Tragédias como o incêndio fatal em um prédio na Mouraria e a agressão violenta a um imigrante nepalês em Olhão lembram o país que migrantes existem e enfrentam dificuldades graves que colocam em risco a própria vida
Nos campos agrícolas do Alentejo, que garantem o abastecimento dos supermercados. Nas salas e cozinhas dos restaurantes de norte a sul do país. Na construção dos grandes prédios que são vendidos por milhões de euros para estrangeiros ricos com golden visa. Nas limpezas dos locais de trabalho, de hospitais e ruas. Os migrantes que escolheram Portugal para viver, apesar de estarem em todos os lugares, muitas vezes são invisíveis aos olhos da sociedade, das leis, dos seus próprios semelhantes.
Tragédias como o incêndio fatal em um prédio na Mouraria, a agressão violenta a um imigrante nepalês em Olhão ou o espancamento de uma mãe angolana por agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) lembram o país que migrantes existem e enfrentam dificuldades graves que colocam em risco a própria vida.
Os casos citados são camadas de problemas muito mais profundos que Portugal precisa reconhecer com urgência e promover soluções eficazes. O discurso oficial recorrente é que o país precisa de migrantes, especialmente nos empregos mal remunerados, rejeitados pelos portugueses.
Essa importância não é traduzida na realidade: demora para obter documentação, falta de habitação digna e acessível, burocracia do serviços públicos, especialmente na saúde, escravidão moderna do mercado de trabalho, baixos salários, sensação de insegurança diante dos portugueses e das próprias autoridades policiais e xenofobia são algumas das realidades vividas pela comunidade migrante em Portugal, da qual faço parte. As tragédias que ganham as manchetes dos jornais portugueses e do mundo são resultado desses fatores, unidos ou separados.
A excelente reportagem da CNN Portugal sobre os migrantes que vivem na Mouraria é exemplo de como essas situações levam à marginalização de seres humanos, vistos por muitos como inferiores ou não merecedores dos direitos mais básicos. É justamente essa visão, associada ao fato de saber que os estrangeiros precisam de dinheiro para se manter e estão em uma situação mais vulnerável, que leva empresários a não pagar nem mesmo o salário mínimo.
Se com um ordenado de 760 euros é difícil ter uma casa digna para morar, imaginem com 200 euros? Com esse valor, consegue-se, no máximo, uma beliche em um quarto superlotado, como era no apartamento que ardeu em chamas, matando duas pessoas e ferindo 14, todas migrantes. Sem um salário que corresponda ao que está na lei e ao trabalho desempenhado, o trabalhador ou trabalhadora mal pode descansar após uma exaustiva jornada laboral:
“São muitas pessoas, não é possível ter intimidade e as casas não são boas, têm humidade e às vezes até têm pulgas, não são limpas… Quem é que quer viver assim? Ninguém. Mas não temos dinheiro para pagar uma casa”, relatou um cidadão de Bangladesh à CNN Portugal.
A demora para obtenção da Autorização de Residência (AR) também é um fator que prejudica a vida dos cidadãos. No período de dois anos ou mais em que espera pelo documento, as chances de conseguir um contrato de trabalho diminuem muito, reduzindo também a possibilidade de firmar um contrato de aluguel. “É uma pescadinha de rabo na boca”, como diz o ditado português.
Só quem é migrante sabe da importância de ter uma Autorização de Residência, não só pelas condições de direito e emprego que ganham chances melhores: é como se passássemos a existir no país. Não é à toa que o cidadão nepalês covardemente agredido em Olhão, enquanto sofria chutes, pontapés e socos, implorou para que os agressores não furtassem os seus documentos, uma das poucas coisas que tinha na mochila.
O caso de Nirmal, de 26 anos, só ficou conhecido por existir um vídeo que comprova as agressões. A violência é brutal e causa um misto de revolta e tristeza por saber que existe quem pratica, quem aprova e quem defende esse tipo de crime. Basta abrir qualquer caixa de comentários nas redes sociais para ver xingamentos contra a vítima e afirmações falsas de que algo deve ter feito para ser agredido com tanta violência.
Essa parcela da sociedade, não coincidentemente simpatizante da extrema-direita, possui ódio sem sentido contra nós migrantes. O presidente Marcelo Rebelo de Sousa fez uma excelente atitude em visitar a vítima e pedir desculpa em nome dos cidadãos portugueses.
“Não há nada que justifique esse tipo de tratamento desumano, antidemocrático e criminoso, que não pode ser aceite na sociedade portuguesa”, declarou o presidente. A atitude foi um gesto muito importante para mostrar ao país que esses crimes não podem ser tolerados nem normalizados.
Que os problemas que o país precisa encarar não sejam relembrados na próxima tragédia que envolva os migrantes. Afinal, habitação digna, saúde, segurança, bom atendimento no serviço público e andar nas ruas sem sentir medo de agressão simplesmente pela nacionalidade são direitos, não é nada de extraordinário. É preciso vontade política, mas, acima de tudo, humanidade, para que Portugal seja, de fato, um país acolhedor com quem contribui para o crescimento da nação.
* Amanda Lima escreve a sua opinião em Português do Brasil