Este artigo contém ainda outras explicações e considerações sobre a saúde menstrual
artigo originalmente publicado a 29-10-2022 e republicado agora devido a um volume enorme de pesquisas no Google sobre o tema
Hoje fala-se mais de período, ciclo menstrual e até de endometriose. A palavra menstruação deixou de ser sussurrada e as dores menstruais não mais ignoradas. Há quem diga que são os temas da moda, conteúdos virais em tempos digitais e uma forma de marcar a agenda política - veja-se o exemplo da licença menstrual da vizinha Espanha e que serviu de inspiração por cá. Mas a saúde menstrual está longe de ser um tema novo, apenas ganha agora destaque com a ajuda das novas tecnologias e da internet, que mais rapidamente fazem chegar a mensagem à opinião pública e que dão outro palco aos estudos científicos até então feitos, acabando com dúvidas e mitos e tornando as pessoas que menstruam mais exigentes nas respostas que quase sempre tardam a chegar.
“A preocupação é que haja mais informação, há um atraso de cerca de sete anos no diagnóstico de endometriose. A mulher passa entre sete a oito médicos até chegar ao diagnóstico”, exemplifica, em tom de lamento, Luís Ferreira Vicente, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Reprodução (SPMR), que olha para o ‘boom’ sobre o tema como uma vitória, sobretudo no caso desta doença até agora desvalorizada e mal diagnosticada.
Para Patrícia Lemos, educadora para a saúde menstrual e autora do livro Não É Só Sangue, editado pela Arena, “as redes sociais têm tido um papel importante na propagação da mensagem” e para que este assunto seja tema de conversa, até mesmo cada vez mais cedo, com as raparigas mais atentas aos seus corpos.
“Trabalho como educadora menstrual e para a saúde menstrual há 12 anos. Tem sido bom ver o tema chegar a mais gente, nos últimos cinco anos a velocidade a que as coisas ocorreram está ligado à celeridade com que as mensagens estão a surgir nas redes [sociais]”.
Eis como a palavra endometriose deixou de ser estranha
É para muitos uma palavra estranha, para outros a palavra que dá nome às dores sentidas durante anos. Nunca se falou tanto de endometriose - e, à boleia disso, de menstruação - como nos dias de hoje. E, tal como nos diz Patrícia Lemos, as redes sociais são o palco para o debate.
E foi isso mesmo que Catarina Maia decidiu fazer: aquela que era uma angústia sua, era também de tantas outras pessoas que menstruam. E aquelas que eram as suas dúvidas, eram também de muitos. E foi assim que nasceu o projeto O Meu Útero.
“Dores menstruais não são normais”. Esta é a frase que Catarina Maia diz mais vezes e aquela que gostava de ter ouvido mais vezes, sobretudo assim que menstruou pela primeira vez e começou a sentir uma luta interna contra o próprio corpo, já ele em luta contra algo tão natural às pessoas que menstruam.
A jovem de Lisboa criou em 2017 o blogue O Meu Útero, seguindo-se uma página de Instagram que conta já com mais de 55 mil seguidores e que é, para muitos, um espaço de desabafo, mas também de procura de informação.
“Nas mensagens que recebo vejo como coisa positiva, muitas mensagens são a agradecer o facto de ter falado sobre o tema, mas há muitas mulheres com dúvidas, às vezes com sintomas incapacitantes e impossíveis de gerir. Estas mulheres não têm atenção nenhuma por parte dos médicos, [que] dizem que é normal”, conta-nos.
Mas tal como tantas outras mulheres, também Catarina esperou anos a fio por um diagnóstico final. “Quando o tive senti uma revolta, senti-me um pouco injustiçada. Estava a queixar-me a sério, as minhas queixas eram descartadas e não havia motivo para isso, conhecia muitas mulheres com queixas semelhante ou piores e com as mesmas respostas”, lamenta a também autora do livro Dores Menstruais Não São Normais, editado este ano pela Manuscrito.
“A endometriose afeta uma em cada 10 mulheres, achei chocante que ninguém conhecesse a doença, nem as mulheres estarem atentas para os sinais de alarme, nem os médicos para o diagnóstico”, diz a jovem.
Para o médico Luís Ferreira Vicente, “isto é um problema transversal. As pessoas acham que é normal [ter dores], há sintomas de endometriose que as pessoas ignoram. O principal método de diagnóstico é saber escutar as pessoas”. Porém, mostra-se otimista com a informação que chega e com aquilo que as pessoas fazem com ela: que é procurar ajuda.
O clínico diz que as pessoas estão agora mais à vontade para se 'queixar' e destaca que nenhuma dor deve ser ignorada, por muito estranha que pareça: “Se tem uma dor ciática sempre que menstrua tem um endometriose ciática, se tem uma dor no ombro tem uma endometriose no diafragma”.
Catarina sabe que o seu trabalho nas redes sociais ajudou a trazer o tema para discussão, algo que outras mulheres e até entidades, como a Mulherendo, estão já a fazer e de forma cada vez mais ativa. Mas reconhece o papel das celebridades na hora de fazer de um tema assunto. “As próprias celebridades que assumem que têm endometriose ajuda, faz com que se tire o estigma e a vergonha do tema e as mulheres se sintam mais à vontade para falar”, refere.
Anitta é um exemplo de quem contribuiu para que a endometriose fosse notícia - e, com isso, mais pesquisada pelas pessoas. A cantora partilhou a sua luta contra as dores menstruais e chegou mesmo a ser operada no verão.
Vamos, galera, mulheressss. Estou aqui no auge dos acontecimentos mais inacreditáveis da minha vida um atrás do outro tipo um rajadão de bênçãos... mas num ta dando pra sorrir por motivos de: precisamos falar sobre endometriose
— Anitta (@Anitta) July 8, 2022
Também este ano, Raquel Prates, doente de endometriose, foi operada na quinta-feira, 17 de fevereiro, sujeitando-se a uma “histerectomia total com excisão de todas as lesões”, o que também quer dizer que nunca poderá ter filhos. Decidiu expor-se para que todos saibam que há mulheres e adolescentes em sofrimento e que a endometriose não pertence apenas a quem dela sofre.
“Agora endometriose é doença da moda, é um pau de dois bicos”, diz Catarina Maia, num tom de desalento e revolta por tantas vezes ouvir isto. Mas não é, reforça o médico Luís Ferreira Vicente. E dá o exemplo: no 31.º Congresso Anual da Sociedade Europeia de Ginecologia Endoscópica, que se realizou no início de outubro, foi dado destaque à endometriose.
“Na sessão inaugural, em vez de agradecer, trouxemos a Shannon Chon, realizadora de um filme sobre endometriose, que vai sair em março, o Below The Belt, um filme que Hillary Clinton foi a produtora executiva. Ela própria tem endometriose, como a Shannon Chon. É um filme que é para ter impacto no conhecimento das pessoas, não é normal ter dores na menstruação, sobretudo incapacitantes”.
Este filme foi mostrado a dezenas de médicos que estavam no encontro, tendo essa ação um simples objetivo: manter o assunto na agenda, aumentar a curiosidade sobre o tema e o aprofundamento de conhecimento, que começa no médico e é passado para o paciente. “A experiência que tenho é que continuam a achar que é normal, estamos a tentar cada vez mais que as pessoas estejam informadas”, diz, frisando o papel das plataformas digitais, credíveis, nesse sentido.
Um longo caminho científico que ainda não se nota em consulta
Se hoje se sabe que o humor da mulher muda antes e durante a menstruação, que as dores menstruais não são normais e que a idade da menarca pode ter implicações na saúde futura é porque a ciência, aos poucos, foi dando atenção àquilo que é o ciclo menstrual, embora durante muito tempo na ótica da contraceção para evitar a gravidez indesejada.
Mas os estudos não são de agora. Em 1874, o psiquiatra britânico Henry Maudsley deu aquele que é considerado o primeiro passo na importância de olhar para a menstruação com outros olhos, pelo menos com uns olhos que vêem o corpo com sistemas reprodutivos masculinos e femininos de forma diferente e que, por isso, devem ser estudados e tratados de forma distinta. Mas foram precisos mais de 100 anos para que a saúde menstrual passasse a ser vista com olhos de ver.
“A menstruação foi um objeto sociocultural durante séculos para criar espaços específicos para mitos, de algo que é impuro e sujo, em que a mulher tem de ter regras sociais”, lamenta Patrícia Lemos, educadora para a saúde menstrual.
A título de exemplo, as populações indígenas no Mali acreditam ainda que a presença de uma mulher menstruada é uma mais-valia para a fertilização do solo. Mas a educadora diz se preciso que as pessoas se afastem "desta narrativa, que levou ao pensamento mágico, à ligação da menstruação às luas”. Notando que a ciência tem contribuído muito para isso e que.os avanços científicos têm dado frutos nesse sentido, Patrícia Lemos avisa que há muito caminho para desbravar, sobretudo no conhecimento e na sensibilização no que diz respeito à saúde menstrual, seja por parte da população como da própria comunidade médica.
Tal como diz um artigo da BBC, os cientistas estudam o ciclo menstrual desde a década de 1930, mas, destaca, o The New York Times, começaram tarde a recolher dados sobre a menstruação, o que faz com que pareça que só agora é que se está a estudar e a conhecer o tema. Patrícia Lemos dá um exemplo de como foi preciso chegar a 2015 para que o ciclo menstrual conseguisse algum protagonismo - embora nos diga que faz valer o ditado ‘mais vale tarde do que nunca’.
“Em 2015, o Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia [ACOG] reavaliou a forma como olhamos para o ciclo menstrual para olharmos para ele como um sinal de saúde. Os sinais vitais são quatro, nas pessoas que menstruam há mais um e se há alteração no ciclo menstrual temos de investigar”, refere, apressando-se a dizer que o discurso inclusivo quando o tema é a menstruação é também um sinal dos avanços da ciência e da sociedade. Pessoas que menstruam são as pessoas “que nascem com útero e ovário”, independente do género com o qual se identificam, esclarece.
Até aos dias de hoje, a ciência já sabe que a mulher menstrua mais hoje do que outrora (passou de 40 menstruações anuais para mais de 400 episódios de menstruação ao longo da vida, como revela o estudo publicado na American Journal of Obstetrics and Gynecology). E isso acontece muito à boleia da toma da pílula e de outros métodos contracetivos, tendo a prevenção de gestações não planeadas dominado o campo científico da saúde menstrual nas décadas de 50 e 60, atrasando a análise de outras vertentes e a abordagem de outros pontos de vista sobre o assunto.
Além disso, sabe-se ainda que a menarca (primeira menstruação) é agora mais precoce e que isso pode trazer consequências para a saúde. E em Portugal estudou-se o assunto: segundo o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), a idade mediana da menarca (primeira menstruação) passou dos 13 para os 12 anos, um declínio que, segundo a investigação, deve captar a atenção da comunidade médica, uma vez que “há evidência de que uma idade da menarca precoce pode estar associada a problemas de saúde mais tarde na vida”, adiantou a investigadora Catarina Queiroga.
Mas foi apenas em 2009 que a ciência disse ter encontrado os genes que podem estar na origem da primeira menstruação - uma descoberta que serve agora de trampolim para estudos de prevenção de doenças como o cancro, a osteoporose ou as patologias do foro cardiovascular. Publicado na Nature Genetics, e citado por Harvard, o estudo diz ainda que as raparigas que são mais baixas e com mais peso tendem a iniciar a sua vida reprodutiva mais cedo, pois os genes estão localizados ao lado do ADN que controla o peso e a altura.
Entre 2016 e 2018, diz o estudo Menstruação: ciência e sociedade, “houve um crescimento exponencial na atenção à agenda da menstruação na saúde global”. E foi nesse espaço de tempo que os cientistas conseguiram replicar o ciclo menstrual pela primeira vez. Através do dispositivo EVATAR, cujos resultados foram publicados num estudo publicado na Nature Communication, o objetivo foi ajudar os cientistas a entender melhor como medicamentos afetam as mulheres de maneira diferente dos homens. E foi também nesse espaço de tempo que blogues, redes sociais e até meios de comunicação começaram a dar mais destaque ao assunto.
Compreender a menstruação, o ciclo e o corpo da mulher nessa altura do mês foram os focos na segunda década do novo século, uma altura em que a informação, à boleia da internet, conseguiu ser mais rápida e certeira e, com isso, aguçar mais a curiosidade e a vontade de ter respostas.
“Isto decorre dos últimos 20-30 anos de evidência recolhida no sentido de dar melhores respostas ao nível da procriação medicamente assistida. Para se desenvolver melhor tecnologia e procedimentos, fomos descobrindo ainda mais coisas sobre os ciclos menstruais”, continua Patrícia Lemos.
A par dos estudos sobre a menstruação em si, surgiram outros que se focaram no impacto que tem no corpo e na mente, sobretudo no que diz respeito às dores e à redução da qualidade de vida. E só isso é a prova de que o tema não é novidade, apenas é mais divulgado agora, como dizem os entrevistados pela CNN Portugal.
“Aproximadamente um terço de todas as visitas ginecológicas ambulatoriais são realizadas por distúrbios da menstruação, tornando os distúrbios menstruais algumas das razões mais comuns pelas quais as mulheres visitam os seus ginecologistas”, lê-se no livro General Gynecology, publicado em 2007 pelos investigadores Andrew I. Sokol e Eric R. Sokol. Os problemas menstruais podem assumir muitas formas, incluindo sangramento anormal ou irregular, amenorreia (ausência de menstruação), dismenorreia (a chamada dor menstrual), síndrome pré-menstrual e transtorno disfórico pré-menstrual, por exemplo.
Onze anos depois, quando cientistas da Arábia Saudita entrevistaram 738 estudantes universitárias, num estudo publicado em 2018, descobriram que 91% relataram pelo menos um problema menstrual: algumas menstruaram irregularmente ou não menstruavam; outras relataram níveis excessivos de sangramento e dor, lê-se no site Scientific American. E só aqui vem mais uma prova de que a questão é mais recorrente do que o imaginado, apenas não se falava tanto do assunto.
Para a educadora e autora, todos os estudos feitos até agora contribuíram para um melhor conhecimento da saúde menstrual que, por seu turno, tem ajudado a quebrar ideias pré concebidas e que, muitas vezes, levam as mulheres a interpretar mal os sinais que o corpo dá, sejam eles físicos ou psicológicos. A especialista diz que, aqui, a tecnologia também “entra como parte importante”, pois “o facto de as mulheres usarem apps para o tracking de ciclos permite confirmar uma suspeita de que os ciclos de 28 dias parecem ser comuns em 20% de pessoas que menstrua. "Temos que olhar o ciclo de 28 dias como um modelo criado, mas que ao dia de hoje a mulher contemporânea saudável dificilmente apresenta ciclos de 28 dias sempre”.
“Temos de nos focar na saúde, se não ovula de forma regular vamos ter um desregulamento menstrual. A menstruação passa a ser um subproduto se o meu corpo está ou não a ovular bem. E isto decorre de tudo o que são evidências científicas recentes”, diz a também criadora da página de Instagram Círculo Perfeito, que conta com mais de 80 mil seguidores e que se expressa quase como uma bíblia digital da saúde menstrual.
Foi neste sentido que nas últimas duas décadas que surgiram investigações que se focaram no ‘efeito menstruação’, sobretudo a nível comportamental e emocional, o que ajudou a acabar com o velho estigma da mulher menstruada e histérica e ajudou a que o tema fosse falado mais abertamente - coisa que também séries, filmes e até documentários têm ajudado, quase como se fossem uma extensão da ciência, uma ponte entre o laboratório e a pessoa. A curta metragem documental Period. End of Sentence chegou mesmo a vencer um Óscar.
Mas voltando à ciência, a última década tem ficado marcada por estudos sobre a relação entre a menstruação e a saúde mental, tema também agora mais falado. Um estudo publicado em 2014, por exemplo, descobriu que as mulheres sentem-se mais ansiosas e irritadas durante a menstruação. É também durante o ciclo menstrual que a mulher se mostra com mais apetite pelo sexo, concluiu um estudo publicado em 2013 na Hormones and Behavior. Em 2008, por seu turno, um estudo concluiu que a menstruação é capaz de influenciar a capacidade de uma mulher de parar de fumar e outro, em 2010, que até interfere com os tipos de sonhos que ela tem todas as noites.
Mas Patrícia Lemos destaca ainda que os avanços científicos e estas ‘pequenas descobertas’ têm contribuído para se avaliar doenças, patologias ou sintomas isolados que estão relacionados com a saúde menstrual, muitas delas até então desvalorizadas, como é o caso da endometriose e da perturbação disfórica pré-menstrual, até agora vista apenas como mais um sinal de TPM - a síndrome de tensão pré-menstrual tão banalizada em filmes e cinemas com baldes de gelado e chocolates à mistura. A perturbação disfórica pré-menstrual é caracterizada por um conjunto de sintomas afetivos, comportamentais e somáticos que ocorrem na fase lútea do ciclo menstrual, ou seja, todos os meses. Estima-se que afete entre 3% a 8% das pessoas que menstruam.
“Este trabalho para a saúde menstrual tem uma base científica recente, mas o que sabemos é que já um décalage e um hiato de tempo da evidência que chega às práticas de profissionais de saúde”, lamenta a educadora, que diz que o facto de agora se falar mais de saúde menstrual deve-se, em parte, ao papel das redes sociais.