William quebrou a neutralidade política da realeza britânica, "à revelia" do governo e "por uma causa nobre"

24 fev, 17:00
Príncipe William (Associated Press)

Família Real britânica obedece, de forma protocolar, à neutralidade política e raramente se pronuncia sobre questões políticas. Na terça-feira, de forma assertiva e taxativa, William pediu o fim do conflito no Médio Oriente onde "demasiadas pessoas foram mortas", num ato pensado, mas que foi feito "à revelia" do governo britânico

"Continuo profundamente preocupado com o terrível custo humano do conflito no Médio Oriente desde o ataque terrorista do Hamas a 7 de outubro. Demasiadas pessoas foram mortas. Eu, tal como muitos outros, quero ver o fim dos combates o mais rapidamente possível. Há uma necessidade desesperada de aumentar o apoio humanitário a Gaza. É fundamental que a ajuda chegue e que os reféns sejam libertados. Por vezes, só quando confrontados com a escala do sofrimento humano é que nos apercebemos da importância de uma paz permanente. Mesmo na hora mais negra, não devemos sucumbir ao conselho do desespero. Continuo a agarrar-me à esperança de que é possível encontrar um futuro melhor e recuso-me a desistir disso."

O comunicado é assinado por William, príncipe de Gales e herdeiro ao trono britânico. Um comunicado assertivo e distante da neutralidade política a que a realeza obedece de forma protocolar e que, segundo Alberto Miranda, especialista em realeza, terá sido feito por se tratar de "uma causa nobre", até porque "esta situação do Médio Oriente é um verdadeiro drama a todos os níveis" e "a realeza, neste caso William, dá um papel à realeza que não é meramente decorativo".

"É um papel de luta pelos direitos humanos. William fez esta visita à Cruz Vermelha - que é uma organização internacional de direitos humanos - e ele achou apropriado. E no comunicado diz que estava muito preocupado com este drama humano no Médio Oriente, disse que muitas pessoas já morreram muitas pessoas, e ainda vai mais longe e diz que este conflito tem de parar o mais rápido possível", analisa o autor do livro "De Plebeias a Princesas e Rainhas".

Na declaração tornada pública na terça-feira, William é taxativo em toda as palavras ou, como considera Tiago André Lopes, especialista em Relações Internacionais, "muito claro", fazendo lembrar o pai na altura em que era príncipe de Gales e em que "também era mais interventivo".

"Ao contrário da rainha Isabel II, que era de facto uma institucionalista, que se colocava na margem da maioria dos assuntos e que usava apenas o espaço de influência privado que ela tinha com os políticos, Carlos, na altura príncipe de Gales, a única forma que tinha de aparecer num espaço público mediático era tendo por vezes declarações com impacto. O que é que o príncipe William já percebeu? Ele, mesmo que venha a ser rei, e que nesse momento tenha de se arreigar deste tipo de comentários, nesta fase o único trunfo que ele tem é a palavra dele. No mundo das redes sociais, no mundo da informação instantânea, no mundo da comunicação rápida, a palavra de uma figura mediática como o William, tem peso".

Tiago André Lopes diz ainda que a novidade da declaração é esta ter sido feita "à revelia do governo do Reino Unido" - a CNN sabe que o governo britânico foi informado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros antes da declaração do príncipe. No entanto, este não foi um "ato irrefletido" até porque "Wiliam não quer ser comparado, por exemplo, a algum impulsivismo do seu irmão, e há aqui essa tentativa de descolagem".

"Ou seja, isto não é um ato de rebeldia, isto não é um ato contra a coroa ou contra o governo, isto é apenas o príncipe William a mostrar que ele, enquanto cidadão do mundo, e não tanto na condição de príncipe William, considera que o que está a acontecer de facto em Gaza é inaceitável, mas de modo a não contaminar a Coroa. Porque se isto, obviamente, fosse à revelia contaminaria a coroa num momento sensível - com o pai neste momento a lutar contra um cancro não é o momento ideal para atos de rebeldia", explica o comentador da CNN Portugal.

O príncipe de Gales ouve Pascal Hundt, gestor de crise do Comité Internacional da Cruz Vermelha, a partir de Gaza, durante uma visita da Cruz Vermelha Britânica na sua sede em Londres, a 20 de fevereiro de 2024 (Foto: Kin Cheung/Associated Press)

Perante o momento de "grande carência em Gaza", o príncipe de Gales deixou então cair a neutralidade política "por uma causa nobre" para "dar uma voz a quem de facto viu as imagens" que chegam de Gaza.

Para Alberto Miranda, "à semelhança do que Diana fazia com as minas antipessoais em África", William "quis usar a sua imagem para ser mais uma voz para parar a guerra" e "isto é também uma forma de mostrar que a realeza tem os valores que são o oposto da guerra: tem os valores da democracia, dos direitos humanos, e este comunicado é uma afirmação muito importante".

Mas pode esta tomada de posição ser um risco para a reputação de William enquanto príncipe? 

Para Tiago André Lopes é, "acima de tudo, um risco para a ideia da neutralidade", uma vez que "não há neutralidade quando nos posicionamos de forma tão clara sobre os assuntos".

"Agora, o que o William acha é que a dimensão humanitária do que está a acontecer em Gaza se sobrepõe a esta ideia da neutralidade permanente. Ele tomou um risco, é de facto arriscado, mas parece-me que ele tomou um risco calculado para se posicionar. Este é um homem que percebe que em política interna não se vai imiscuir muito, mas vai em política externa. Parece-me que este é um homem que vai querer tomar posições", observa.

Posição que, na opinião do especialista de realeza Alberto Miranda, foi "tomada de forma consciente" e que "poderá ser analisada de várias formas". "Mas não vejo que afete a sua popularidade. Pelo contrário, acho que até lhe deu aqui um lado humano, de preocupação".

A formação militar de William

Tiago André Lopes lembra ainda que William tem formação militar e que, "tendo em conta o fracasso a que temos assistido na questão do resgate dos civis em Gaza, estará a mexer muito com o príncipe William".

"A incapacidade do Estado de Israel, ou em alguns casos até parece a falta de vontade até com as últimas notícias que vimos, do ataque a camiões de ajuda humanitária, a incapacidade de garantir ajuda perante o homem que já trabalhou do lado de quem resgatou civis, para além da dimensão de ser pai, para além de uma dimensão também de preocupação da projeção da imagem do Reino Unido. Porque há aqui também outra preocupação de William, e essa para mim é muito clara. William percebe que este posicionamento do Reino Unido, mais próximo do governo de Telavive, menos claro na questão do estado palestiniano, é prejudicial para a reputação do Reino Unido, no seio da Commonwealth, é muito prejudicial. Ele também está a trabalhar para garantir que o governo faz as suas escolhas - por isso falou com o executivo - mas ao mesmo tempo salvaguardar a imagem internacional do Estado numa altura em que o seu pai não o pode fazer", afirma. 

O especialista em Relações Internacionais ressalva, no entanto, que apesar de, indiretamente, William querer "pressionar o governo e, sobretudo, os parlamentares a repensarem esta posição meio que acrítica, meio até passiva, de permanentemente ou se absterem ou bloquearem votações para cessar fogos, para acordos de paz", não o está a tentar fazer enquanto "futuro monarca", mas a usar da palavra "enquanto pai e enquanto cidadão".

"Até porque ele percebe que, nesta altura de eclipse do seu pai, os holofotes estão sobre ele. Ele está a aproveitar esse palco para, indiretamente, condicionar a ação do governo, o que obviamente é diferente do que Isabel II faria, porque ela não faria este tipo de declarações, não era seu hábito, mas os tempos são outros e o William sabe que fazê-lo no espaço público é necessário para reumanizar a família real", conclui.

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