, mais facilmente responde aos desafios num clube com uma dimensão financeira superior.

O Benfica é passado ou gostava ainda que fosse futuro?

O Benfica é passado enquanto profissional, será sempre o presente enquanto adepto e sócio e acredito que será futuro enquanto adepto, sócio e profissional.

Como têm sido estes primeiros dias de trabalho dos três anos de contrato com o Nottingham Forest?

Têm sido muito bons e muito intensos. Reuniões com os proprietários do clube, reuniões com colegas, com o treinador, com a equipa técnica e neste momento cabe-nos trabalhar para que na próxima época o Nottingham possa estar confortável na tabela e não estar a lutar até à última jornada pela manutenção.

E tem jogadores do Benfica na shorlist? Numa equipa sombra?

Parece-me difícil o Nottingham contratar jogadores ao Benfica neste momento. São jogadores muito caros para a realidade do clube, mas nunca se sabe. O mercado é muito volátil.

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