A nova vida das deputadas não inscritas

27 mar 2022, 10:00

O país prepara-se para receber um novo Parlamento. Na última legislatura, contou com duas deputadas não inscritas. À CNN Portugal, Cristina Rodrigues admitiu que o mais doloroso foi separar-se do PAN. E, entretanto, anunciou que vai ser assessora parlamentar do Chega. Já Joacine Katar Moreira confessa que se sentiu "usada" pelo Livre e que não esperava tamanha "violência" por parte de colegas deputados

Há momentos que acabam com todas as dúvidas. Foi assim na tarde de 27 de outubro de 2021, quando o Orçamento do Estado para o ano seguinte foi chumbado. Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira tomaram consciência de que as suspeitas das semanas anteriores eram agora uma realidade. Sem partido, e com o Parlamento dissolvido em breve, estava aberta a porta de saída, para as duas deputadas com o estatuto de não inscritas.

“Fiquei surpreendida, porque achava que em algum momento ia haver uma alteração”, conta Cristina Rodrigues, que chegou ao hemiciclo pelas mãos do PAN, eleita no círculo de Setúbal. Havia de ser a segunda deputada não inscrita na legislatura. A primeira foi Joacine Katar Moreira, apenas três meses depois de ter entrado na Assembleia da República, altura em que o Livre lhe retirou a confiança política.

“Organizei-me, mentalizei-me de que isto não seria uma legislatura para quatro anos, porque exigiria um entendimento monumental à esquerda. Mas, numa altura como esta, para mim, foi uma irresponsabilidade o chumbo do Orçamento”, diz Joacine, que se absteve. Sem a política como atividade principal, começava ali um caminho para perceber o que fazer a seguir.

Cristina Rodrigues foi eleita pelo PAN em 2019, no círculo de Setúbal

Cristina num novo partido, Joacine a escrever

A porta de saída, Cristina Rodrigues acabou por transformá-la numa porta giratória, ao anunciar esta semana que seria assessora parlamentar do Chega. Há um mês, quando gravou a entrevista com a CNN Portugal, garantia que a vida política ia ficar em segundo plano: “Neste momento, a vida política fica mesmo adormecida. Não consigo, para já, estar a associar-me imediatamente, no sentido de me tornar militante, a nenhum partido. Não excluo isso no futuro, mas para já não tenho intenções de o fazer”.

Questionada na altura sobre se, no atual espetro político, encontrava um partido que lhe pudesse servir de casa, foi perentória: “Pois, por isso é que não o consigo fazer neste momento. É algo que deve ser pensado com mais calma, tranquilidade, até porque não sou muito apologista da pessoa andar a saltitar”.

Agora, ao saber-se que vai trabalhar com o partido de André Ventura, e em troca de mensagens com a CNN Portugal, insiste que “nada mudou”: “A relação é profissional. Vou ser assessora parlamentar do Chega, não me filiei”.

O plano inicial, além do comentário político na televisão, era dedicar-se ao doutoramento em Ciências Jurídico-Criminais. Porque esta advogada, conhecida como “a deputada ativista”, queria continuar a missão que a trouxe à política. “O meu tema de estudo vai ser a violência de género. Neste momento, será esse o meu foco”.

Já Joacine Katar Moreira conta que aprendeu “a não ter ansiedades” quanto ao futuro".

Antes de ser deputada, era investigadora numa universidade em Lisboa. Agora que sai, não tem plano definido. A prioridade de cada manhã é tratar da filha, antes de um novo dia de escola. “A seguir escrevo imenso, o dia inteiro”.

Quanto à política, Joacine confessa que preciso tempo para “recuperar”. E resume o sentimento em duas respostas breves, dadas de seguida. Sentiu-se usada? “Absolutamente, absolutamente”. Mas voltaria a fazer parte de um partido? “Obviamente que sim, obviamente que sim”.

Joacine Katar Moreira foi eleita pelo Livre em Lisboa. Três meses depois, o partido tirou-lhe a confiança política

Uma “experiência dolorosa” e um “alto nível de violência”

É tempo de balanços. Há muito que os gabinetes foram entregues, para que outros deputados os possam ocupar. As falhas na contagem dos votos do círculo da Europa adiaram esse momento um mês. Agora recorda-se tudo, até o que custou mais.

“O que foi menos bom, necessariamente, foi ter-me desvinculado do meu grupo parlamentar. Foi algo que eu assumi que tinha de acontecer. Fi-lo porque senti que não tinha outra hipótese, mas obviamente que foi uma experiência dolorosa”, reconhece Cristina Rodrigues.

A adaptação à condição de não inscrita não foi difícil porque, diz, porque já conhecia o funcionamento da Assembleia da República – na legislatura anterior, tinha sido chefe de gabinete de André Silva, então porta-voz e deputado único do PAN. Mas, para Joacine Katar Moreira, perceber as regras (sobretudo as informais) não foi tarefa fácil. A ela, diz, nunca se aplicava o mesmo que aos restantes. Viu-se sem voz em vários momentos, como no dia em que todos comemoravam a liberdade em 2020:

“Eu não estava à espera deste alto nível de violência. Nem era já uma violência disfarçada. Para mim, foi muito mais violento os partidos de esquerda rejeitarem que eu participasse na comemoração do 25 de abril do que André Ventura, um indivíduo oportunista, mandar-me para a minha terra”.

Entrevista a Cristina Rodrigues teve lugar no Salão Nobre da Assembleia da República

O divórcio em praça pública

Os dois partidos que as elegeram voltam a sentar-se no Parlamento. Cada um com um deputado. O PAN repete Inês de Sousa Real. O Livre estreia Rui Tavares. A decisão foi dos portugueses e isso não se questiona – o que não significa que não fiquem mágoas quanto aos partidos a que outrora chamaram casa.

“O PAN estava com sondagens que lhe davam 1% ou 2%. Até chega a ser um bocado ridículo dizer que quer ir para o governo e que tem pessoas para todos os ministérios. É um bocadinho falta de noção”, reage Cristina Rodrigues, perante a redução da bancada do partido ecologista, de três para um deputado. Eram quatro quando ela ainda fazia parte da equipa.

Para Joacine, imaginar Rui Tavares no lugar que já foi dela não é algo estranho. Faz antes parte, diz, de uma estratégia antiga: “É absolutamente inesquecível a atitude e o comportamento de um partido que, logo depois da eleição, ainda na noite eleitoral, andou a arquitetar maneiras de me afastar e de meterem lá alguém no meu lugar”.

Joacine, que já tinha entregue o gabinete, pediu para ser entrevistada fora da Assembleia da República

As propostas que ficaram pelo caminho

Quando cai um Parlamento, caem também muitas das propostas dos deputados que o constituíam. Na última legislatura, Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira afirmaram-se, cada uma, com causas próprias. A primeira pela igualdade de género, a segunda pelo combate ao racismo.

“Esta legislatura é a legislatura que nos mostrará se existe ou não um Partido Socialista pela igualdade absoluta, antirracista. Não há desculpas para continuarmos a ter legislação que não combate o ódio racial”, traça Joacine. Por isso, se pudesse deixar uma medida, em jeito de recado à maioria absoluta socialista, sabe bem qual seria: a alteração do artigo 250º do Código de Processo Penal, que dá poder às autoridades policiais para abordar indivíduos que possam corresponder ao perfil de um imigrante em situação irregular com base na cor da pele. “Em 99% das vezes, é um indivíduo oriundo de África”. Negro.

Já Cristina Rodrigues, se tivesse de recuperar trabalho como deputada, seria uma proposta relacionada com a prescrição dos crimes sexuais contra menores. “Neste momento, é de cinco anos. É manifestamente insuficiente”, justifica. Seja qual for a medida, para passar no Parlamento que toma posse na próxima terça-feira, precisa da luz verde dos socialistas. “O PS tem a faca e o queijo na mão. António Costa diz que vai continuar a dialogar. Mas há uma diferença entre ‘ter que’ ou ‘querer’”, reforça a antiga deputada do PAN.

Mas para Joacine, “antes uma maioria absoluta do PS do que uma eventual geringonça à direita”. Porque essa geringonça dependeria do Chega? “É isso mesmo, é isso mesmo”.

Cristina Rodrigues estava habituada a estes corredores. Vai continuar neles como assessora do Chega

 

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