"Nem todas somos feitas para cheirar a peixe lá em baixo". Porque é que um anúncio com uma sereia está a causar tanta polémica?

23 jun 2023, 20:41
Campanha da Gyno-Canesbalance (DR)

Trata-se de um anúncio a um creme para tratar a vaginose bacteriana, uma infeção que causa um cheiro desagradável na vulva. Mas muitas mulheres consideram-no de mau gosto e até ofensivo. A marca não reage, mas garante que a campanha foi pensada por mulheres

Uma sereia cheira a peixe. É normal. Mas: "Nem todas somos feitas para cheirar a peixe lá em baixo". Este é o slogan da mais recente campanha do Gyno-Canesbalance, um creme utilizado para tratar a vaginose bacteriana, uma infecção vaginal frequente em mulheres em idade reprodutiva. "Se tu cheirares a peixe lá em baixo é um sinal de vaginose bacteriana", avisa a sereia no vídeo do anúncio. "Ouve o que te digo, faz o tratamento."

A campanha foi lançada a 12 de abril e elogiada no meio publicitário. Mas, esta semana, um anúncio publicado na imprensa lançou a discussão nas redes sociais: "as vulvas cheiram mal?", "que mito é este que o órgão sexual feminino cheira a peixe?" E também surgiram logo as piadas de mau gosto e as (in)evitáveis referências a uma canção de Quim Barreiros sobre o cheiro a bacalhau.

 "Quando até a indústria farmacêutica recorre a graçolas destas, não admira que tantas miúdas e mulheres andem a destruir as suas floras vaginais com perfumes para a genitália", escreveu Paula Cosme Pinto no Instagram. "Entre tantas outras razões possíveis, se a alteração do nosso odor acontece numa situação de infecção vaginal, vamos lá retirar precisamente de cima do assunto as piadolas labregas com mensagens subentendidas quanto ao nosso cheiro nesses momentos. Porque disso estamos nós fartas", critica a consultora de comunicação e cronista conhecida pelas suas posições feministas. "Sou só eu que fico incomodada?", pergunta. Uma olhadela rápida aos comentários permite concluir que não. Há mais mulheres incomodadas, revoltadas e até enojadas com este anúncio.

"Humor fino e inteligente": Bayer não comenta a polémica

A Bayer, farmacêutica responsável pelo produto, acompanhou a polémica mas não faz comentários nem tenciona retirar a campanha. À CNN Portugal, o porta-voz clarifica apenas que, ao contrário do que alguns disseram, a campanha não foi pensada por homens mas por mulheres - quer na agência de publicidade, quer na marca.

No press release divulgado em abril, a Bayer explicava que o objetivo da campanha "é, numa categoria habituada a eufemismos, falar dos sintomas de uma forma natural e com a qual as mulheres se identifiquem".

LOLA MullenLowe, a agência publicitária, dizia: "Os consumidores têm o direito a informação clara e direta que lhes permita detetar sintomas de desequilíbrio da flora vaginal e tratá-los com produtos eficazes. Com Gyno-Canesbalance trabalhamos precisamente na comunicação do sintoma mais percetível - um cheiro popularmente identificado como de peixe - eliminando qualquer causa de complacência". A agência acrescentava ainda que esta campanha tem uma comunicação "direta, desinibida e divertida". 

Helena Marzo, diretora criativa da LOLA MullenLowe, referiu "o humor fino e inteligente do anúncio" que permite falar com naturalidade sobre os cuidados vaginais das mulheres. "Se o principal sintoma é o cheiro a peixe, falemos então de cheiro a peixe. A chave é quem fala e a forma como se dirige às mulheres sobre este tema. Neste caso, ninguém melhor do que uma sereia para desmitificar este sintoma".

Afinal, a que cheiram as vulvas?

"As glândulas que produzem a secreção vaginal são glândulas de suor, só que adaptadas ao local onde se encontram. Por isso, é normal que exista um odor característico", explica Fernando Cirurgião, ginecologista e obstetra. "Esse odor pode ser mais intenso, por exemplo, se houver uma insuficiente ingestão de líquidos. Até a alimentação influencia o odor do suor." No entanto, nunca é um odor mau ou incómodo.

Os dois principais problemas causados por desequilíbrios da flora vaginal são a candidíase e a vaginose bacteriana, explica o médico. "Não se trata de doenças sexualmente transmissíveis, é preciso que fique claro. Há muitos fatores que podem interferir no equilíbrio da flora vaginal, como por exemplo uma cueca de material diferente, o uso de um determinado gel de banho ou até a toma de alguns antibióticos."

"A candida albicans é um fungo que provoca uma secreção vaginal com um tom esbranquiçado e grumuso, que dá uma irritação, pode causar muita comichão e até ardor", explica Fernando Cirurgião.

Por outro lado, a vaginose baceteriana é causada por uma bactéria que surge também no quadro do desequilibrio da flora vaginal, e neste caso "há um corrimento que já tem algum tom (pode ser meio acinzentado), e tem um odor mais intenso. Isto acontece porque as bactérias produzem gás. Assim, num quadro extremo, o corrimento é intenso e abundante e o cheiro é de facto um cheiro a peixe, é a melhor forma de o descrevermos, é o cheiro mais semelhante que conhecemos."

A perpetuação de um estigma: "Não é suposto cheirar a rosas"

Dito assim, até faz sentido o que diz o anúncio, não é? No entanto, as críticas chamam a atenção para o facto de o cheiro da vagina ser usado, sistematicamente, para atacar as mulheres, levando-as a sentir vergonha do seu corpo (por causa do cheiro, assim como por causa dos pêlos, ou do peso) e pressionando-as a comprar produtos que alegadamente fazem com que a sua vulva cheire bem. Acresce a isto o facto de, na cultura portuguesa, o cheiro a peixe da vulva ser usado popularmente como insulto. Talvez a tradução do inglês pudesse ter tido isso em conta, comentam as mulheres.

"Têm noção de quantas meninas e mulheres continuam a adiar o tratamento de tais situações tão simples de resolver, precisamente porque sentem vergonha dos sintomas associados?", pergunta Paula Cosme Pinto. "Que arrastam um problema de saúde porque têm medo de serem rotuladas como aquelas que cheiram a bacalhau, por mais que lavem a vulva até à exaustão? Que temem, inclusive, o julgamento de profissionais de saúde? Que se põem a comprar cremes perfumados (que só causam danos ao nosso PH), em vez de irem em busca de ajuda médica? Cremes que continuam a ser vendidos sem pudor - e com imenso glamour! - por indústrias que pouco querem saber da nossa saúde."

E conclui: "O que é suposto ser 'divertido e desinibido', torna-se dúbio. Uma marca que está no mercado há tanto tempo, que tem tanta experiência neste tema e que sabe - ou deveria saber! - de cor os estigmas, mitos e desinformação enfrentadas nestas questões por boa parte da população, é inaceitável que recorra a piadinhas com entrelinhas destas."

O tema, aliás, tem dado origem a várias discussões. "Volta e meia, aparece mais um produto para fazer a vulva cheirar ou saber a rosas ou a outra coisa qualquer que não é natural, nem saudável para a vulva", apontava a ilustradora e ativista feminista Clara Não numa das suas recentes crónicas no Expresso. "Deixem as nossas vulvas em paz. Não é suposto cheirar a rosas, não é suposto saber a abacaxi: é uma vulva, é suposto cheirar a vulva e saber a vulva."

Fernando Cirurgião sublinha que estamos a falar de produtos distintos: uma coisa são "produtos com efeito terapêutico" que são de facto úteis para tratar a vaginose bacteriana, outra são produtos de higiente íntima que, na maioria dos casos, "não é fundamental usar, a mulher não tem que o fazer, poderá fazê-lo se isso lhe trouxer bem estar ou como reforço do tratamento para ter mais conforto vaginal, mas com algum cuidado, sempre verificando que os produtos não têm perfumes por que os perfumes são prejudiciais à flora vaginal". 

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