"O Kremlin quer moldar a confissão dos terroristas" e culpar a Ucrânia pelo atentado em Moscovo

25 mar, 22:00
Suspeitos do atentado em Moscovo (AP)

Suspeitos do atentado numa sala de espetáculos na capital russa apareceram em tribunal com sinais de agressões e os especialistas alertam que isso pode fazer parte da estratégia da Rússia para desviar a culpa para a Ucrânia

Ainda os quatro suspeitos do atentado terrorista que matou 139 pessoas, segundo o último balanço, numa sala de espetáculos em Moscovo não tinham chegado ao tribunal e as imagens que circulavam não deixavam dúvidas. Num dos vídeos, as autoridades russas cortam uma orelha a um suspeito e obrigam-no a comê-la, horas depois, outro dos homens aparece no chão, de calças para baixo, a contorcer-se em agonia com choques elétricos nos genitais. Um dia depois, os quatro principais suspeitos foram apresentados a tribunal com sinais de terem sido alvo de agressões e os especialistas garantem que o Kremlin tem vários motivos para o fazer.

“Por mais abjeto que seja o crime, nenhum país tem direito de torturar as pessoas desta forma. Cortar uma orelha e obrigar a comê-la não é normal, mas a Rússia está a fazer isto por um motivo. O Kremlin quer moldar a confissão destes homens e culpar a Ucrânia pelo ataque”, afirma o major-general Isidro de Morais Pereira.

Vladimir Putin demorou 19 horas até reagir oficialmente ao mais violento atentado que a Rússia sofreu nos últimos 20 anos. Quando o fez, ignorou a reivindicação do atentado por parte do Estado Islâmico e lançou as bases para culpar a Ucrânia pelo ataque, ao sugerir que alguém do lado ucraniano estava a tentar ajudar os terroristas a escaparem às forças de segurança russas e a entrar no país. “Estavam a tentar esconder-se e iam em direção à Ucrânia”, acusou o presidente russo.

Estas declarações fazem vários especialistas temer que a Rússia possa estar a utilizar a tortura, uma prática ilegal perante a lei internacional, como forma de forjar uma prova contra a Ucrânia, através de uma falsa confissão. Ao longo dos anos, vários estudos apontam para o facto de muitas das confissões obtidas em interrogatórios onde há tortura são completamente forjadas, uma vez que o suspeito diz aquilo que o interrogador quer ouvir só para parar com o seu sofrimento.   

“Qualquer ato de terror é hediondo e condenável, mas a tortura enquanto método não tem eficácia. Tortura como método de obter confissões é dúbia, uma pessoa sob tortura vai dizer o que for preciso para a tortura parar”, explica Pedro Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional.

Suspeito do atentado em Moscovo apareceu em tribunal numa cadeira de rodas e inconsciente (AP Images)

Mas, ao contrário do antigo presidente Dmitri Medvedev, Putin não acusou categoricamente a Ucrânia. Essa hesitação pode estar relacionada com o alerta emitido pelas autoridades americanas no dia 7 de março, que davam conta de um elevado risco de atentado em Moscovo. Na altura, o líder russo classificou este aviso como sendo uma “chantagem” ocidental e acabou por ver as suas agências de informação “humilhadas” ao deixar acontecer um ataque tão violento no coração da Rússia.

“Tudo isto é para consumo interno. A Rússia partilha estes vídeos porque o Kremlin quer mostrar que é absolutamente implacável com aqueles que põem em causa a segurança do povo russo. Putin está fundamentalmente preocupado com a aprovação interna”, insiste Isidro de Morais Pereira.

O Estado Islâmico em Khorasan, ou ISIS-K, reivindicou a autoria do ataque e Vladimir Putin admitiu esta segunda-feira que o ataque foi conduzido por “islamistas radicais”. Este grupo é uma filial do Estado Islâmico que opera na Ásia Central e que se tornou um dos grupos terroristas mais brutais e mais temidos da região. Mesmo estando a canalizar as culpas para a Ucrânia, Moscovo já revelou que vários dos suspeitos detidos são naturais do Tajiquistão, uma antiga república soviética de maioria muçulmana.

Estes factos colocam em causa a imagem de Putin como o líder forte que defende todo o povo russo e mancha a reputação das diversas agências de segurança que gozam de um poder quase absoluto no país. Este motivo e a necessidade de enviar uma mensagem a futuros atacantes são alguns dos motivos pelo qual o sistema russo está a tornar público os maus-tratos destes suspeitos.

“A Rússia não tem problemas em mostrar estas imagens de violência e fá-lo para assustar quem pensar em fazer algum atentado. Aquilo que para nós nos choca, que está à margem dos direitos humanos, a eles não”, explica José Manuel Anes, ex-presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo.

Em conferência de imprensa, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, foi questionado pela CNN Internacional sobre os sinais de agressões físicas nos suspeitos. "Um deles está em cadeira de rodas e com os olhos fechados. (...) O que lhes aconteceu?", questionou o repórter. A esta pergunta Dmitry Peskov respondeu apenas: "Não, deixo esta questão sem resposta."

Um dos suspeitos do atentado em Moscovo apareceu em tribunal com um ferimento na orelha (AP Images)

Esta não é a primeira vez que o Kremlin tenta impor uma demonstração de força como resposta a um ataque terrorista no seu país. Nos primeiros anos da presidência de Vladimir Putin, em 2002, o país enfrentava a revolta independentista da Chechénia. Um grupo de 40 a 50 terroristas entraram no interior do Teatro Dubrovka e fizeram mais de 800 reféns. A resposta das autoridades foi impiedosa. As forças especiais libertaram um gás para o interior do edifício e entraram a matar. Mais de 132 reféns perderam a vida e 700 ficaram feridos.

Na altura, o incidente foi utilizado para mobilizar a população contra os independentistas chechenos. Vladimir Putin aproveitou para endurecer as medidas para “lidar com a ameaça” e cancelou os planos para reduzir a presença de 80 mil soldados russos na Chechénia. Poucos dias depois, lançou uma operação de larga escala na região, precipitando uma nova vaga de refugiados de guerra. Agora, há quem tema que o Kremlin volte a tirar dividendos de uma tragédia ao culpar a Ucrânia através de uma falsa confissão.

“Desde o primeiro momento, Medvedev disse logo que o Ocidente esteve por detrás disso. Eles precisam de outro responsável que não os terroristas islâmicos, que lhes deem alguma motivação política e galvanizem a população. Provavelmente poderá ser aplicado para uma nova vaga de mobilização”, alerta Carlos Brás, antigo funcionário do Serviço de Informações de Segurança (SIS) e especialista em propaganda russa.

Este plano vai ao encontro da proposta avançada pelo ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, um dia antes do atentado. Em plena reunião com os principais líderes da Defesa russa, o ministro anunciou a intenção de criar dois novos exércitos, bem como 14 novas divisões e 16 brigadas. Este anúncio surge depois de a Rússia ter anunciado a sua intenção de aumentar o número de militares para 1,5 milhões até ao final do ano. Isto significa que a Rússia teria de recrutar cerca de 500 mil novos soldados.

“O Kremlin está a perder completamente o controlo, nenhum país tem direito de torturar as pessoas desta forma. Mas a única maneira de dar veracidade à narrativa que querem criar é conseguir que aqueles quatro detidos corroborem que tiveram contactos com a Ucrânia. É isto que eles querem. A novela não vai ficar por aqui”, antecipa o major-general Isidro de Morais Pereira.

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