Uma indústria robusta de defesa, uma união gémea da NATO, uma agência como a que fez nascer a Internet e a Siri – eis o que é preciso para a Europa se defender

23 fev, 07:00
Kupiansk (António Cotrim/Lusa)

“A agressão russa na Ucrânia criou uma nova realidade no continente europeu: a Europa deixou de ser segura.” E ao final de dois anos de guerra, é mais importante que nunca que a UE aposte numa estratégia ambiciosa de defesa e segurança, defendem os analistas – até porque a dependência dos Estados Unidos e da NATO pode não durar para sempre

Tornou-se um truísmo dizer que a União Europeia (UE) que Ursula von der Leyen lidera há cinco anos mudou muito desde que a alemã nascida na Bélgica se tornou presidente da Comissão Europeia. A antiga ministra da Defesa da Alemanha, agora com 65 anos, sabe-o e lembrou os europeus disso mesmo há alguns dias: “O mundo hoje é completamente diferente do que era em 2019”, disse ao confirmar que será recandidata ao cargo após as europeias de junho.

Isto deve-se, em larga medida, à invasão russa da Ucrânia, faz este sábado dois anos, e Von der Leyen também o sabe. Daí que, no encontro do seu partido conservador alemão (CDU) esta semana, tenha deixado claro que, se for reconduzida ao cargo, o seu principal foco será a defesa e a segurança do bloco. “Temos de ter noção de que os nossos opositores, Putin e os seus amigos, quer sejam da AfD [extrema-direita alemã], Marine Le Pen [em França], Geert Wilders [nos Países Baixos] ou outras forças extremistas, querem destruir a Europa.”

A ideia é hoje preponderante entre políticos e analistas face a uma guerra sem fim à vista que já matou mais de 10 mil civis ucranianos e cerca de meio milhão de tropas dos dois lados – e que, nas palavras de Ionela Ciolan, do Centro Wilfried Martens de Estudos Europeus, “criou uma nova realidade no continente”. Desde a invasão de larga escala da Ucrânia, “a Europa deixou de ser segura”, destaca a investigadora à CNN Portugal, sendo a Rússia a “maior das ameaças” – uma verdade “não apenas no seu flanco leste, na Ucrânia, mas também na sua fronteira sul e na região do Ártico”. 

Por esse motivo, defende Ciolan, é hora de os europeus “se prepararem para uma era de feroz competição geopolítica em que a ordem internacional baseada em regras vai estar sob constante ataque por revisionistas autocráticos” – e não apenas a Rússia de Vladimir Putin. Até porque, como destaca Sean Monaghan, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), “o dividendo de paz após a vitória do Ocidente na Guerra Fria acabou e a Europa voltou a um período em que a guerra no continente não é impensável e em que são necessários maiores gastos ao nível da Defesa para manter a paz”.

O investigador britânico invoca a ideia da ‘Zeitenwende’ que o chanceler alemão, Olaf Scholz, injetou na UE com o famoso discurso que proferiu dias depois de Putin ter ordenado a invasão da Ucrânia – uma “mudança de paradigma”, numa tradução livre, espoletada precisamente por essa guerra, mas que tem raízes na anexação russa da Crimeia em 2014. 

“A ‘zeitenwende’ pan-europeia foi o pontapé de saída para o retorno da Europa às políticas de poder e dissuasão, mas se isto não for coordenado através da UE e da NATO, pode cimentar a fragmentação das capacidades e da indústria que farão com que a defesa europeia se torne menos do que a soma das suas partes.” Por outras palavras, explica Monaghan, “se cada país gastar mais nos seus próprios projetos e indústria nacional em vez de adotar uma abordagem europeia, grande parte do dinheiro será desperdiçado.”

Trump diz que, se for eleito presidente dos Estados Unidos, não vai defender os aliados da NATO (EPA)

A 'Zeitenwende' europeia

O debate sobre a segurança e defesa da UE não é novo, mas ganhou novo fôlego a 24 de fevereiro de 2022, quando após meses a amontoar milhares de tropas na fronteira com a Ucrânia, o presidente russo ordenou uma invasão do país vizinho confiante de que o destronaria em poucos meses. Isso não só não aconteceu como veio imprimir mais urgência às discussões até então requentadas, muitas vezes latentes, nos corredores europeus sobre as garantias de defesa da UE – ou falta delas.

Num primeiro momento, explica Ciolan, “as repercussões não-intencionais mais significativas da agressão russa à Ucrânia levaram o centro de gravidade geopolítico a mover-se para o centro e leste da Europa”. No rescaldo da invasão, foram países como a Polónia, os Estados do Báltico e a Roménia que não só lideraram o apoio humanitário aos refugiados ucranianos e o apoio militar às forças de Kiev, como se tornaram os primeiros a aumentar o seu investimento em Defesa. Mas para a investigadora, pouco de concreto foi feito até agora na Europa como um todo.

“As alterações encetadas por países europeus no que toca às suas capacidades de defesa são poucas e demasiado lentas”, defende a analista do Centro Wilfried Martens. “Em primeiro lugar, a alocação de 2% do PIB para a Defesa é agora tida como ponto de partida e não como teto máximo, o que significa que, para poder defender o continente europeu neste cenário global altamente inseguro, os líderes políticos precisam de investir mais do que 2%. Para além disso, apesar de a cláusula dos 2% vigorar na NATO há uma década, só este ano é que vamos atingir o número de 20 [entre 31] países aliados que respeitam essa cláusula.” 

Na Europa, os aliados que já o fazem são precisamente os do flanco leste, que por força das circunstâncias passaram do seu tradicional papel de beneficiários para fornecedores em matéria de segurança, tornando “a Europa Central e de Leste pioneira na adaptação da NATO e numa defesa europeia robusta”. Para Sean Monaghan, isto foi enquadrado por uma mudança “dramática” nas atitudes e políticas da UE no que toca à Defesa nos últimos dez anos – após uma década “a reforçar o seu papel”, a UE deve agora “manter essa trajetória, ainda que a defesa da Europa seja organizada através da NATO”.

Chegamos a outra verdade incontornável por estes dias: a de que “a futura segurança da Europa vai depender do resultado na Ucrânia”, nas palavras de Ciolan, para quem “a única forma de garantir que a Rússia acaba com a sua política externa revisionista é apoiar Kiev para que vença no campo de batalha e negoceie a paz sob os seus próprios termos, e não sob os da Rússia”. 

Isto torna “urgente que a UE continue a apoiar a Ucrânia contra os invasores” mas que, simultaneamente, “invista e prepare os seus exércitos para a possibilidade de um ataque russo” a um ou vários países do bloco. “Em última instância, a dissuasão europeia só será eficaz se os estrategos russos perceberem que um ataque em solo UE/NATO seria altamente destrutivo para eles.”

Von der Leyen com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, em Kyiv (AP Photo/Efrem Lukatsky)

Same same, but different

Pelo menos num futuro próximo, é um facto incontornável que “a Europa vai continuar a depender dos Estados Unidos para conduzir operações militares de alto nível e dissuasão nuclear credível, mesmo com o contínuo aumento da despesa” em defesa e segurança, destaca o investigador do CSIS. A questão é que, como a própria presidente da Comissão Europeia lembrava no início da semana, os tempos agora são outros – é a ‘zeitenwende’.

“Ao contrário do que aconteceu na Guerra Fria, agora temos uma guerra na Ucrânia, uma Europa capaz de se defender e uns Estados Unidos focados na China como a sua principal ameaça”, a par da “imprevisibilidade da política norte-americana” – um ponto que Ionela Ciolan reforça face à elevada possibilidade de Donald Trump voltar à Casa Branca após as presidenciais de novembro, numa altura em que já deixou claro que não irá proteger os aliados da NATO no caso de um ataque russo. 

“As eleições nos EUA vão ser cruciais para manter a coesão e unidade ocidentais no apoio à Ucrânia”, destaca a ex-professora da Universidade Nacional de Estudos Políticos e Administração Pública de Bucareste. “A mentalidade tradicional europeia de que os EUA proporcionam um chapéu de segurança ao continente já não é uma garantia."

Mesmo perante o que classifica de "melhor cenário possível - o de uma administração norte-americana pró-transatlântica" - , Ciolan sublinha que "os EUA não podem proteger o mundo inteiro dado o atual cenário geopolítico global, com a guerra no Médio Oriente, crescentes tensões entre os EUA e o Irão, a crescente cooperação Rússia-China, a crescente pressão da China sobre Taiwan… É por isso que os europeus têm de contribuir com mais recursos para reforçar as suas capacidades de segurança e defesa do continente e tornarem-se provedores de segurança. Os líderes europeus têm de pensar seriamente em desenvolver uma política de segurança forte na UE que também fortaleça o pilar europeu da NATO.”

O caminho adiante, acrescenta Monaghan, será “o mesmo” que tem vindo a ser seguido, “mas diferente”. “A UE não tem opção a não ser reforçar as suas capacidades coletivas de defesa: apoiar a Ucrânia, dissuadir a Rússia, proteger-se contra Trump e ter planos preparados para uma crise no Indo-Pacífico que pode vir a consumir os EUA.”

A questão que se impõe é: como? Ciolan e Monaghan dão uma resposta similar, que passa pela aposta forte na indústria de Defesa, “vital para a segurança e prosperidade da Europa”. Só que “a quase totalidade da nova despesa tem ido para os EUA e a Coreia do Sul, mais do que para a UE, o que não é sustentável para a segurança europeia. A única solução é uma maior coordenação entre as capitais europeias – usando a UE e a NATO para garantir que o continente obtém os mesmos benefícios em escala e interoperabilidade que advêm de comprar e operar equipamentos comuns.”

As contas, para já, não são favoráveis aos europeus. “Os Estados-membros europeus da NATO têm um PIB conjunto quase tão grande quanto o dos EUA, mas isso não se traduz num peso militar comparável”, indica Ciolan. “Dado o eixo americano na Ásia-Pacífico, a crescente competição estratégica entre EUA e China e certas tendências isolacionistas nos EUA, os europeus devem preparar-se para proteger o seu continente, já que no futuro os norte-americanos poderão não estar tão interessados nisso ou estar mais preocupados com questões de segurança no Indo-Pacífico. Daí que construir uma união de defesa europeia que complemente a NATO seja essencial para o garantir.”

Tropas francesas em exercícios militares da NATO na Estónia (AP)

Um comissário da Defesa + 100 mil milhões de euros + uma DARPA europeia

Na Conferência de Segurança de Munique no último fim de semana, dias antes de confirmar que quer apoios para continuar à frente da Comissão Europeia, Von der Leyen já tinha anunciado que pretende ter um comissário da Defesa, uma viragem política importante depois de um mandato de cinco anos mais focado na crise climática e nas migrações. Para quem estuda o quadro de defesa e segurança na Europa, pôr estes temas no topo da agenda comunitária é o caminho a seguir – mas não será um caminho fácil de trilhar.

“Se for reeleita para um segundo mandato, Ursula von der Leyen terá de garantir que a UE tem um orçamento de Defesa de pelo menos 0,5% do PIB do bloco – cerca de 100 mil milhões de euros – a juntar aos orçamentos nacionais”, defende Ciolan, que elenca vários outros passos que a presidente da Comissão terá de dar: criar um mercado único de Defesa, aumentar os investimentos conjuntos nas capacidades de defesa, alcançar um “acordo para garantir a previsibilidade da indústria e mais e melhor interoperabilidade” entre os exércitos europeus, investir em cadeias de abastecimento seguras com parceiros estratégicos, e trabalhar para alterar as políticas de empréstimo do Banco Europeu de Investimento (BEI), “para que se torne muito mais ativo no financiamento de projetos de defesa”.

Para além disso, a UE deve levar a sério as ameaças nucleares russas e focar-se em frentes de batalha outrora menos convencionais. “As ameaças mais prováveis da Rússia à Europa no curto prazo são ameaças híbridas pré-guerra”, indica Sean Monaghan. “Moscovo já está a atingir infraestruturas críticas através de ataques cibernéticos e físicos, pelo que a Europa tem de continuar a investir em infraestruturas mais resilientes e em ciberdefesa – e a UE está bem colocada para coordenar estes esforços.”

É o que Ionela Ciolan apelida de “estratégia ambiciosa de inovação tecnológica e de defesa”, fulcral para que a UE conquiste maior influência global no curto e médio prazo. “A UE tem de ter planos estratégicos, não apenas por reação, e desenvolver uma agência europeia ao estilo da DARPA”, defende. Criada em 1958 em resposta ao lançamento soviético do Sputnik, a Agência de Projetos de Investigação Avançada de Defesa dos Estados Unidos “conduziu a muitas inovações tecnológicas revolucionárias com aplicação militar e civil”, ressalta a investigadora do Wilfried Martens.

Foi a partir da DARPA que o mundo inteiro viu nascer a Internet, o GPS e até a Siri, a assistente virtual digital da Apple. “Estar na vanguarda da inovação tecnológica tem implicações decisivas para a ordem política, a competitividade económica e a segurança nacional”, destaca Ciolan. E também neste ponto, “os EUA e a China estão a liderar o caminho, enquanto a UE continua a ficar para trás”.

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