O regresso da ópera encenada ao São Carlos com "La Bohème": "Até o público vai chorar"

11 mar 2022, 09:00

Dois anos depois do início da pandemia, a orquestra está de volta ao fosso, deixando o palco livre para os cantores. Sem distância nem barreiras de acrílico, a ópera regressa esta sexta-feira ao Teatro Nacional de São Carlos, na sua plenitude e com a música de Puccini

Dois anos depois do início da pandemia, a orquestra volta ao fosso do Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, libertando o palco para os solistas e para o coro. Apresentam-se em pleno, pela primeira vez, com todos os seus elementos e sem quaisquer restrições, permitindo assim que o teatro volte a acolher, esta sexta-feira, um espetáculo de ópera encenada, com “La Bohème”, de Puccini. Plateia completa, sala esgotada. Falta só retirar as máscaras nos rostos dos espectadores para que tudo volte a ser como era antes.

“Vai ser, certamente, uma noite muito emotiva”, antevê a violinista Paula Carneiro. “A ópera precisa do teatro, precisa dos figurinos, precisa dessa ligação entre os músicos e os cantores, precisa de tudo. Se não, parece sempre que falta alguma coisa.” 

“Estamos todos muito entusiasmados”, revela a música de 36 anos, que faz parte da Orquestra Sinfónica Portuguesa desde 2010 e que vai interpretar “La Bohème” pela primeira vez. “Voltarmos ao fosso com esta ópera e com esta música é muito emocionante. A música é fantástica. A música de Puccini é calorosa, brilhante e quando tocamos isso sente-se. Acredito que vai haver muitas lágrimas, até mesmo o público vai chorar.”
 

Ninguém vai ter saudades da ópera com máscaras e distância

“No início da pandemia foi muito complicado. Além das máscaras, tínhamos que manter a distância, não podíamos partilhar as estantes e havia separadores de acrílico”, recorda Paula Carneiro. “Tudo isto não nos permitia estar em contacto com os colegas e uma orquestra precisa desse contacto, temos de conseguir comunicar uns com os outros. Eu sentia que estava a tocar sozinha. E isso depois nota-se.” Nos ensaios ou em palco, a orquestra apresentava-se sempre em versão reduzida e com os músicos distantes uns dos outros. “A percussão estava muito distante e para poderem tocar connosco aqui à frente tinham de antecipar a entrada, foi um grande desafio.”

O maestro italiano Giampaolo Vessella chegou em janeiro de 2021 para dirigir o coro do São Carlos precisamente quando era decretado mais um confinamento em Portugal. “Foi um grande desafio ensaiar com todas as restrições. Às vezes, sentia que estávamos a fazer um milagre. Basta pensarmos como é difícil criar um som com a máscara à frente da cara. Começa com a dificuldade em inspirar e isso significa que os cantores não têm a sua plena capacidade respiratória. E depois há um outro problema: é que se tem de projetar a voz no tempo, de acordo com a música. E com a máscara não é nada fácil. Houve momentos em que estivemos prestes a desistir”, admite.

“Quando ensaiavámos com a orquestra, ainda que com versões reduzidas do coro e da orquestra, os músicos e os cantores tinham que respeitar as distâncias e espalhavam-se por todo o palco. E ainda tinham as barreiras de acrílico. Era impossível ouvirem-se uns aos outros. O coro estava pelo menos 25 metros atrás e os cantores estavam separados uns dos outros. O maestro estava constantemente a dizer: estão atrasados, não consigo ouvir a vossa voz, não consigo perceber o que estão a dizer. Às vezes era muito frustrante.”

Por isso, diz Giampaolo Vessella, “é uma alegria enorme estar agora aqui”. A alegria começou logo quando os ensaios passaram para o palco, quando os cantores puderam sair dos cubículos onde foram forçados a cantar durante a pandemia, quando os intérpretes puderam, de novo, dar vida e movimento às suas personagens: “Finalmente estávamos no nosso espaço, com todo o coro - 42 cantores para esta produção. Estávamos todos juntos e a cantar em conjunto. Foi um momento mágico. Tinha tantas saudades disso. E sentia-se que estávamos todos emocionados, porque até então trabalhávamos em pequenos grupos, às vezes só sopranos ou só baixos, ou só homens ou só mulheres. E, de repente, estávamos no palco e podíamos sentir as interpretações a crescer, naturalmente, com grande liberdade.”

Uma ópera atual sobre a juventude e a boémia

“La Bohème”, que o Teatro Nacional de São Carlos apresentou pela primeira vez em 1897, deveria ter sido apresentada em 2019, mas as récitas foram canceladas devido à greve dos trabalhadores, e depois esteve agendada para 2020, mas acabou por ser adiada devido à pandemia. É, portanto, um espetáculo muito aguardado.

“É uma ópera maravilhosa, é perfeita”, diz o encenador, o espanhol Emilio Sagi. “A história é muito emotiva e, se não fosse a música, talvez pudesse parecer uma história demasiado melosa. Mas a música é extraordinária. Puccini consegue emocionar o público não só na ópera. A música desta ópera é usada no cinema, para muitas coisas, porque tem uma emoção imensa. Por isso é que é tão popular. É um canto à juventude, embora seja uma tragédia.” O musical “Rent” (1996) e o filme “Moulin Rouge” (2001), por exemplo, inspiraram-se na história de Mimi.

Baseada nas “Cenas da Vida Boémia” de Henri Murger e estreada em 1896 sob a direção de um (muito jovem) Arturo Toscanini, a obra é um enérgico e poético retrato do quotidiano de um grupo de jovens amigos artistas que vivem e amam (e morrem) na Paris do século XIX. Coexistem nesta ópera cenas de lírico e depurado intimismo, centradas na história de amor entre o poeta Rodolfo e a costureira Mimi, e cenas de fervilhantes multidões.

“No primeiro ato não há coro, estamos no quarto de Rodolfo. A segunda parte abre no Quartier Latin de Paris e é véspera de natal, então, há essa incrível atmosfera de alegria. O coro são as pessoas de Paris, a multidão, os vendedores, as crianças, moradores, turistas. Tem de haver uma vitalidade, uma energia e uma alegria”, explica o maestro Giampaolo Vessella.

Os amigos encontram-se no Café Momus: além de Mimi e do poeta Rodolfo, estão lá o músico Schaunard, o filósofo Colline, o pintor Marcello e a sua apaixonada, Musetta. Não têm um tostão, mas estão determinados em lutar contra as adversidades e seguir as suas paixões. Mas Mimi está cada vez mais doente. 

“É uma ópera muito atual”, garante o encenador Emilio Sagi. “Eu vivi essa boémia na minha juventude quando estudei musicologia em Londres, não tínhamos dinheiro, vivíamos como podíamos e era uma vida muito leve. Mas vi morrer muitos companheiros meus, de doenças horríveis como a sida, e foi um golpe muito grande na nossa juventude. Por isso esta história é muito real, o que torna esta ópera muito emocionante.”

Na sua encenação, o ambiente boémio de Paris de 1830 - do libreto original de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa - dá lugar à época efervescente e tumultuosa de Paris nos anos 1960. “Queria trazer esta ópera para mais perto de nós”, justifica Emilio Sagi. “Acredito que a ópera deve produzir emoções e aproximando-a de nós isso será mais fácil. Se não é como uma porcelana de Limoges, é bonita mas não a podemos tocar, tem de ficar distante.” 

Pareceu-lhe, então, que “seria melhor trazer a história para o momento antes de maio de 68 - é o momento em que a juventude se rebela porque não vê futuro, não tem trabalho, está um pouco perdida”. É também, ao mesmo tempo, uma época de lutas e de sonhos. É por isso que vemos em palco uma manifestação feminista, com mulheres empunhando slogans reivindicativos.

A soprano Susana Gaspar conhece bem Mimi, a jovem de aparência frágil mas carácter forte, protagonista da emocionante história de “La Bohème”. “A ópera La Bohème está no meu coração, para já porque eu sou uma amante incondicional de Puccini, a sua música toca-me imenso. E, depois, porque esta foi a primeira ópera de repertório que eu fiz e a Mimi foi a minha primeira protagonista. Foi em 2010, para a British Youth Opera e foi uma oportunidade absolutamente fantástica”, recorda a cantora. Regressa a Mimi, aos 40 anos. “À medida que o tempo passa, encontramos coisas novas no papel. De todas as vezes que fiz, todas as vezes foram diferentes”, conta. 

A cantora, que divide a sua carreira entre Portugal e o estrangeiro, vê em Mimi “uma rapariga solitária, que teve de aprender a sobreviver, com tudo o que isso possa acarretar. Mimi e Museta são mulheres que se fazem à vida e têm de trabalhar, mas a Museta é muito mais histriónica, a Mimi é mais recatada, é uma personagem mais interior. Mas não a vejo como uma rapariga inocente.”

Emilio Sagi concorda: “Mimi e Museta são mulheres com personalidades diferentes, Museta é mais extrovertida, Mimi é mais tímida, mas são duas mulheres que vivem uma vida livre. E são mulheres independentes, não dependem financeiramente de nenhum homem”. “A morte de Mimi é o fim da juventude, é uma mulher que morre em plena vida, em plena luz, em plena criatividade.” E com ela morrem os sonhos e os ideais daqueles jovens. “Podemos imaginar o que acontece a seguir, Museta e Marcello irão casar-e e provavelmente tornar-se burgueses, Rodolfo arranja um emprego e deixa aquele sotão Tornam-se adultos. Os ideais da juventude serão substituídos por outros, menos poéticos."

As cinco récitas de “La Bohème”  previstas para Lisboa estavam já esgotadas. No entanto, o TNSC decidiu realizar uma sessão extra, no próximo dia 20 de março, domingo, pelas 16:00, dedicada à Crise Humanitária na Ucrânia. Um espetáculo solidário cuja receita reverterá integralmente para a UNICEF e para a Cruz Vermelha, instituições que estão a trabalhar todos os dias no apoio às pessoas deslocadas.

A encenação é de Emilio Sagi e a direção musical de Domenico Longo. Na interpretação está “um elenco maioritariamente português”, com Susana Gaspar (como Mimì, em duas récitas, com Natalia Tanasii nas restantes três), Christian Luján (Marcello), Bárbara Barradas (Musetta) e André Henriques (Colline). A Orquestra Sinfónica Portuguesa é dirigida pelo maestro Antonio Pirolli, e o Coro do TNSC é conduzido pelo maestro Giampaolo Vessella, aos quais se junta o Coro dos Pequenos Cantores da Academia de Amadores de Música, sob a direção de Vítor Paiva.

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