Jéssica Biscaia morreu aos três anos, depois de vários dias de agressões. Terá sido raptada por uma mulher a quem a mãe devia dinheiro e que, juntamente com o marido e a filha, maltratou a criança até lhe provocar a morte
Na tarde de quarta-feira, a Polícia Judiciária apanhou em fuga a mulher que, horas mais tarde, viria a ser detida - juntamente com o marido e uma filha - por suspeita de ter assassinado Jéssica Biscaia, de três anos. Durante todo o dia, estava a ser descrita como a ama, alguém com quem a criança estava habituada a ficar nas ausências da mãe. Mas, segundo a mãe contou à Polícia Judiciária, tinha sido pressionada a contar esta história fictícia aos familiares e vizinhos sobre o paradeiro de Jéssica, afirmando que a criança estava à guarda de uma ama quando, na realidade, tinha sido levada para a forçar a pagar uma dívida de cerca de 800 euros.
A avó de Jéssica, Rosa Tomás, dissera mesmo aos jornalistas que a criança "era uma menina alegre" que "nunca se queixava de nada", bem tratada pela família e querida pela vizinhança. Uma versão corroborada pelo padrasto de Jéssica, ainda que as contradições no discurso dos familiares começassem a evidenciar-se: à CNN Portugal, o padrasto da criança, tal como a avó, admitiram que a mãe de Jéssica lhes tinha contado que a criança estava numa colónia de férias e por isso ausente de casa. Era "assunto deles", disse Paulo, o padrasto, aos jornalistas.
Tanto o padrasto como a avó da menina garantiram que a mãe não tinha qualquer responsabilidade nos maus-tratos infligidos a Jéssica, que resultaram na morte da criança, na passada segunda-feira. "Aqui em casa a mãe nunca batia na criança. Para comer, dava-lhe assim um açoitezinho, por cima da fralda, como qualquer pai faz", disse o padrasto, em declarações à CNN Portugal.
Ao final do dia de quarta-feira, tanto a falsa ama de Jéssica como o marido e a filha, bem como a mãe e o padrasto da menina, foram levados para as instalações da Polícia Judiciária de Setúbal para prestarem declarações. Só ao início da madrugada de quinta-feira as autoridades divulgaram que esta família ficava detida, a aguardar medidas de coação. A mãe de Jéssica e o padrasto saíram em liberdade.
Morte num quadro de "maus-tratos"
Jéssica morreu na passada segunda-feira, tendo dado entrada nesse mesmo dia no Hospital de São Bernardo, que integra o Centro Hospitalar de Setúbal, “entubada e ventilada”, depois de ter sido assistida em casa da mãe por uma equipa de emergência médica.
Fonte do hospital revelou depois que as tentativas de reanimação da criança não foram bem sucedidas e que Jéssica não sobrevivera aos ferimentos. Na terça-feira, a PJ de Setúbal admitiu que a morte de Jéssica ocorreu num “quadro evidente de maus-tratos”.
Já esta quinta-feira, a Polícia Judiciária revelou em comunicado que identificou e deteve um homem de 58 anos e duas mulheres, de 52 e 27 anos, "por sobre eles recaírem fortes indícios da prática dos crimes de homicídio qualificado, ofensas à integridade física grave, rapto e extorsão" na sequência da morte da menina de três anos, ocorrida no passado dia 20 de junho. "Os detidos serão presentes a primeiro interrogatório judicial para aplicação das medidas de coação tidas por adequadas", informa ainda a declaração.
As duas mulheres, sabe a CNN Portugal, ficaram detidas no estabelecimento prisional de Tires. O homem passou a noite na prisão junto à sede da Polícia Judiciária em Lisboa. Os três serão levados esta quinta-feira ao tribunal de Setúbal.
A versão da mãe e possível negligência
A mulher que é suspeita de ter sequestrado e agredido até à morte, juntamente com o marido e uma filha, a criança de três anos, tê-lo-á feito para pressionar a mãe da menina a pagar-lhe uma dívida de cerca de 800 euros.
Segundo disse a mãe de Jéssica à Polícia Judiciária, as agressões à filha eram uma forma de pressão sobre ela, para que entregasse o dinheiro.
A TVI/CNN Portugal apurou ainda que a suspeita nunca foi ama da criança e que esta versão foi dada pela mãe de Jéssica para justificar ter entregado a filha aos cuidados da mulher a quem devia dinheiro. Às autoridades, a mãe da criança de três anos revelou que não alertou a polícia para o rapto da filha porque estava sob ameaça do casal que a levara.
A criança de três anos acabaria por morrer horas depois de os alegados sequestradores terem chamado a mãe, já em debilitado estado de saúde e depois de ter sido vítima de agressões ao longo de vários dias.
A criança foi devolvida à mãe na manhã de segunda-feira, ainda que esta só tenha pedido auxílio ao início da tarde, perante uma menor que definhava.
Devido a esta demora em prestar ajuda a uma criança que estaria visivelmente debilitada e com sinais de agressões, as autoridades poderão extrair deste processo, em que a mãe de Jéssica é vítima, uma certidão para apurarem se existiu negligência da mulher que não levou imediatamente a filha a um hospital. Além de Jéssica, a mulher tem mais filhos, mas só a mais nova viveria com ela e com o padrasto, que colaborou com as autoridades.
Bruxaria na origem da dívida
Outra informação prestada pela mãe da criança às autoridades está relacionada com a origem da dívida de 800 euros que contraiu junto da mulher que acabaria por lhe raptar a filha. Devido a problemas conjugais, a mãe de Jéssica entregou-se a rezas desta mulher para tentar salvar a relação. E ela foi cobrando mais e mais dinheiro, até que a vítima deixou de conseguir pagar. Para levar a criança, terá atraído a mãe para mais um encontro, em que a iria ajudar com uma última reza. Sugeriu que a mulher levasse também a filha, que ficaria a brincar com a neta dela durante a "consulta". A criança foi raptada nessa ocasião.
A menor sofreu várias agressões durante os dias em que esteve raptada - por parte da mulher, do marido e da filha do casal. Até que começou a dar sinais físicos de que poderia não resistir. Nessa altura, a alegada sequestradora contactou a mãe para que esta fosse buscar a filha.
Jéssica fora referenciada pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Risco (CPCJ) e era seguida pela Segurança Social. Segundo o Jornal de Notícias, não havia, contudo, processo na CPCJ de Setúbal. Ao mesmo jornal, Isabel Braz, presidente da CPCJ de Setúbal, revelou que após a comunicação da situação de perigo foi aberto processo, mas que este foi posteriormente remetido aos serviços do Ministério Público da Comarca de Setúbal.
Rosário Farmhouse, presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, disse à CNN Portugal que, apesar dos esforços, não é possível a estas comissões preverem todos os desfechos, nomeadamente o que acabou por acontecer a Jéssica.
João Bugia, coordenador da Polícia Judiciária de Setúbal, revelou entretanto que, apesar de haver algumas suspeitas iniciais de eventuais agressões sexuais contra a criança, esses indícios não foram confirmados na autópsia realizada na quarta-feira.