«Tinha uma proposta do At. Madrid, mas quando surgiu o FC Porto assinei em dez minutos»

7 abr 2022, 09:20
Rafael

O Maisfutebol parte ao encontro de Rafael, avançado brasileiro que brilhou no grande Paços de José Mota, jogou no FC Porto e se afirmou no V. Guimarães. Uma conversa que passa por Octávio Machado, José Mourinho, Jorge Jesus e está cheia de histórias imperdíveis.

DESTINOS é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias de décadas passadas e marcantes no nosso futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. DESTINOS.

Rafael foi dos melhores brasileiros que passaram pelo futebol português no início do século: fisicamente robusto, bom tecnicamente e com um remate forte, marcou 17 golos na estreia na Liga, ajudou o Paços a brilhar e garantiu a transferência para o FC Porto.

Acabou por ter azar com o ambiente que encontrou nas Antas, recordando um Octávio Machado muito complicado, que era capaz de passar o aquecimento para um jogo da Champions a tentar perceber o que os jogadores conversavam entre eles.  

Depois apanhou meia época de Mourinho e diz que a mudança não foi de oito para oitenta: foi de oito para mil. Em Mourinho tudo era novidade. Mais tarde trabalhou também com Jorge Jesus, que diz que foi do melhor que encontrou porque treinava com o coração.

Rafael hoje vive em Canoas, no Brasil, onde lidera uma agência de representação de jogadores, a 444 Sports Management. Nesta entrevista explica ainda o que aconteceu para dar o murro em João Pereira, que, garante, quase todos os jogadores queriam dar.

A carreira do Rafael começou no futebol de praia, não foi?

Na verdade, nas camadas jovens joguei sempre futebol de onze. Fiz a minha formação em vários clubes, como o Grémio, entre outros, e só depois do meu último ano de juniores, no Brasil de Pelotas, aqui no Rio Grande do Sul, é que fui para a areia.

Como é que se deu essa passagem?

Eu tinha o hábito de participar num campeonato de futebol de praia que acontecia aqui no litoral, onde eu moro. Fomos campeões dois anos seguidos e fomos convidados para representar o estado do Rio Grande do Sul no campeonato brasileiro. Fomos vice-campeões, só perdemos a final contra o Rio de Janeiro, de Neném e Júnior Negão. No final desse campeonato convidaram-me para integrar a seleção brasileira.

Nessa altura só jogava na seleção brasileira de praia?

Sim, só jogava na seleção brasileira. Fiquei lá uns dois anos, com o Júnior e essa gente toda. Até que um empresário aqui no Brasil me disse que conhecia um empresário em Portugal e lhe ia enviar uma cassete com imagens minhas para ele mostrar aos clubes portugueses.

E é verdade que antes disso ainda teve a possibilidade de vir jogar para a seleção portuguesa de futebol de praia?

Isso foi antes da seleção brasileira, foi quando jogava naquela equipa do Rio Grande do Sul. O Alexandre Julião era o treinador da equipa do Nordeste e no fim do campeonato brasileiro foi convidado a ir treinar a seleção portuguesa. Ele levou o Alan, que jogou vários anos na seleção portuguesa, e eu era para ir também. Mas, entretanto, apareceu a seleção brasileira.

Parecia que já estava escrito que o seu futuro iria passar por Portugal.

É verdade.

Depois um empresário enviou uns vídeos seus e o P. Ferreira ficou interessado?

Quando cheguei a Portugal era para ir treinar à experiência ao Gil Vicente. O treinador era o Álvaro Magalhães. Só que nessa altura o Gil Vicente já tinha inscrito cinco estrangeiros, não tinha lugar para mim. O Álvaro Magalhães ainda bateu o pé que queria ver-me, mas o presidente da altura não deixou, que não valia a pena. Por isso eu fui para o Paços, que estava na II Liga.

Quanto tempo é que esteve lá a experiência?

Era para ter ficado quinze a vinte dias, mas ao terceiro dia já tinha assinado. Fiz um particular contra o Boavista, correu-me bem e no fim assinei contrato.

Quem o contratou para o Paços foi o Henrique Calisto, mas foi com o José Mota que explodiu.

Falar do José Mota para mim é falar de uma parte muito bonita da minha vida. Foi ele que me deu a oportunidade de jogar. O mister Calisto saiu com a equipa em zona de descida, o mister Mota assumiu e só fez duas alterações: entrei eu e o Rui Miguel no onze.

O ponta de lança, não é?

Sim, sim, o ponta de lança. Fizemos uma segunda volta espetacular, fomos campeões e subimos de divisão.

Na época a seguir, na Liga, o Paços fez uma grande época e vários jogadores deram o salto.

O José Mota montou uma grande equipa, com jogadores muito trabalhadores, que gostavam de estar juntos, as famílias conviviam muito bem e deu tudo certo. Jogávamos mesmo muito bem à bola. Íamos jogar ao Dragão ou à Luz da mesma forma que jogávamos em casa. O Mota conseguia tirar isso dos jogadores e tínhamos uma grande equipa.

O Rafael, o Glauber, o Zé Manuel, o Leonardo...

Everaldo, Marco Paulo, Adalberto, Paulito, Zé Nando, o Beto.

Exatamente, o Beto que depois vai para o Benfica.

Isso. Dentro de campo era uma equipa fantástica, uma equipa fantástica. O José Mota era o nosso pai, principalmente para os brasileiros, porque nos acolhia muito bem deixava as pessoas à vontade. Depois os portugueses também nos receberam muito bem, o ambiente sempre foi bom. Lembro-me que começámos muito bem a época, só perdemos no Porto, na estreia do Pena.

Quando ele faz dois golos.

Exatamente, perdemos 2-1, mas fizemos um grande jogo. Foi aí que percebemos que podíamos fazer um baita campeonato. E aí os jogadores foram dando nas vistas naturalmente.

O Paços, apesar de tudo, não era clube rico, lembro-me por exemplo que o Leonardo andava com um carro muito velho, penso que era um Clio dos antigos...

[Risos] É verdade. Nós todos andávamos com carros muito velhos. Mas era essas coisas que o Paços tinha, era um clube simples, mas que punha toda a gente ali a lutar pela sua carreira. O nosso parque de estacionamento era algo formidável. Os carros dos brasileiros, então, nem se fala.

Lembra-se do seu carro?

[Risos] Tinha um Fiesta vermelho, muito antigo. Foi o meu primeiro carro. Lembro-me que uma vez fui com a minha família ao Porto, para levar a minha filha bebé ao médico e estacionei ao lado das Antas. Estava a haver treino aberto, quando saí do carro, vi os jornalistas e os adeptos a virem na minha direção e a rodearem o carro. Pensavam que eu estava ali para negociar com o FC Porto. E eu naquele carro, ainda para mais vermelho. Foi muito engraçado.

O que é curioso é que o Paços não dava assim grandes condições, mas as pessoas gostavam de lá estar, não era?

Eu sou suspeito para falar, porque foi meu primeiro clube em Portugal, é uma terra que eu amo do fundo do meu coração, é o meu clube em Portugal. Foi ali que tudo começou, a minha filha nasceu em Paços, a minha família inteira ama a cidade. Era um clube humilde, mas era fantástico, adorava passear pela terra e conversar com toda a gente.

E aqueles treinos de manhã em janeiro com aquele frio que até cortava?

Aqui no Rio Grande do Sul também faz frio, mas não tanto como em Paços. Paços é um frigorífico, é um congelador. Lembro-me que não havia telemóveis e para telefonar para o Brasil tínhamos de caminhar pela rua à noite, por causa dos fusos horários, até à cabine telefónica e apanhávamos muito frio. Enfim, boas memórias. Éramos recém-casados e tudo era uma aventura.

Depois no final da época aparece o FC Porto, não é?

Eu tive bastantes propostas, da Coreia, do At. Madrid, do Celta de Vigo. Na altura a língua pesava muito para nós, a minha filha tinha um ano, por isso fiquei à espera de alguma coisa de Portugal. O meu empresário falou comigo para acertarmos com um clube de Espanha e quando estávamos nisso apareceu o FC Porto. Resolvi tudo em dez minutos. Foi receber a proposta e assinar.

A proposta era boa, portanto?

Não, a proposta era jogar no FC Porto. Só jogar num clube como o FC Porto, qualquer proposta já estava bem. Eu só queria jogar futebol e jogar num clube assim era um sonho.

E como foi a aventura no FC Porto?

As pessoas têm uma ideia errada, acham que não consegui jogar muito e tal, mas a verdade é que estive num clube muito grande, um clube de ponta, ao lado de grandes jogadores. Para a minha posição, por exemplo, havia Deco e Alenitchev. É verdade que o clube não ganhou o campeonato, então não era um ambiente em si não estava propício. Mas não me arrependo, foi muito bom, até porque ainda peguei a metade da época com Mourinho. Fui convocado para todos os jogos da Liga dos Campeões, viajei por toda a Europa, conheci muitos lugares, muitos estádios.

Na chegada ao FC Porto apanhou o Octávio Machado, não foi?

[Risos] Foi.

Foram tempos complicados?

Meu Deus do céu, aquele homem era muito complicado. Estava ali num grande clube, tinha uma grande equipa e perdeu-se ali em outras coisas. Por isso eu digo que o ambiente não era o melhor, entende?

Sim.

Foi ali uma altura complicada. Por isso ele acabou por sair. Houve uma altura em que fomos jogar a Glasgow, um jogo da Liga dos Campeões contra o Celtic, estávamos ali a aquecer e a conversar, normal. Então ele entrou no campo e andava no meio dos jogadores, a escutar as conversas. Isto antes de um jogo da Liga dos Campeões. Não queríamos acreditar. Por isso aquela equipa não podia dar certo. Não tinha como dar certo. O futebol estava a mudar e já exigia outras coisas. Por isso o Mourinho chegou e tudo mudou.

Com Mourinho foi como passar do oito para o oitenta?

Foi passar do oito para mil. O Mourinho é um treinador de excelência. Era uma pessoa maravilhosa para dentro do grupo, que conseguia tirar o melhor de cada jogador. Os treinos dele eram fantásticos. Os jogadores normalmente não gostam de treinar, com o Mourinho toda a equipa gostava de treinar. Tudo era uma novidade, os métodos eram todos novos e ele fazia-nos gostar daquilo. O preparador físico também era fantástico, como é que ele se chamava?

Rui Faria.

Isso, Rui Faria, era um menino, era mais novo do que nós. Mas o trabalho que fazia era muito bom. Tínhamos prazer naquilo que fazíamos.

Mas acabou por ficar apenas meio ano com Mourinho...

Eu tive muito azar com Mourinho. Ele disse-me que ia ser titular frente ao Gil Vicente e eu estava muito bem no jogo, mas aos vinte minutos lesionei-me. Para mim foi complicado. Eu queria ganhar um lugar, o treinador queria ver-me, estava bem e falhei o resto da época. Depois o Mourinho contratou o Derlei, Nuno Valente, Jankauskas e começou a fazer sondagens para eu sair.

O Mourinho falou consigo para sair?

Sim, sim. Chamou-me, disse-me que não contava comigo, que gostava que eu jogasse, que melhor seria sair e talvez no futuro até pudesse voltar.

É nessa altura que vai para o V. Guimarães, que memórias guarda do Vitória?

Eu tenho dois amores, o Vitória é um clube que te marca. É um clube fantástico, gigante, tem uma cultura peculiar de toda a gente torcer pelo clube, ali ninguém é dos grandes, e eu achava isso muito bonito. Não é possível não sentir o clube e não sentir a cidade com aquele ambiente. Em Guimarães rapidamente me tornei um vimaranense, entrei de cabeça no projeto do clube e tornei-me um adepto dentro do relvado.

Foi uma ligação assim tão forte?

Foi, foi. Uma ligação muito forte com os adeptos, sentia muito a vibração dos adeptos e dentro do campo exagerei algumas vezes [risos].

Porque é que se ri quando diz que exagerou algumas vezes?

Porque exagerei de facto, mas eu sentia muito as coisas.

Estou a lembrar-me de uma imagem que ficou célebre, quando o Rafael no final de um jogo agrediu o João Pereira. Lembra-se?

Portugal inteiro lembra-se disso. O João Pereira era um jogador do chato, um jogador muito chato. Eu na altura era mais velho, tinha uns 29 anos. Ele passou o jogo todo a mandar bocas ao Targino, que era um menino de 19 anos. Passou o jogo a chatear o Targino e eu sempre a pedir-lhe: ‘Deixa o miúdo jogar, deixa o miúdo jogar’. No fim ele disse-me alguma coisa, que me ia partir ou qualquer coisa do género. E aí aconteceu aquilo, eu não pensei. Na altura não pensei.

Perdeu mesmo a cabeça...

Lembro-me que fui o melhor em campo, mas estava furioso. O futebol é uma coisa que se sente muito e o que me irritou ali foi a maneira como ele falou com o menino. Não havia necessidade daquilo. Só porque estava no Benfica? Então fiz aquilo que a maioria dos jogadores do futebol português queria fazer e não fizeram [risos].

No Vitória também foi treinado por Jorge Jesus, que viria a dar muito que falar, não é?

Esse gajo, o Jorge Jesus... Ele e o Mota foram os melhores que eu tive. Sabe porquê. Porque eram treinadores de coração. Punham o coração no que faziam e traziam os jogadores para junto de si. O Jesus era muito engraçado, com aquela forma de ele falar e com aquele temperamento, mas ele entende muito de futebol. O trabalho dele era fantástico e era um trabalho que toda a gente gostava de fazer. O trabalho de campo de Jorge Jesus era muito bom. Com ele o treino ficava mais leve.

Vocês já imaginavam se ele tivesse uma oportunidade podia chegar onde chegou?

O que a malta toda comentava é que ele só precisava de alguém que acreditasse nele. Se calhar pela maneira dele ser, as pessoas não o levavam muito a sério. Mas ele só precisava de uma oportunidade, porque o trabalho dele era muito, muito bom. O Sp. Braga deu-lhe essa oportunidade e ele agarrou-a. Para nós não foi uma surpresa, há mérito dele, porque trabalhava muito bem.

Hoje que está de regresso ao Brasil, o que é que Portugal significa?

Eu estou muito grato a Portugal, foi um país que me deu tudo. A única pena que tenho é o meu menino Veron não ter nascido aí também. A minha filha Rafaela é portuguesa, a minha esposa Julie adora Portugal, é um país pelo qual todos nós temos muito carinho. Estive aí seis ou sete anos, é um país ótimo para se viver e hoje, que tenho uma agência de representação de jogadores, digo sempre aos meus atletas que para irem para a Europa deviam entrar por Portugal.

 

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