Com a nomeação no bolso, a “bombeira de serviço” da UE deve preparar-se para uma “reeleição inquietante”

8 mar, 13:06
Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia, em Berlim, Alemanha, 19 de fevereiro de 2024. AP Photo Markus Schreiber

Ursula von der Leyen é a primeira presidente da Comissão Europeia a ser 'spitzenkandidat' de um partido. As sondagens anteveem a vitória do PPE nas europeias de junho, mas isso não garante que seja reconduzida, até porque o cenário em 2024 parece ser ainda mais desafiante do que em 2019, quando foi chumbada por vários eurodeputados da sua família política e apenas eleita com uma margem de nove votos

Ursula von der Leyen acaba de entrar oficialmente em modo campanha. Na quinta-feira, no encontro do Partido Popular Europeu (PPE) na Roménia, a presidente da Comissão Europeia foi confirmada como a candidata oficial da família política ao cargo que ocupa desde 2019. Candidatou-se sem oposição, mas dos 737 delegados com poder de voto em toda a Europa, apenas 499 participaram na eleição interna – e 89 deles votaram contra a sua nomeação.

Para Ricardo Borges de Castro, esta aparente divisão interna não é forçosamente um mau sinal para a antiga ministra alemã da Defesa, sobretudo dado que cada família política no Parlamento Europeu integra partidos de vários países distintos sob vários pontos de vista e que, no plano nacional, competem entre si, motivo pelo qual “há sempre margem para críticas internas”, indica o diretor associado do European Policy Center (EPC).

“Não vejo um grande problema nisto, é natural nestas grandes famílias multipartidárias, o PSD faz parte do PPE mas não é tradicionalmente democrata-cristão e o PPE é”, exemplifica. “Vejo estas críticas mais como uma forma de pressão para Von der Leyen adotar posições mais consonantes.”

Em causa estão críticas feitas por líderes da direita francesa, entre eles o conservador Michel Barnier, que antes da votação de quinta-feira adiantou aos jornalistas em Bucareste que se ia abster. Questionado sobre se haveria alguém melhor para o PPE propor como o seu ‘spitzenkandidat’, o responsável pelas negociações com o Reino Unido no pós-Brexit disse apenas: “Não farei mais comentários, já vos disse qual é a minha posição”. 

Mais longe foi Eric Ciotti, que numa contundente carta assinada por toda a delegação do Les Républicains no PPE criticou a “deriva tecnocrática” de Von der Leyen, que classifica como “a candidata de Macron e não da direita”, anunciando que iria chumbar a sua nomeação. Fonte do partido de Ciotti adiantaria, já depois do voto, que não estiveram sozinhos na oposição a Von der Leyen – “muitos colegas, um número substancial deles, na verdade, incluindo colegas alemães, agradeceram-nos termos sido porta-vozes das suas próprias reservas”, disse ao Euractiv.

“Pela primeira vez na história temos uma líder da Comissão Europeia em funções como ‘spitzenkandidat’ e isto compreensivelmente cria tensões”, explica Pawel Zerka, do European Council on Foreign Relations (ECFR) – “particularmente dado que, em vários Estados-membros, incluindo os dois maiores da UE, Alemanha e França, os membros nacionais do PPE – CDU/CSU e Les Républicains, respetivamente – não estão no governo nacional mas na oposição”.

Zerka considera que “o problema é mais agudo para os republicanos franceses”, que em casa “estão a competir por um eleitorado muito semelhante ao do partido de Macron e, portanto, a tentar distinguir-se do presidente francês”. E a nomeação da atual presidente do executivo comunitário pelo PPE “complica os esforços do Les Républicains para mostrar que pode ser uma alternativa a Macron e mostra que Ursula von der Leyen precisa de se preparar para uma reeleição inquietante”.

A piorar a situação está o facto de em 2019 Von der Leyen ter chegado à presidência da Comissão Europeia sem ser a candidata oficial do PPE, tendo sido “escolhida a dedo por Macron”, o que gerou grande desconforto no Parlamento Europeu. Como recorda Borges de Castro, que integrou a Comissão de Durão Barroso (2004-2014), em 2019 Von der Leyen “só foi eleita com uma diferença de nove votos e depois soube-se que houve muitos deputados do seu partido, muitos deles alemães, que não votaram nela”.

“Da última vez”, adianta Pawel Zerka, “teve de depender do apoio de vários partidos fora da coligação centrista da UE – incluindo o PiS da Polónia. Este ano pode ser ainda mais difícil recolher a maioria necessária a seu favor, apesar das projeções de que o PPE vai conquistar o maior número de assentos no próximo Parlamento Europeu”.

Um trunfo que é um fardo

Apesar de não enfrentar um cenário totalmente favorável, as sondagens injetam alguma esperança nas aspirações de Von der Leyen. “No próximo Parlamento Europeu, as nossas projeções mostram que as delegações do PPE mais fortes virão da Alemanha (26), de Espanha (26), da Polónia (19) e só depois de França (9) e da Roménia (9)”, indica o analista do ECFR. “Face a isto, os franceses estão muito longe de conseguirem impor a sua narrativa sobre Von der Leyen dentro do PPE – especialmente se os membros do PPE com delegações maiores, como os alemães, espanhóis e polacos, a apoiarem.”

Aqui vale a pena notar que os membros polacos do PPE, que estão atualmente no governo nacional, liderados por Donald Tusk, apoiam Von der Leyen. E “quer os membros da CDU/CSU alemã, quer os do PP espanhol, apesar de estarem na oposição nos seus países devem ser capazes de usar a liderança dela a seu favor – afinal de contas, ambos estão a preparar-se para ganhar as próximas eleições nacionais e, mal isso aconteça, ter uma líder da Comissão Europeia amigável reforça ainda mais a sua posição interna e na Europa”.

Há uma clara distinção entre estes partidos e o Les Républicains, “que neste momento está a tentar encontrar o seu lugar na cena política francesa, entre a extrema-direita de Marine Le Pen – que tem conseguido, em larga medida, destoxificar a sua imagem – e o centrista Renascimento [LREM, de Macron] – que, nos últimos anos, virou à direita”.

Numa altura em que se antecipa uma viragem do eleitorado à direita também nas eleições europeias de junho – com sondagens a antever que a extrema-direita pode tornar-se a terceira força política no Parlamento Europeu –, estas querelas internas não são exclusivas de França. “Muitos eleitores de direita na Europa estão insatisfeitos com o legado de Ursula von der Leyen, sobretudo com as ambiciosas políticas climáticas da UE e com o que consideram ser o falhanço da UE em gerir a questão das migrações”, indica o investigador do ECFR. 

“Em circunstâncias normais, partidos como a CDU/CSU e o Les Républicains, ou o PP espanhol, esperariam canalizar este descontentamento para mobilizar o seu eleitorado e impedir que vire mais à direita, por exemplo, em direção à AfD na Alemanha, ao Reagrupamento Nacional em França ou ao Vox em Espanha. Mas que credibilidade podem ter nas críticas a Bruxelas quando a sua candidata à liderança é a atual líder da Comissão Europeia?”, questiona. “Desta perspetiva, Ursula von der Leyen não é apenas um trunfo – que ainda é em larga medida, graças ao reconhecimento e imagem positiva que granjeia entre muitos eleitores – mas também um fardo – dado o criticismo abrangente a várias políticas da UE entre os eleitores de direita.”

Compromissos, equilíbrios e uma discussão “difícil mas necessária”

Os problemas não estão só à direita. Para angariar os apoios necessários à recondução, “e agradar também aos socialistas, aos liberais, aos Verdes e também ao partido dela, terá de ter uma agenda mais moderada”, antecipa Ricardo Borges de Castro. “Quando as eleições terminarem, vai ter de haver compromissos. De certa forma, Von der Leyen começou com uma agenda de longo prazo, mas depois isso foi interrompido pela pandemia e depois pela agressão russa à Ucrânia. Passou a ser uma gestora de crises - como costumo dizer, é a bombeira de serviço da UE, tem andado a apagar fogos na UE.”

Ao longo dos últimos cinco anos, com uma agenda focada sobretudo nas migrações e na transição climática, Von der Leyen “demonstrou que tem a capacidade de responder a crises”, mas “na bolha de Bruxelas é criticada por ter centralizado muito o poder à sua volta, no gabinete dela, por não ser inclusiva em relação a toda a estrutura da UE, e tem dificuldades que vai ter de ultrapassar – terá de ser mais abrangente do que exclusiva”, destaca o diretor associado do EPC.

E quais são as prioridades da Comissão, assumindo que Von der Leyen é reeleita no Parlamento Europeu em julho? Para o analista, a transição climática tem de continuar a integrar a lista, dado que “as alterações climáticas são aquilo que não vai mesmo mudar” sem vontade política. “Ela percebe a importância, tem é mais dificuldades em explicá-la ao seu partido – e há uma pressão muito forte no PPE por uma readaptação da Agenda Verde à realidade por causa dos protestos dos agricultores e de outros.”

Depois do que Borges de Castro refere como a “instrumentalização de tudo durante muitos anos, em que a energia, os alimentos, a informação, até mesmo a pandemia, foram armas de geopolítica, a tendência geral na UE neste momento é de securitização” – como, aliás, a própria Von der Leyen já assumiu e que, há alguns dias, levou o comissário Thierry Breton a delinear uma ambiciosa estratégia de investimento na indústria europeia de defesa e armamento. Esta é uma tendência que não é exclusiva do PPE, passa pelos centristas e pelos partidos mais à direita e deve marcar muito a campanha às europeias e o rumo da UE nos próximos anos – com ou sem Von der Leyen ao leme.

Para além dos equilíbrios e consensos que precisa de firmar para conseguir ser reconduzida, há ainda um tema tabu que, na opinião do analista português, “demonstra falta de liderança de Von der Leyen e de outros”: a questão do alargamento, “obviamente uma discussão difícil, mas necessária, se queremos ser sérios e evitar dar falsas esperanças à Ucrânia, à Moldova, à Georgia”. 

“Ninguém quer falar sobre isto, porque vai ter custos para todos, mas este processo vai ter de avançar”, diz Ricardo Borges de Castro. “Vamos ver como vai ser durante a campanha.”

Relacionados

Europa

Mais Europa

Patrocinados