opinião
Advogada e Especialista em matérias de segurança e defesa

Transparência 2.0: Em matéria de segurança, a transparência é a regra e o segredo a exceção

24 dez 2023, 10:30

Nas democracias consolidadas, como Portugal, a transparência emerge como um pilar vital para a democracia, desempenhando uma dupla função: por um lado, assegura a responsabilidade dos órgãos governamentais, e, por outro lado, promove a participação dos cidadãos no processo democrático.

A Revolução dos Cravos em 1974, que marcou o fim do Estado Novo e a transição para a democracia, trouxe uma mudança significativa na relação entre segredo e transparência. A nova era democrática enfatizou a transparência como princípio-chave, proclamou o segredo como exceção e promoveu a abertura das práticas governamentais, a liberdade de imprensa e a prestação de contas.

Em linha com outros regimes europeus, a Constituição de 1976, sobretudo após a emenda constitucional de 1989, fortaleceu o direito fundamental de acesso à informação administrativa, e limitou as restrições a este direito ao estritamente necessário para proteger outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, como a segurança interna e externa, desde que aprovadas por lei da assembleia da república.

Este direito, essencial para a liberdade de expressão e para a democracia participativa, transformou a administração pública numa “casa com paredes de vidro”, conforme descrito pelo Tribunal Constitucional, incentivando não apenas a vigilância, mas a participação ativa dos cidadãos no processo democrático.

A Constituição de 1976 refletiu um esforço deliberado para enfatizar a transparência e a abertura como princípios centrais, como resposta direta à prevalência do segredo durante o regime do Estado Novo.

Com efeito, o regime autoritário liderado por Salazar empregava intensamente o segredo de Estado, indo muito além da proteção da segurança nacional. Esta prática era um meio para manter o controlo político e social, restringindo a liberdade de expressão e a oposição políticas. O segredo não só justificava as ações do governo sob o pretexto de segurança, mas também simbolizava a natureza opressiva do regime, perpetuando o seu controlo autoritário e mantendo a população desinformada sobre as práticas governamentais.

Assim, a Constituição de 1976, marcou uma mudança significativa na forma de governar e na implementação de práticas democráticas, com a alteração do paradigma: a transparência é a regra e o segredo é a exceção.

Contudo, a legislação que regulamenta as regras sobre o segredo em matéria de segurança, tardam em ver a luz do dia…

Por exemplo, o regime do segredo de Estado em Portugal, nomeadamente com as alterações mais recentes produzidas pela Lei nº 2/2014, provocou mudanças substanciais. Apesar de reafirmar a excecionalidade do regime de segredo de Estado e enfatizar a

transparência, esta lei introduziu conceitos mais amplos de segurança. E esta expansão parece desviar-se do paradigma tradicional de segurança e transparência consagrado na Constituição portuguesa.

Por seu turno, e de forma ainda mais premente, tarda a revisão do regime das comummente designadas de “regras SEGNAC”, aprovadas em 1988, de forma a harmonizar e conformar estas regras relativas à classificação documental com os padrões constitucionais da transparência e responsabilidade consagrados com a revisão constitucional de 1989. Aliás, necessidade expressamente vertida na lei de 2014, concretamente no seu artigo (…), que determinava um prazo de 90 dias para se proceder à conformação destas regras SEGNAC.

A agravar este estado de coisas, as notícias veiculadas sobre a incapacidade operacional da entidade fiscalizadora do segredo de Estado em Portugal são preocupantes. Limitações de recursos e falhas no cumprimento das normas por entidades públicas comprometem a eficácia do escrutínio e sublinham a necessidade de maior transparência e rigor no manuseamento da informação classificada. Por exemplo, de acordo com o Almirante Torres Sobral, antigo presidente da Entidade Fiscalizadora do Segredo de Estado, organismo que funciona junto à Assembleia da República, “nas várias entidades competentes para classificar, a EFSE tem deparado com muros intransponíveis. Nestes cinco anos de atividade apenas lhe foram comunicadas cinco matérias classificadas. “ (https://www.dn.pt/politica/segredo-de-estado-almirante-confronta-ps-denuncia-falta-de-informacoes-e-de-seguranca--13429801.html ).

Em suma, a intersecção entre segredo de Estado, segurança e transparência representa um desafio significativo para o Estado de direito em Portugal. O segredo de Estado é essencial para a proteção nacional ou da sua segurança, mas o seu uso não pode ser indiscriminado.

A robustez das democracias contemporâneas depende da transparência, responsabilidade e respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos. Portanto, é vital que os moldes legislativos e políticos reflitam um compromisso inabalável com os valores democráticos, assegurando que a transparência e a responsabilização sejam princípios operativos na governança.

Apesar do considerável atraso na implementação dessas mudanças, uma das melhores ofertas que se poderia fazer à democracia na celebração do 50º aniversário da Revolução dos Cravos seria a concretização dessas reformas.

Colunistas

Mais Colunistas

Patrocinados