Surpreendente seria se a procuradora-geral da República Lucília Gago não fosse a responsável por aquele comunicado, dizem os especialistas ouvidos pela CNN Portugal
Os especialistas em justiça não parecem surpreendidos com a revelação de que a decisão de incluir a referência à investigação do primeiro-ministro no comunicado da Procuradoria-Geral da República sobre a operação Influencer foi tomada pela própria procuradora-geral, Lucília Gago, como informou esta sexta-feira o jornal Expresso.
É normal ser a própria procuradora-geral da República a escrever um comunicado ou parte dele? "É mais do que normal", responde, sem hesitar o advogado Paulo Saragoça da Matta. "Parece que toda a gente se esqueceu da função, estatuto e papel do procurador-geral da República (PGR): é o defensor do Estado e tem a auxiliá-lo um corpo de procuradores-gerais adjuntos e procuradores da República espalhados por todo o país. Existem também os conselhos superiores, que são órgãos que ajudam o PGR a tomar decisões. Mas a responsabilidade última e o poder total para determinar quem investiga e o que investiga é sempre do PGR. Por isso, é absurda a teoria de alguns procuradores da República e mesmo juízes de que um procurador-geral não tem um poder hierárquico geral sobre todos os procuradores do país. A senhora procuradora pode pedir que os serviços do DCIAP ou da PGR lhe preparem um comunicado e pode revê-lo, alterá-lo ou escrevê-lo de novo com o seu próprio estilo", afirma à CNN Portugal Saragoça da Matta.
Como é óbvio, não será a procuradora-geral a escrever todos os comunicados de imprensa, mas este não era um comunicado igual a tantos outro. "Acredito que este comunicado foi pesado até à ínfima grama, que foram pesadas todas as consequências", tinha dito há dias à CNN Portugal o advogado João Massano.
O advogado António Raposo Subtil concorda e vai mais longe: "O que não é normal é que aquele comunicado seja assinado pelo gabinete de imprensa. Um gabinete de comunicação pode enviar comunicados sobre factos genéricos, mas, quando transmite decisões, estas devem ser atribuídas a alguém que as tenha aprovado. A grande falha foi ter sido feito este comunicado como se fosse um comunicado normal, sem essa atribuição." Portanto, e ainda por cima sabendo-se que no dia dos acontecimentos a procuradora-geral esteve reunida com o Presidente da República, aquele comunicado só faz sentido se se partir do princípio que foi assumido pela própria procuradora-geral: "Em face da natureza do processo, aquele comunicado tem de ser dela, não um só parágrafo mas todo o comunicado", afirma este advogado à CNN Portugal.
Sobre a relevância do último parágrafo do comunicado já quase tudo foi dito e a opinião dos analistas é de que ele não deveria ter existido ou, pelo menos, não deveria ter existido com aquela formulação. De acordo com a notícia do Expresso, Lucília Gago decidiu acrescentar aquele parágrafo porque "temeu que o MP pudesse ser acusado de estar a proteger António Costa quando se soubesse - e isso seria inevitável - que estava a ser investigado por um procurador do Supremo Tribunal de Justiça".
Ou seja, como conclui Saragoça da Matta, a própria procuradora-geral da República admite que é impossível manter o segredo de justiça. O advogado manifestou logo o seu "espanto" pelo teor daquele parágrafo. "Acho que não era necessário e que nos termos da lei é ilegal o MP escrever aquele parágrafo, porque uma investigação daquela natureza estaria claramente sujeita a segredo de justiça e a revelação da sua existência poderá ter comprometido a continuação da investigação do MP em conjunto com o STJ", explica novamente à CNN Portugal.
"Em segundo lugar", acrescenta, "o comunicado poderia perfeitamente respeitar apenas ao processo em que as diligências estavam a ser desenvolvidas, não cabendo sequer ponderar que mais tarde se viria a saber da existência desse outro processo por ser a assunção clara de que não se consegue conservar o segredo de justiça e por esquecer que mesmo em processo penais públicos há elementos dos autos que podem ser considerados secretos e guardados em cofres dos MP ou dos tribunais. Foi o que aconteceu com documentos alegadamente sujeitos a segredo no processo das Secretas e é o que acontece a dados relativos à intimidade de crianças em processos que correm em todo o país".
Também é verdade que, a partir do momento em que iam ser constituídos arguidos e estes têm acesso ao processo, não demoraria muito a que fossem encontradas as referências ao primeiro-ministro. A procuradora-geral da República poderia não prever que António Costa se iria demitir, como disse Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do MP em entrevista ao Expresso, mas a pergunta que todos fazem é: a demissão aconteceu mesmo por causa daquele parágrafo? A resposta a esta pergunta estará sempre no domínio da especulação. Muitos são os que consideram que mesmo sem aquele parágrafo, Costa já não teria condições políticas para continuar como primeiro-ministro. Como disse o politólogo José Filipe Pinto à CNN Portugal, "a demissão não se deve àquele parágrafo no comunicado da Procuradoria-Geral da República mas decorre de um Governo que se tornou disfuncional, que acumulou erros sucessivos".