Criança morta em Setúbal: “Falhou uma sociedade, um sistema e falhou um país”

23 jun 2022, 22:00
Imagem de Jéssica

Especialistas em direito da criança sublinham alertas e lições que podem ser retirados do caso Jéssica. Juristas apontam falta de meios e o aumento da procura dos tribunais para processos de promoção e proteção dos direitos da criança

Jéssica morreu às mãos de um casal a quem a mãe deveria dinheiro. O caso, com diversos contornos ainda por esclarecer, está a chocar o país e a conduzir a questões sobre o que falhou aqui. A CNN Portugal foi ouvir especialistas em direito da família e da criança, que são unânimes em apontar a falta de meios e o aumento de procura das instituições judiciais para casos de promoção e proteção de direitos da criança.

“Por força da pandemia e dos confinamentos, os tribunais ficaram muito mais assoberbados com situações de promoção e proteção da criança. Posso relatar a minha experiência pessoal: fui a um tribunal saber da evolução de um processo de divórcio que estou a acompanhar e disseram-me abertamente que os processos estavam mais demorados porque estavam assoberbados com processos de promoção e proteção de crianças, que têm prioridade sobre todos os outros”, relata o advogado Luís Joaquim.

Jéssica estaria sinalizada e era seguida pela Segurança Social, mas o seu processo já não estava nas mãos da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Setúbal. Num e-mail recebido pela CNN Portugal, a comissão confirma que não tem a decorrer nenhum processo de promoção e proteção da criança. “Após receção de comunicação de situação de perigo, foi aberto Processo nesta Comissão, o qual foi posteriormente remetido aos serviços do Ministério Público (MP) da Comarca de Setúbal" a 31 de Janeiro de 2020, e nessa altura a CPCJ deixou de estar envolvida, esclarece a mensagem.

CPCJ só pode agir com permissão da família

O caso estaria então nas mãos do MP, que, adianta o advogado Rui Alves Pereira (especialista em direito da criança e fundador da Associação A Voz da Criança) pode ter encontrado entraves diversos na sua atuação. Desde logo os factos relatados que conduziram à sinalização da criança. “Custa-me a acreditar que, se tivessem sido relatados factos ligados a espancamento e a agressões, o MP não tivesse agido de forma mais célere e mais drástica”, diz. A CNN Portugal contactou a Procuradoria Geral da República para obter esclarecimentos, mas não obteve resposta até ao momento.

“Algo falhou. Morreu uma criança e a culpa não pode morrer solteira. Quanto mais não seja falhou o sistema e falhou pela sua lentidão. O histórico diz-nos que devia ter sido retirada à mãe. Mas e os factos que estão relatados em relação à Jéssica seriam suficientemente alarmantes para que tivesse, por exemplo, sido retirada à família?”, questiona Rui Alves Pereira.

“Falhou toda uma sociedade, todo um sistema e, em ultima instância, até um país que não dá meios às famílias e às instituições para protegerem as suas crianças”, remata Rui Alves Pereira.

Quando uma criança é sinalizada e há intervenção da CPCJ, o acompanhamento só é feito com a permissão dos pais. Quando essa autorização não existe, o processo é encaminhado para o Ministério Público, que fica encarregue de promover medidas de proteção da criança, como explica Rui Alves Pereira: “Se a CPCJ contacta os pais e não há autorização dos mesmos para que tome qualquer tipo de diligências, perante essa falta de consentimento, comunica imediatamente o caso ao Ministério Público. Contra a vontade dos pais, é o MP que inicia um processo de promoção e proteção de crianças. São processos urgentes, que passam à frente de tudo e até de qualquer outro processo que diga respeito a crianças.” Terá sido o que aconteceu no caso de Jéssica.

E se Jéssica estivesse numa creche?

A menina estaria aos cuidados da família, sem frequentar qualquer escola ou creche. “Idealmente, estas crianças que estão sinalizadas deviam estar sujeitas a uma vigilância regular. Isso seria num mundo ideal, em que seria possível evitar este tipo de situação. Há muita falta de meios no terreno. E a implementação de medidas de promoção e proteção de crianças e jovens é difícil e essas medidas muitas vezes pecam por tardias”, admite Luís Joaquim.

“Quando a criança tem as rotinas normais, de creche, médicos… qualquer um destes profissionais pode agir e intervir. Se a menina estivesse numa creche e se se apercebessem que não estava bem ao cuidado destes pais, o que teriam feito era tê-la sinalizado, como tenho eu o dever de fazer ou qualquer outra pessoa tem”, sublinha Rui Alves Pereira, acrescentando que a proteção das crianças está nas mãos de cada cidadão.

Mas Jéssica já estava a ser acompanhada e uma eventual sinalização da situação por parte de um estabelecimento que a criança frequentasse seria redundante, como lembra o especialista em direitos da criança.

Jéssica Biscaia morreu aos três anos, depois de vários dias de agressões. Terá sido raptada por uma mulher a quem a mãe devia dinheiro e que, juntamente com o marido e a filha, maltratou a criança até lhe provocar a morte.

Jéssica morreu na passada segunda-feira, tendo dado entrada nesse mesmo dia no Hospital de São Bernardo, que integra o Centro Hospitalar de Setúbal, “entubada e ventilada”, depois de ter sido assistida em casa da mãe por uma equipa de emergência médica.

Devido a problemas conjugais, a mãe de Jéssica ter-se-á entregado a rezas da mulher que acabou por lhe raptar e matar a filha para tentar salvar a relação. A mulher foi cobrando mais e mais dinheiro, até que a mãe de Jéssica deixou de conseguir pagar. Para levar a criança, terá atraído a mãe para mais um encontro, em que a iria ajudar com uma última reza. Sugeriu que a mulher levasse também a filha, que ficaria a brincar com a neta dela durante a "consulta". A criança foi raptada nessa ocasião.

Ao início da madrugada de quinta-feira as autoridades divulgaram que esta família ficava detida, a aguardar medidas de coação. A mãe de Jéssica e o padrasto saíram em liberdade.  

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