Mouraria. No bairro do fado, dos talhos 'halal' e do cheiro a caril, as pessoas vivem em condições "tão miseráveis porque não têm alternativas"
Rua do Benformoso, Mouraria (Foto: Rodrigo Cabrita)

Mouraria. No bairro do fado, dos talhos 'halal' e do cheiro a caril, as pessoas vivem em condições "tão miseráveis porque não têm alternativas"

Texto
Maria João Caetano

Fotografia
Rodrigo Cabrita

Há uma semana, um incêndio na Mouraria matou duas pessoas e deixou a nu os problemas do alojamento ilegal dos imigrantes. Uma consequência direta da crise de habitação que se vive na capital, agravada pelo facto de estarmos perante pessoas em extrema fragilidade social e económica

“Ai, Mouraria 
dos rouxinóis nos beirais, 
dos vestidos cor-de rosa,
dos pregões tradicionais.
Ai, Mouraria
das procissões a passar,
da Severa em voz saudosa,
da guitarra a soluçar.”
(Fado “Ai, Mouraria”, letra de Amadeu do Vale e música de Frederico Valério, popularizado por Amália)

Existe aquela ideia da Mouraria como bairro típico, com fados e guitarradas a cada esquina. Foi naquele bairro que moraram a Severa e José Maurício, é ali a rua do Capelão, cantada por Amália. Mas basta passar duas ruas, descer uns degraus e a Mouraria já é outra. Afastada do reboliço da modernidade durante muito tempo, com casas antigas mas acessíveis e óptima localização, no centro da cidade, a Mouraria tornou-se, na segunda metade do século XX, local de acolhimento para muitos dos que vinham de fora à procura de trabalho em Lisboa. Primeiro, vindos das antigas colónias, depois do Oriente, da China e, mais recentemente, do subcontinente asiático - o chamado Hindustão, região que engloba países como o Bangladesh, o Nepal, a Índia e o Paquistão.

“Quando cheguei, a rua do Benformoso era metade dos africanos e metade de outros imigrantes, sobretudo da Ásia, e também de traficantes de droga, prostitutas, marginais. Mas cada vez vieram mais asiáticos e compraram lojas. Hoje há cada vez menos africanos. A rua tem menos crime mas é só dos asiáticos”, conta Rajib.

Rajib chegou a Portugal em 2012. Estava no Reino Unido a estudar contabilidade e gestão quando veio visitar amigos e acabou por preferir ficar num país com sol e temperaturas amenas, mais parecido com o seu Bangladesh. “Em poucos meses tive os meus documentos de residente. Nessa altura, era muito mais fácil”, conta. “Agora, há muito mais imigrantes, por isso é mais difícil.” Apesar disso, as pessoas continuam a vir. Ser imigrante não é fácil, mas, pondo na balança os prós e os contras, Rajib, que tem uma loja de souvenirs no miradouro de Santa Luzia, afirma que não se arrepende de ter vindo. “Não é fácil, mas as pessoas, de uma maneira geral, são muito acolhedoras. Os imigrantes sentem-se em casa. Há alguns incidentes, mas não são comuns. Dou-me muito bem com os portugueses, tenho muitos amigos portugueses e adoro viver aqui.”

A rua do Benformoso é a mais movimentada rua da Mouraria. Aqui não há fados nem sandes de torresmos. Entre o Martim Moniz e o Largo do Intendente, multiplicam-se os talhos “halal” (termo árabe que significa que a carne é certificada para o consumo da comunidade islâmica), agências de viagem, lojas de câmbio e transferências, restaurantes com sabores (e cheiros) orientais, barbearias, minimercados, bazares e lojas diversas, quase todas propriedade de nepaleses, paquistaneses, indianos e bengalis. Percorrer a rua é quase como estar num país distante, praticamente não se ouve falar português. O movimento é intenso. As pessoas param à porta das lojas, acomodam-se num canto, ao sol ou à sombra, a conversar. É quase como uma praça em formato de rua, ponto de encontro para quem procura emprego ou para quem procura trabalhadores, para quem chegou sozinho e precisa de contactos, para quem quer saber novidades de casa, para quem saiu do trabalho e passa ali, para tomar uma bebida e ver os amigos antes de voltar para casa.

“Se as pessoas não têm casa ou se não têm uma casa confortável, passam mais tempo na rua, porque é aqui que convivem e que se sentem bem”, explica Farhana Arkter, mediadora cultural que veio do Bangladesh para Lisboa há três anos. A rua torna-se uma espécie de sala-de-estar.

Segundo um estudo da associação Renovar a Mouraria, apresentado em janeiro, Nepal, Bangladesh e Paquistão são neste momento os países de origem mais comuns no bairro e as principais línguas maternas são o português, o bengalês, o nepalês e o urdu. Entre os migrantes inquiridos falam-se 40 línguas maternas.

Estes migrantes estão na sua maioria entre os 18 e os 35 anos (53%), são mais homens do que mulheres (54% versus 45%), são casados (48%), cuidadores ou encarregados de educação (78%).

Facilidade em conseguir-se documentos, procura de melhor qualidade de vida e reagrupamento familiar oficial foram os principais motivos que trouxeram estes migrantes a Lisboa. A cidade foi a primeira escolha para 70% dos imigrantes. 84% dos imigrantes querem ficar aqui. E muitos têm projetos para o futuro, como abrir um negócio ou trabalhar no seu desenvolvimento profissional.

Rajib, imigrante do Bangladesh, residente na Mouraria. Foto: Rodrigo Cabrita

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“Quem é que quer viver assim? Ninguém”

Foi há uma semana, no sábado, muito depois de o sol se pôr. Rajib estava a voltar das orações da noite quando, já perto de casa, na rua do Terreirinho, viu o fumo e sentiu o cheiro a queimado. “O fogo não era muito grande ainda, o problema é que as pessoas não estavam a conseguir sair”, conta.

O problema é que o rés-do-chão, que deveria ser uma loja, estava a ser usado como alojamento. As portas que dão para a rua estavam trancadas, reforçadas com placas metálicas do lado de fora, atravancadas com beliches do lado de dentro. E, como o fogo teve início num curto-circuito na caixa da eletricidade mesmo junto à porta que dá para as escadas, também não era possível sair por aí. “As pessoas tiveram de partir a parte de cima das portas e, com muita dificuldade, conseguiram sair”, conta Rajid, que esteve lá, nesse primeiro momento, a ajudar no que foi possível, até à chegada dos bombeiros. Nessa noite, 14 pessoas ficaram feridas e duas pessoas morreram, uma das quais um adolescente. 22 pessoas ficaram desalojadas. Todas imigrantes.

A proprietária daquele rés-do-chão direito garante que alugou o espaço por 750 euros e que não sabia de nada. Mas rapidamente se percebeu que se estava perante um alojatento ilegal, em regime de subarrendamento, onde, num pequeno espaço e com poucas condições, moravam cerca de 20 imigrantes. “Passo ali todos os dias e nunca tinha percebido que era um abrigo para pessoas indianas. Não sabemos o que se passa dentro dos prédios”, diz Rajib.

Prédio onde houve um incêndio, na rua do Terreirinho, na Mouraria, Lisboa. Foto: Rodrigo Cabrita

Não sabíamos? O incêndio deixou à vista uma situação que é conhecida de todos, embora oficialmente ninguém saiba de nada. Aconteceu ali, poderia ter acontecido num outro prédio, dos muitos nas freguesias de Santa Maria Maior e de Arroios onde se julga que existam este tipo de alojamentos. Casas que são transformadas em dormitórios, onde os quartos levam tantas pessoas quantas as camas que for possível acomodar. O preço por cama pode variar entre os 150 e os 300 euros, dependendo do número de inquilinos. “Um quarto com seis pessoas aqui na Mouraria custa 200 euros”, assegura M., que chegou do Bangladesh há dois anos e trabalha num restaurante na rua do Benformoso. “São muitas pessoas, não é possível ter intimidade e as casas não são boas, têm humidade e às vezes até têm pulgas, não são limpas… Quem é que quer viver assim? Ninguém. Mas não temos dinheiro para pagar uma casa.” M. mudou-se para a zona do Oriente, onde partilha um quarto com um amigo. “É um bocadinho melhor.”

“Esta falta de condições de habitação era silenciosamente conhecida pela generalidade do bairro, sem que soubéssemos como agir para a mudar, sem que obtivéssemos testemunhos abertos sobre ela”, admitiu em comunicado, esta semana, a Associação Renovar a Mouraria, que trabalha há 15 anos com a comunidade e é uma mão sempre estendida a todos os que chegam ao bairro. “Este incêndio foi a face dramaticamente visível dos complexos problemas que atualmente habitam Lisboa e a Mouraria, bairro onde vivem mais de 50 nacionalidades diferentes e onde se falam mais de 40 línguas, e cujas populações migrantes experienciam camadas extra de injustiça social. Se o acesso a habitação e trabalho dignos são direitos em causa para todas e todos, há pessoas migrantes que têm uma dificuldade redobrada nesse acesso, já que a migração implica um processo de reintegração num novo sistema social no país de destino”, explica a associação.

04
Em cinco anos o número de imigrantes quase que duplicou

Segundo os dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), em 2021 Portugal tinha 698 887 residentes estrangeiros. Destes, mais de 108 mil estavam no concelho de Lisboa. Entre eles, depois das comunidades brasileira, francesa e italiana, destacam-se os oriundos do Nepal (mais de 8 mil residentes), da China (mais de 6 mil) e do Bangladesh (perto de 6 mil).

Estes números referem-se a 2021 e deixam de fora todos os que não estão referenciados, o que permite pensar que hoje serão muitos mais os residentes estrangeiros.

Para se ter um termo de comparação, dez anos antes em 2011 o concelho de Lisboa tinha 45.626 imigrantes. Nessa altura, estavam registados apenas 711 cidadãos do Bangladesh, 1.784 da Índia, 853 do Nepal e 611 do Paquistão.

Em 2016, o concelho de Lisboa tinha pouco mais de 55 mil residentes estrangeiros. Isto significa que em cinco anos, o número de imigrantes quase que duplicou. Estavam então contabilizados pelo SEF 1.904 cidadãos do Bangladesh, 2.250 da Índia, 3.784 do Nepal e 729 do Paquistão.

05
“As pessoas vêm com grandes sonhos”

Quando Farhana Arkter veio do Bangladesh, não foi uma decisão fácil. “Foi preciso muita coragem”, admite. Era professora de inglês, tinha uma vida estável, não era infeliz. “Mas queria fazer qualquer coisa. Decidi vir, experimentar, e se não gostasse poderia sempre voltar para casa.” Foi preciso alguma coragem e algum dinheiro, admite. “Mas correu tudo bem.” Hoje em dia trabalha como mediadora cultural. Percorre as ruas da Mouraria distribuindo cumprimentos, metendo conversa, fazendo perguntas, dando respostas. Além do inglês e do bengali, também fala hindi e nepali e está a aprender português, o que lhe permite comunicar com pessoas de diferentes origens. “Um mediador é muito mais do que um tradutor. Não se trata só da língua, há muitas diferenças culturais, mesmo entre as pessoas destes países. Eu entendo essas diferenças, e por isso eles confiam em mim. Eu apoio as pessoas, ajudo-as em todas as situações, seja nas finanças, na segurança social, até coisas mais pequenas como entender como funciona a escola.”

“Imagine o que é chegar a um sítio onde não conhece ninguém e não fala a língua… Existem instituições que ajudam mas as pessoas não sabem, essa informação não lhes é dada à chegada.”

Farhana Arkter, imigrante do Bangladesh, é mediadora cultural na Mouraria. Foto: Rodrigo Cabrita

O telefone de Farhana não pára de tocar. Há sempre alguém a precisar de ajuda. “Muitas pessoas vivem em condições muito más. As pessoas vêm com grandes sonhos, porque no Bangladesh temos pouco dinheiro e pensamos que se conseguirmos ganhar uns quantos euros e enviar para a nossa família isso fará a diferença. Mesmo que seja pouco, será muito bom. Mas, depois, quando as pessoas chegam aqui e enfrentam a realidade, percebem que não é assim, porque o dinheiro que ganham não chega sequer para viver quanto mais para mandar para a família.”

Os problemas começam logo na viagem, conta uma outra imigrante do Bangladesh, Tahmina. As pessoas investem grande parte das suas poupanças (e há até famílias que se endividam) para pagar as viagens e os vistos e pagar a “facilitadores” e “intermediários”, que lhes asseguram trabalho e alojamento à chegada. Na verdade, em muitos casos, são autênticas redes de tráfico humano.

“As pessoas pagam muito dinheiro para vir, pela viagem, pelo visto, gastam as poupanças para poder vir na esperança de conseguir um bom trabalho”, conta Thamina. “Mas o sonho não se concretiza. O país é muito bom, mas muitas pessoas não conseguem um bom trabalho e uma casa. E depois não têm como voltar.”

Entre os residentes do bairro da Mouraria, falam-se 40 línguas maternas. Foto: Rodrigo Cabrita

Depois, começa a burocracia. “Enquanto não temos o cartão de residência não conseguimos trabalho. Mas nós precisamos sobreviver aqui. Como é que vamos sobreviver durante estes dois anos?”, pergunta Tahmina. “Temos de trabalhar muito e nem sequer ganhamos o salário mínimo, há lojas onde só pagam 200 ou 300 euros, mas isso não é suficiente. Por isso, temos que trazer muito dinheiro do nosso país, para conseguirmos sobreviver nos primeiros meses, mas depois temos mesmo que arranjar um trabalho.”

Sem contrato de trabalho, não é possível fazer um contrato de arrendamento. Mas sem um certificado de residência também é muito complicado conseguir um contrato de trabalho. É uma pescadinha de rabo na boca. Portanto, a opção passa, quase sempre, por fazer alguma destas coisas ilegalmente. Ou seja, ou se aceitam contratos de trabalho que são quase contratos de exploração, ou se aceitam esquemas para forjar certificados de residência. O objetivo é, para todos, conseguir que a junta de freguesia passe o certificado de residência e, depois, esperar dois anos para pedir o documento de residente. “Há sempre pessoas que se aproveitam destas situações”, lamenta Farhana.

“E como podemos pagar uma casa?”, questiona Tahmina. “O problema é o mesmo. Como não temos cartão de residente, temos que ficar com alguém que já tenha o cartão, partilhamos a casa. Eu partilho com uma amiga, mas há pessoas que partilham casas com pessoas que não conhecem, e podem ficar muitas pessoas na mesma casa. Têm de ficar três ou quatro pessoas num quarto, isso não é bom.”

Tahmina Akter está em Portugal há quase três anos. “Vi muitos vídeos na internet e achei que era um país bonito, com bom tempo e pessoas simpáticas. Tinha vindo já três vezes à Europa e nunca tinha vindo a Portugal. Em 2020 tive oportunidade de vir e decidi experimentar. Gostei e decidi ficar.” Ao início não foi fácil. “Durante a pandemia era muito complicado arranjar um emprego, e mesmo agora continua a ser difícil.” Mas ela teve sorte. “Tenho trabalhado como contabilista numa loja no Centro Comercial da Mouraria, mas agora que já tenho meu cartão de residente vou abrir o meu próprio negócio: uma agência de viagens. Ainda está em obras, mas se tudo correr bem, vou abrir ainda este mês. Eu já trabalhava numa agência de viagens no Bangladesh, por isso tenho experiência e também sei que as pessoas asiáticas confiam em mim. Mas é um investimento muito grande, estou um bocadinho assustada.”

Tahmina Akter, imigrante do Bangladesh, prepara-se para abrir uma agência de viagens no Centro Comercial da Mouraria. Foto: Rodrigo Cabrita

 

06
“A habitação não é só um problema para os imigrantes, mas para todas pessoas em Portugal”

Nos últimos anos, a Mouraria tornou-se, como outras zonas da cidade, também apetecível para os turistas, que ficam fascinados por esta mistura entre as tradições locais e os cheiros orientais, e passeiam nas ruas estreitas fotografando a roupa estendida. Foram assim surgindo cada vez mais alojamentos locais e hostels. Foram assim aumentando, também, o preço dos arrendamentos, as ordens de despejo, a especulação imobiliária.

“Os políticos anunciam facilidades para os imigrantes, mas depois as pessoas vêm e não têm condições. É um problema que não sei como se vai resolver. A habitação não é só um problema para os imigrantes, mas para todas pessoas em Portugal”, diz Rajib, que já é português e tem estabilidade financeira, mas mesmo assim tem problemas com o proprietário da casa onde mora e ainda há pouco tempo teve que contratar uma advogada porque ele queria aumentar a renda a meio do contrato.

Tahmina, apesar de trabalhar na Mouraria, mora em Algés. “Demoro todos os dias uma hora a chegar aqui. Se houver greve do comboio demoro quase duas horas”, lamenta. E Farhana também teve de deixar a Mouraria há pouco tempo: “um dia o senhorio disse que tinha vendido o prédio e que eu tinha dois meses para sair. Ainda tentei encontrar outro sítio mas aqui é impossível”, conta. “Mesmo tendo papéis e tendo dinheiro, nem sempre se consegue uma casa. Porque há muita gente à procura. Então, às vezes, é quase como se fizessem um leilão. Há um preço, mas quem fizer a proposta melhor fica com a casa. Pessoas com empregos, donos de lojas, toda a gente está com dificuldade em arranjar uma casa.”

Seja devido a dificuldade de regularizar a situação, seja devido aos preços elevados, a situação passa, muitas vezes, por alugar um quarto ou, pior ainda, uma cama. O estudo da Associação Renovar a Mouraria concluía que, dentro da população migrante que vive no bairro, 36% vive com não familiares e 2% admite mesmo partilhar casa com mais de 25 pessoas. “Nós acreditamos que estes números nem correspondem efetivamente àquilo que acontece no terreno. Fizemos com uma amostra de 300 pessoas e há 2% que diz viver com mais de 25 pessoas na mesma casa. Nós acreditamos que o cenário é ainda pior", diz Inês Andrade, gestora de projetos da associação. “Além disto, existem situações de discriminação. Os senhorios recusam-se a arrendar casas a pessoas migrantes, mesmo quando estas estão em condições regulares, em pé de igualdade com famílias portuguesas ou europeias", conta Inês Andrade.

“Se as pessoas não têm casa ou se não têm uma casa confortável, passam mais tempo na rua, porque é aqui que convivem e que se sentem bem”, explica Farhana Arkter. Foto: Rodrigo Cabrita

O alojamento ilegal tem sido a alternativa para muitas destas pessoas. Ilegal significa, quase sempre, sem condições. Mas a associação acredita, ainda assim, que se deve resolver o problema e não agravar a situação dos imigrantes. Como diz Farhana, a fiscalização não é a solução. "Se vier a polícia ou a câmara fiscalizar e fechar estes alojamentos, as pessoas ficam na rua porque não conseguem pagar mais do que isto. Ou então mudam-se para sítios ainda piores.”

“Se as pessoas vivem em condições tão miseráveis é porque não têm alternativas”, conclui Farid Akmed Patwary. Traz a carteira profissional de jornalista pendurada ao peito, por baixo do casaco. A carteira abre-lhe as portas oficiais, mas é a sua origem que lhe abre outras portas aqui na Mouraria. Farid veio do Bangladesh há oito anos com a família: “I’m trying to make my dream a reality”, diz, na sua página na internet. Está a tentar fazer do seu sonho realidade. Quando falamos sobre o incêndio ocorrido há dias e os problemas dos imigrantes, emociona-se um pouco e pede desculpa. “Eu também sou imigrante, estas histórias mexem sempre comigo.”

“As pessoas até arranjam emprego, mas muitas não têm onde morar porque nas cidades os ordenados são baixos e as rendas são altas”, explica o jornalista. “O número de casas disponíveis tem vindo a diminuir devido ao boom do setor do turismo. Todos os que têm apartamentos ou casas decidem arrendá-los por noite, para terem mais lucro. Transformam prédios residenciais em hostels ou alojamentos locais.” Basta andar um pouco pela rua, de nariz no ar, para ver as placas que anunciam os negócios.

“Quando há acidentes ou problemas em que os imigrantes estejam envolvidos, as pessoas culpam imediatamente os imigrantes, mas ninguém apresenta soluções. Se o Governo português acolhe os imigrantes deveria ter um plano integrado - que incluísse o emprego e a habitação. É preciso não esquecer o papel importante que os imigrantes têm no mercado de trabalho”, afirma Farid. “Há tantas casas antigas em Lisboa que poderiam ser remodeladas, casas que estão abandonadas. Isso iria aumentar o número de residências disponíveis. Por outro lado, a política de arrendamento deveria estabelecer um valor limite, de acordo com o tipo de habitação. E também poderia haver benefícios fiscais para quem arrendasse a casa a imigrantes.”

“As pessoas estão a viver mal mas não querem voltar. Muitas delas gastaram todo o seu dinheiro para poder estar aqui. Além disso, sabem que será igualmente difícil recomeçar a vida no seu país. Então, acreditam que talvez o problema se resolva dentro de pouco tempo e que vão conseguir ter uma vida boa.” Enquanto isso, o tempo vai passando..

“As pessoas até arranjam emprego, mas muitas não têm onde morar porque nas cidades os ordenados são baixos e as rendas são altas”, explica Farid Akmed Patwary. Foto: Rodrigo Cabrita

 

07
Na casa de Dipa, há sempre um sofá disponível

“No Nepal não tinha futuro para os meus filhos.” Foi por isso que, mesmo com muitas dúvidas, Dipa decidiu emigrar. Primeiro, veio o marido para Lisboa, depois, veio ela com as duas crianças, um rapaz e uma rapariga. “O mais difícil foi a língua”, admite. Seis anos depois, Dipa confessa que até já entende português mas fala ainda poucas palavras. “Temos de trabalhar muito para os nossos filhos”, desculpa-se. Não tem tempo para ter aulas. Os filhos já estão na escola e, como todas as crianças, aprenderam rapidamente a língua nova e os novos hábitos. Mas, para Dipa, tem sido um processo demorado: “Agora, já posso dizer que gosto de estar aqui, mas tenho muitas saudades do Nepal e dos meus amigos”, diz-nos esta mulher de 38 anos, com uma voz doce e uma timidez desarmante.

Depois de alguns anos a trabalhar noutros restaurantes, no ano passado Dipa e o marido abriram o seu próprio negócio. No Beco dos Cavaleiros, convivem agora pacificamente o restaurante Odaan, com comida indiana e nepalesa, e a Pastelaria Doce Mila, com fabrico próprio de “pastéis da mouraria”, feitos à base de feijão branco e amêndoa.

Além de ser dona do restaurante, Dipa é a vice-presidente da associação nepalesa. “Não parece mas ela é uma líder”, diz-nos Fahrana quando a apresenta. Enquanto o marido se perde na cozinha a preparar as “momo” (espécie de dumpling fritos) e o “pani puri” (uns bolinhos de batata e grão com um molho especial), Dipa recebe telefonemas de pessoas que precisam de ajuda e a quem ela não consegue dizer não. “As pessoas chegam e não sabem nada, então, alguém se oferece para ajudá-las a tratar dos documentos em troca de um pagamento. As pessoas pagam muito dinheiro e é injusto, porque não é preciso pagar para ter os documentos. E algumas são enganadas.” Dipa luta contra isso. Defende os direitos dos nepaleses e a comunidade reconheceu o seu trabalho, elegendo-a vice-presidente há 14 meses. “Quando as pessoas têm problemas, se estão no hospital ou estão doentes, se não têm trabalho ou precisam de casa, chamam-me. Quando alguém morre, tenho que assumir as responsabilidades e recolher dinheiro na comunidade para fazer um funeral ou para enviar o corpo para o Nepal, o que pode custar três mil euros. A maioria das pessoas não tem dinheiro para isto.” Desde que assumiu a vice-presidência, Dipa já teve que tratar do envio de mais de dez corpos.

Dipa, imigrante do Nepal, tem um restaurante na Mouraria. Foto: Rodrigo Cabrita

Todas as semanas, aparece alguém que precisa de comida ou de um sítio onde ficar. Outras vezes é ela que traz pessoas que encontra a dormir na rua, em caixas de cartão, ao frio. Dipa já perdeu a conta aos nepaleses que abrigou na sua própria casa, que nem sequer é assim tão grande. “Mas há sempre o sofá”, diz. “Sinto que sou uma guardiã, tenho que ajudar as pessoas que vêm do meu país.” Há pouco tempo, a vice-presidente foi até à Zambujeira do Mar, para ver as condições em que viviam os imigrantes ali. “Havia pessoas que não trabalhavam há quatro ou cinco meses e que choravam muito, porque não tinham dinheiro e não sabiam o que fazer.”

Mas porque é que continuam a vir? “As pessoas não sabem. Acham que a Europa é um sonho. E mesmo que nós tentemos dizer-lhes: não venham, há muitos problemas; as pessoas não acreditam, porque nós estamos cá, então como podemos dizer-lhes para não virem?”

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