Por que razão os aviões podem, em breve, ter apenas um piloto

CNN , Jacopo Prisco
1 fev 2022, 19:00
Um simulador de voo a reproduzir o cockpit de um Boeing 737 no Air Show de Paris, em 2011. Foto: JOEL SAGET/AFP via Getty Images

Várias aeronaves menores ou militares já são operadas por um único piloto, mas para a aviação comercial isso seria como aventurar-se num mundo desconhecido

Se embarcássemos num avião de passageiros em 1950 e espreitássemos para dentro do cockpit, veríamos cinco pessoas lá dentro (quase de certeza homens): dois pilotos, um operador de rádio, um navegador e um engenheiro de voo.

Ao longo dos anos, os avanços técnicos nas comunicações por rádio, sistemas de navegação e equipamento de monitorização a bordo foram gradualmente retirando a necessidade dos últimos três tripulantes, tornando possível pilotar em segurança um avião de passageiros com apenas dois pilotos. É essa a norma na aviação comercial há cerca de 30 anos.

Porém, em breve, as coisas podem tornar-se ainda mais aperfeiçoadas e um dos dois pilotos restantes – tecnicamente o primeiro-oficial – pode ir-se embora, deixando ficar apenas o comandante. Várias aeronaves menores ou militares já são operadas por um único piloto, mas para a aviação comercial isso seria como aventurar-se num mundo desconhecido.

Uma transição complexa

“A transição de dois pilotos no cockpit para um único piloto no cockpit será um desafio significativamente maior do que as transições de um cockpit com cinco pessoas para apenas duas”, diz um estudo de 2014 sobre operações com apenas um piloto realizado pela NASA, que durante mais de uma década investigou o assunto. De acordo com o mesmo estudo, uma transição corretamente implementada pode “permitir poupanças nos custos operacionais, ao mesmo tempo que mantém um nível de segurança não inferior às operações comerciais convencionais com dois pilotos”.

Mas como é possível descartar em segurança um dos pilotos? Uma das soluções é aumentar grandemente a automação no cockpit, entregando mais tarefas aos computadores. Outra é transferir as mesmas tarefas do cockpit para terra, ficando o piloto restante a trabalhar como membro de uma “tripulação distribuída”.

Esta última abordagem parece mais viável, pelo menos no curto prazo, porque grande parte do que é necessário para a implementar já existe. “Tecnologicamente, podemos argumentar que em muitos casos já o fazemos”, diz Patrick Smith, piloto comercial de um avião Boeing 767 e autor do popular livro e blogue “Ask the Pilot”.

“Mas ao fazer isso”, continua, “eliminam-se determinadas redundâncias e isso é algo que me custa porque a minha vida é pilotar aviões e, mesmo com dois pilotos no cockpit, há sempre muitas coisas para fazer, a tal ponto que ambos podem ficar saturados.”

A tripulação de quatro homens do monoplano Southern Cross estuda um mapa da sua rota no aeroporto de Croydon, em junho de 1930. Da esquerda para a direita: o aviador australiano Charles Kingsford Smith, o copiloto Evert Van Dyke, o operador de rádio John Stannage e o navegador J. Patrick Saul. Foto: Keystone/Hulton Archive/Getty Images

Aumento da carga de trabalho

Num dos cenários propostos pela NASA, o piloto que ficaria no cockpit seria apoiado por um “superoperador” em terra, um piloto treinado que poderia supervisionar diversos voos ao mesmo tempo e inclusive controlar inteiramente o avião à distância caso necessário se, por exemplo, o piloto do cockpit ficasse incapacitado.

Outra opção seria o “piloto de porto”, um piloto também treinado, mas especializado num aeroporto específico, capaz de prestar auxílio aos diversos aviões à chegada e à partida desse aeroporto.

A NASA realizou testes para estas soluções ao colocar pilotos de tripulações reais em salas distintas, antes de lhes apresentar condições de voo difíceis num simulador de Boeing 737.

Todos os pilotos conseguiram aterrar os aviões em segurança, mas o estudo revelou “aumentos significativos na carga de trabalho” em comparação com operações regulares com dois pilotos, o que teve como resultado “avaliações de segurança subjetivas e desempenho significativamente degradado”. A falta das indicações visuais do outro piloto por vezes provocou confusão e incerteza sobre que tarefas tinham ou não sido realizadas.

Ter um só piloto a bordo poderia poupar dinheiro às companhias aéreas, mas apenas se os novos operadores em terra e a automação avançada não acabassem por ficar mais caros, diz a NASA. Outras pequenas poupanças adicionais podem vir de cockpits mais pequenos ou mais leves nos aviões do futuro.

Tripulação reduzida

Há também outra maneira de implementar operações com um único piloto, mas apenas em voos de longo-curso, que atualmente requerem um terceiro piloto que entra em funções quando um dos outros dois está a descansar.

Neste cenário, o terceiro piloto seria retirado e os restantes dois iriam operar normalmente durante a descolagem e a aterragem, mas fariam pausas alternadas durante a parte de cruzeiro do voo.

“Nesse caso, passam de dois pilotos a um piloto em certos regimes de voo”, diz Smith. “Mas nos outros regimes de voo e quando necessário, haveria sempre pelo menos dois pilotos. Estou aberto a essa discussão. Sou muito mais recetivo a essa discussão do que à ideia de retirar completamente um dos pilotos.”

Um avião A350-1000 da Cathay Pacific. Foto: Cathay Pacific

A Airbus e a Cathay Pacific já estão a testar isso no A350: “Estamos a realizar estudos sobre padrões operacionais da tripulação de cabina em voos de longo-curso”, confirmou um porta-voz da Airbus à CNN. “Estes estudos estão a decorrer e baseiam-se num mínimo de dois tripulantes operacionais por voo. Estão a ser realizados em conjunto com as autoridades reguladoras e com as companhias aéreas parceiras.” O objetivo é certificar o A350 para este tipo de operação no decorrer dos próximos anos.

A Cathay Pacific também confirmou o seu envolvimento como “uma das várias companhias aéreas envolvidas com a Airbus”, disse um porta-voz à CNN, e que “isto é um compromisso a longo prazo num projeto que ainda está na sua fase concetual”. Acrescentaram ainda que, mesmo que o conceito seja aprovado e incorporado no futuro, “todas as aeronaves da frota existente [da Cathay Pacific] estão certificadas para operar com um mínimo de dois pilotos a bordo e não há qualquer plano para reduzir esse número”.

Reações dos pilotos

As companhias estão a acelerar as operações com um único piloto não apenas por poderem poupar dinheiro, mas também devido à previsível escassez de pilotos que se avizinha.

A Boeing prevê a necessidade de 600 mil novos pilotos nas próximas duas décadas, mas algumas estimativas apontam uma falta de pelo menos 34 mil pilotos a nível mundial até 2025. Reduzir o número de pilotos em algumas tripulações ou aviões poderia ajudar a mitigar o impacto disso.

No entanto, o grupo que irá opor-se com maior firmeza será provavelmente o dos próprios pilotos.

“Isso é porque estamos a defender-nos a nós mesmos para salvar os nossos empregos, mas também porque sabemos bem como funcionam os aviões comerciais e a dimensão das tarefas que estão envolvidas”, diz Smith.

A Associação de Pilotos de Linhas Aéreas (ALPA), o maior sindicato mundial de pilotos comerciais, publicou um artigo em 2019 sobre os perigos das operações com um único piloto. Disse que a ideia era “prematura” e que se baseava em “muitas tecnologias dispendiosas e sem provas dadas”, e afirmou que “a componente de segurança mais crucial nos aviões da categoria de transporte atualmente e no futuro próximo é haver dois pilotos experientes, treinados e descansados no cockpit”.

O artigo também diz que nenhum sistema autónomo pode compensar um piloto incapacitado e que há muitos exemplos de incidentes em que foram necessários dois pilotos no cockpit para recuperar de avarias no equipamento que, de outra maneira, teriam resultado num desastre.

Um desses incidentes, frequentemente citado como um exemplo brilhante de colaboração no cockpit, foi em 2009, quando o voo 1549 da US Airways pousou sem feridos no Rio Hudson às mãos do Comandante Chesley “Sully” Sullenberger e do Primeiro-Oficial Jeff Skiles.

Também é referido frequentemente o voo 9525 da Germanwings, em 2015, durante o qual o primeiro-oficial se trancou no cockpit enquanto o comandante estava na casa de banho e despenhou intencionalmente o avião numa montanha no que parece ter sido um suicídio, destacando assim os riscos de deixar um único indivíduo aos comandos de um avião.

Seria capaz?

Aquele que pode ser o maior obstáculo no caminho para haver um único piloto será vender a ideia aos passageiros. Em 2019, Don Harris, professor de fatores humanos na Universidade de Coventry, no Reino Unido, organizou um grupo de referência e um inquérito sobre a perspetiva de voar num voo comercial com apenas um piloto.

Apenas 50% dos participantes disseram estar dispostos a apanhar esse voo e o consenso geral foi que retirar um piloto é “perigoso até ser provado que é seguro”. Os três fatores que pesaram mais no processo de decisão dos participantes foram o estado do piloto, a confiança na tecnologia e uma combinação entre o preço do bilhete e a reputação da companhia aérea, assinalando que a tarifa reduzida ajudaria a vender a ideia. No estudo, Harris concluiu que os voos aéreos com um único piloto só ocorrerão provavelmente daqui a 20 anos, mas desenvolvimentos a nível da legislatura podem tornar isso uma realidade mais cedo, se bem que apenas para aviões de carga.

Smith concorda: “Pode haver espaço para algo desse tipo na cadeia da aviação, com aviões pequenos ou operações de carga, operadores de táxis aéreos e charters. Mas implementar isso ao nível de uma grande companhia aérea ainda está muito distante.”

Segundo Richard Aboulafia, analista de aviação do Teal Group, a medida ainda vai demorar muitos mais anos, apesar de ser inevitável: “Não creio que a perceção dos passageiros seja muito importante, mas estabelecer ligações de dados garantidas e seguras com estações em terra é essencial e, obviamente, o tempo necessário para os reguladores e as seguradoras se sentirem à vontade com isto.”

No entanto, retirar um piloto do cockpit irá ajudar a desenvolver a tecnologia necessária para o passo final que se segue: retirar completamente os pilotos humanos e pilotar os aviões de forma remota ou autónoma. Porém, essa discussão parece ainda mais complicada: “De dois pilotos para um piloto é um grande passo”, diz Smith, “mas de um piloto para nenhum é um passo gigantesco”.

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