O que é ser não-binário? E poligénero? A identidade de género pode ser "uma bola tridimensional complexa" (e este artigo inclui um glossário que ajuda a simplificar)

5 jun 2022, 13:00
Manifestação pelos direitos LGBT na Polónia. Foto: Vadim Ghirda/AP

O termo não-binário serve de chapéu para uma diversidade de identidades de género que vão para além do binário masculino ou feminino, conceitos que hoje são mais mediatizados - e as redes sociais ajudaram - mas que sempre existiram

Demi Lovato, Janelle Monáe, Sam Smith, Tommy Dorfman, Sara Ramirez, Elliot Page e Ruby Rose. À partida estes nomes apenas trazem à mente música e cinema, mas há um aspeto em comum em todos estes artistas: são exemplos de quem assumiu uma identidade de género não-binária por não se identificar com os géneros masculino e feminino, independentemente de esse ser ou não o seu sexo biológico. 

A questão da não-binariedade não é de hoje, mas voltou a ganhar visibilidade quando estas celebridades assumiram uma identidade de género diferente já em idade adulta. Apesar de não ser uma questão nova, a revelação pode causar estranheza: tratar-se-á de uma moda?  Poderá ter sido impulsionada pela vida digital e pelo efeito imitação das redes sociais? A resposta simples é não. A identidade de género molda-se desde cedo em cada pessoa, mas o meio ainda influencia o momento em que cada um a assume. 

“Na maioria das pessoas [a identidade de género] define-se pelos três, quatro anos, apesar de se construir ao longo da infância e poder ou não ser o mesmo que o sexo atribuído à nascença. Ou seja, estas questões de género podem surgir em idades mais novas”, começa por explicar Daniel Seabra, psicólogo clínico e membro colaborativo no CINEICC - Centro de Investigação do Núcleo de Estudos e Intervenção Cognitivo-Comportamental da Universidade de Coimbra. 

Segundo Maria do Mar Pereira, socióloga, investigadora, docente e coordenadora do Centro para o Estudo da Mulher e Género na Universidade de Warwick, no Reino Unido, é preciso desconstruir a ideia que a não-binariedade é uma moda. “É a questão central aqui”. 

“A experiência de a pessoa não se identificar com a ideia de que só há dois géneros é uma experiência que sabemos cientificamente que sempre existiu, sempre houve pessoas que experienciaram isso. Em diferentes sociedades, línguas e épocas históricas demos diferentes nomes e diferentes formas de expressão. Nos anos 60, 80, não havia a palavra não-binário, mas havia certas celebridades, como David Bowie, a brincar com a androgenia e a pessoa identificava-se com isso”, explica. 

A especialista em comunicação e género Lisa Perrot escreveu, num artigo na CNN Internacional, que Bowie "deu uma nova vida a certos gestos, realizando atos que transgridem os limites do comportamento de género normalizado". Ao longo das suas atuações, continua, "ele repete esses gestos, como que para reforçar a subversão de género". (AP Photo/Matt Dunham)

A socióloga afirma ainda que “à medida que o tempo passa vão surgindo novas palavras, categorias e manifestações culturais, novos movimentos sociais que dão outros nomes” a fenómenos que sempre existiram e a questão da identidade de género não é uma exceção. 

“É algo que antes era invisível, mas existia, agora tem mais visibilidade, agora não há riscos sociais de as pessoas se assumirem”, continua a investigadora. “Não é uma moda no sentido de agora haver mais pessoas e o que elas fazem não é real. O que elas sentem é real, e atualmente esta é a linguagem que têm para expressar isso, noutras alturas isso era mais escondido”. 

Também o psicólogo Daniel Seabra, defende que assumir uma identidade que vai para lá do binário feminino e masculino “não se trata de uma moda”, mas beneficia do facto de o tema “estar mais visível”. “Nos últimos anos, as identificações LGBTQIA+ têm aumentado, o que não significa que haja mais pessoas LGBTQIA+, mas que revelam mais a sua orientação sexual e/ou identidade de género não normativa, em parte também devido a essas referências positivas”. 

“Não falamos de modas ou caprichos. E não falamos de uma escolha”, frisa Daniel Seabra. 

Sam Smith revelou, em 2019, que se identifica como pessoa não-binária numa entrevista à revista Vanity Fair. (Joel C Ryan/Invision/AP, File) 

Quantas identidades de género existem? 

O site Safe To Be, criado pelo projeto Speak Out: Tackling anti-LGBT hate speech and hate crime, projeto europeu financiado pelo Programa Direitos, Igualdade e Cidadania da União Europeia (2014-2020), apresenta um glossário onde é possível ficar a conhecer a terminologia em português mais usada quando o tema é género, identidade e expressão. Mas basta uma breve pesquisa online, sobretudo em inglês, para perceber a imensidade de termos e conceitos que existem, alguns deles mais pormenorizados e outros mais abrangentes. 

Não existe uma lista oficial com todas as possibilidades, uniforme e consensual. Tal como diz o estudo Apenas duas formas sexuais, mas múltiplas variantes de género: como explicar?, publicado na revista Communicative & Integrative Biology, “provavelmente existem tantas variantes de género diferentes quanto há indivíduos que se reproduzem sexualmente, e isso não apenas em humanos”. 

No que diz respeito à identidade de género, estas são algumas das opções apresentadas pelo Safe To Be. Umas são mais abragentes do que outras, não sendo denominações que se excluem umas às outras: 

  1. Agénero - Pessoa que não se identifica a si mesma com um género em particular, isto é, alguém sem género. 

  1. Cisgénero - Pessoa cuja identidade de género corresponde ao género que lhe foi atribuído à nascença. Dentro desta denominação podemos falar de homens cis, aqueles que se idenficam com o género masculino atribuído à nascença, e de mulher cis, que se identificam com o género feminino atribuído à nascença. 

  1. Não-binário/a - Pessoa que não se encontra na divisão binária de género homem/mulher. Também designa um termo geral, uma vez que há mais formas de percepção de género que encaixam nesta, como demigénero, género-fluído ou poligénero. 

  1. Demigénero - Uma pessoa demigénera – ou semigénera – tem metade da identidade de um determinado género, sendo a outra parte conhecida ou desconhecida. A pessoa pode ter fluidez de género na outra metade, sendo género semifluido. 

  1. Género-fluído - É uma pessoa que não se identifica com um género fixo. O seu género pode modificar-se com o tempo, podendo sentir-se mais masculina num dia, mais feminina no outro, ou nem sequer um dos dois. 

  1. Poligénero - Uma pessoa poligénero pode ser definida resumidamente como alguém que possui vários géneros. 

  1. Genderqueer - Conceito sob a alçada do conceito de não-binário. É uma pessoa que não reconhece as distinções de género convencionais, mas que se identifica com nenhum, com ambos ou com uma combinação de ambos. 

  1. Queer - A palavra queer tem vários significados. É uma forma de nomear a identidade de género e/ou orientação sexual. É frequentemente utilizada por pessoas que ainda estão a descobrir onde se encaixam exatamente dentro do espectro LGBTI ou por pessoas que têm um posicionamento claro contra a heteronormatividade. 

  1. Trans - Entende-se por pessoa trans quem se identifica com um género (binário ou não) diferente daquele que lhes foi atribuído à nascença. A pessoa transgénero pode ou não decidir submeter-se ao processo clínico de transição e pode ou não identificar-se no binário masculino e feminino. Dentro desta definição, há as mulheres trans, que são pessoas a quem foi designado o género masculino à nascença mas que se identificam como uma mulher, e os homens trans, pessoas a quem foi designado o género feminino à nascença mas que se identificam como um homem. 

Fausto Martinez foi, em fevereiro deste ano, dos primeiros mexicanos a alterar legalmente a sua certidão de nascimento e a registrar-se como pessoa não-bináriá no México. (AP/Mario Armas) 

Mas o que é, afinal, a identidade de género? 

Apesar de a classificação binária de masculino e feminino dominar a maior parte das culturas, a definição de género é, antes de tudo, uma questão individual. “A identidade de género é uma autoatribuição, ou seja, diz respeito ao processo subjetivo através do qual uma pessoa designa uma identificação de si, que traduz o conhecimento da sua experiência e vivência em determinada categoria”, esclarece Daniel Seabra. 

Na Índia, por exemplo, há um terceiro género, o Hijra, e pelo menos três milhões de pessoas identificam-se como tal no país

Por identidade de género entende-se a vivência interna e individual de cada pessoa consoante o género com o qual mais se identifica (ou não se identifica de todo, no caso dos agéneros). A identidade de género pode ou não coincidir com o sexo biológico da pessoa (masculino ou feminino) e não tem nada a ver com as escolhas sexuais de cada um. Já a expressão de género refere-se à maneira pela qual a pessoa se apresenta ao mundo e pode ser espelhada em comportamentos, vestuário, maquilhagem, pronomes, etc. 

A confusão entre conceitos e a incompreensão por parte da sociedade – muito à boleia da falta de literacia e debate sobre o tema, como dizem os especialistas entrevistados pela CNN Portugal – pode agravar a disforia de género, um sentimento de sofrimento/angústia gerado pela incongruência entre um corpo com um sexo biológico à nascença e o género com o qual a pessoa mais se identifica. 

Uma bola tridimensional 

De acordo com o dicionário Priberam, género é a “categoria resultante da diferenciação sociocultural (e não exclusivamente biológica) entre homens e mulheres, que varia consoante a cultura e que influencia o estatuto, o papel social e a identidade sexual de cada indivíduo no seio da comunidade em que se insere”. 

As pessoas não-binárias não se reveem no género masculino ou feminino, mas isso não quer dizer que excluam na totalidade estes dois géneros: podem nascer com pénis e sentirem-se mulheres ou nascer com vulva e sentirem-se homens, mas também podem flutuar entre ambos os géneros ou assumir que a sua identidade tem tanto dimensões masculinas como femininas em simultâneo. 

O site LGBT Foundation refere o conceito de espectro de género: “Se imaginarmos que o género é um espectro com o masculino e feminino em cada extremidade, algumas pessoas sentem que encaixam numa categoria diferente do género que receberam à nascença e movem-se de um lado para o outro e algumas pessoas sentem que são uma mistura e estão em algum lugar na escala [entre os dois géneros]”. 

Mas o termo não-binário é ainda mais abrangente: pode abarcar todos os que se identificam com um terceiro género ou simplesmente entender que a sua identidade não tem género. Há pessoas que “não sentem que encaixam no espectro e rejeitam estes termos todos juntos”, acrescenta a mesma página. Essas pessoas referem-se ao seu género como não-binário quando o seu género está fora do sistema binário. 

Para Maria Joana Almeida, psicóloga e sexóloga, com consultas relacionadas com não conformidade e identidade de género, a questão do espectro de género é “complexa”, mas pode ajudar não só uma pessoa a nomear a sua identidade de género, como espelha também “uma diversidade que ajuda as pessoas cisgénero [aquelas cuja identidade de género corresponde à do sexo biológico] a entender a não-binariedade dos outros”. 

“Há teorias que colocam não num espectro, mas numa bola tridimensional, a complexidade e variabilidade individual e a diversidade enorme que pode existir, mas é mais fácil para nós pensar sempre numa linha reta do que em curvas e contracurvas, por isso é complexo”, diz a psicóloga. 

Uma identidade que se define cedo, mas que apenas se revela tarde 

Embora a definição de identidade de género possa acontecer em tenra idade, o ato de assumir pode levar anos a concretizar-se – e as celebridades acima mencionadas são exemplo disso. Em parte, a culpa está na incompreensão, na desinformação e no estigma que ainda resiste, dizem os especialistas. 

“A vivência de uma identidade de género não normativa (ou seja, pessoas trans e não binárias) sempre foi estigmatizada socialmente, estando associada a coisas como aberração, errado, patologia, e/ou desvio. E crescer com estas referências é contribuir para a dificuldade de explorar o género de uma forma livre. A maioria das pessoas trans faz a revelação da sua identidade de género mais tarde, depois de um processo interno de exploração, identificação e aceitação”, continua o psicólogo clínico e investigador Daniel Seabra. 

Quando questionada sobre o facto de algumas pessoas considerarem que a não-binariedade é uma questão momentânea, sobretudo quando a questão é levantada por crianças ou adolescentes, a investigadora Maria do Mar Pereira, da Universidade de Warwick (Reino Unido), não hesita em sublinhar “que não é uma fase” e que são vários os fatores que levam a que cada pessoa leve o seu tempo a revelar a sua identidade. 

“Para qualquer situação social, todos nós passamos por diferentes identidades à medida que crescemos, para uns continua e para outros muda, mas não tornam essas fases menos verdadeiras e importantes para a sociedade e para vida das pessoas”. 

“As juventudes sempre foram quem esteve na linha da frente para experimentar novas expressões artísticas, de moda, de identidade. E hoje esse processo é mais mediatizado, as pessoas antes não tinham tanto conhecimento do que acontecia na juventude, nos movimentos queer. Mas não nos cabe julgar este processo, pois social e cientificamente não tem nada de problemático, grave ou estranho”. 

Um recente estudo publicado na revista Pediatrics vem mesmo dizer que a formação de uma identidade de género em idades precoces tende a durar. Segundo a revista Time, o estudo envolveu 317 jovens com idades no início da investigação entre os três e os 12 anos. Cinco anos depois, 94% ainda se identificavam como transgéneros e quase dois terços estavam em processo de transição clínica. 

Para o psicólogo Daniel Seabra, que publicou recentemente com Jorge Gato e Daniela Leal o estudo When home is not a safe haven: Effects of the COVID-19 pandemic on LGBTQ adolescents and young adults in Portugal, uma maior visibilidade nos media uma criança ou jovem trans ou não-binários tome conhecimento desta realidade e perceba que “não é errada nem patológica, e que não é um desvio e nem tem de ser impeditivo de se ter sucesso”.  

O empurrão das redes sociais 

As redes sociais têm tido um papel importante na revelação da identidade de género ao servirem de palco onde cada um pode expressar o género com o qual mais se identifica, tal como fizeram as celebridades acima mencionadas. Demi Lovato fê-lo no Twitter, em 2021, e Sara Ramirez no Instagram, em 2020. 

Em 2014, o Facebook introduziu nas suas opções de criação de perfil a possibilidade de cada utilizador escolher entre 52 a 56 identidades de género, um vasto número que encaixava em 11 possibilidades de identidade (idênticas às acima mencionadas, mas com outras mais detalhadas como ‘masculino para feminino’, ‘feminino para masculino’, género variante, género conforme). 

“Quando acede ao Facebook para se ligar com as pessoas, causas e organizações de que gosta, queremos que se sinta à vontade para ser o seu verdadeiro e autêntico eu. Uma parte importante disso é a expressão de género, especialmente quando se estende além das definições de apenas «masculino» ou «feminino». Então, hoje, temos o orgulho de oferecer uma nova opção de género personalizada para ajudá-lo a expressar melhor a sua própria identidade no Facebook”, escreveu a Meta Diversity (à data Facebook Diversity) na sua própria página na rede social. 

 

Na altura, a rede social dava também a possibilidade de a pessoa escolher quem poderia ver a sua identidade de género.

Lista de opções, traduzida para português, que o Facebook fornecia em 2014. (Reprodução O Globo)

Atualmente, a mudança de género para uma opção não-binária é diferente nesta rede social. Contactada pela CNN Portugal, a Meta revela que, atualmente, a escolha de identidade de género “é diferente no Facebook e no Instagram”, duas das redes sociais detidas pela empresa norte-americana. No Facebook, em alguns países “pode-se selecionar o género personalizado e existe uma lista que deve escolher”. Essa lista não está presente em Portugal, onde a pessoa pode escrever livremente a identidade de género com a qual se identifica mais. 

Já no Instagram, não existe lista, pode escrever livremente. No Facebook, há também a possibilidade de escolher o género neutro na hora de ser parabenizado pelo aniversário.

Também o Tinder permite escolher uma identidade de género para lá do masculino e feminino. Na rede social, é possível selecionar entre homem, mulher e outro. No campo outro dá 31 opções de identidade de género.

No LinkedIn e no Twitter, a pessoa pode escrever o género que quiser. Já no Tik Tok, lá fora, é possível escolher pronomes que se adequem à identidade e expressão de género do utilizador. Em Portugal essa opção não está disponível, mas a rede social tem-se destacado por dar visibilidade a pessoas não-binárias e ajudado na sua forma de expressão. 

E fora do mundo digital? 

São vários os países que têm vindo a incluir um terceiro género de forma oficial, seja em passaportes, bilhetes de identidade ou certidões de nascimento. 

Por cá, essa possibilidade ainda não existe, mas, diz Daniel Seabra, Portugal “tem-se destacado nestas matérias na esfera legal” e cita a lei de 7 de agosto de 2018, do Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa. Esta lei, explica o psicólogo e investigador, “esclarece o direito de cada pessoa ser reconhecida respeitando a sua identidade de género, em diferentes contextos (como a saúde, educação e ensino), bem como o direito a preservação das características sexuais, no caso de pessoas intersexo”. 

Mas tanto Daniel Seabra como Maria do Mar Pereira apontam a necessidade de ir mais além, sobretudo no que diz respeito ao conhecimento da população. 

A Alemanha permite, desde 2013, a escolha de um terceiro género - mencionado como X - nos passaportes. Os Estados Unidos seguiram recentemente o mesmo exemplo, sendo que há estados que vão além do X no passaporte: em Nova Iorque, é possível escolher a opção não-binária (vista lá como neutra) em cartas de condução e certidões de nascimento. No Canadá,  esta opção existe desde 2019. 

Segundo a revista Newseek, pelo menos 15 países já permitiram que as pessoas alterem o seu género para não-binário ou para um terceiro género nos documentos oficiais. Incluem-se aqui, por exemplo, a Argentina, a Áustria, a Austrália, a Colômbia, a Dinamarca, a Índia, Irlanda, a Islândia, Malta, a Nova Zelândia, o Nepal, os Países Baixos e o Paquistão. 

 

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