"É melhor morrer com bombas": a fome é tanta em Gaza que já se bebe água poluída e se come relva

CNN , Sana Noor Haq e Rosa Rahimi
31 jan, 08:00
Palestinianos fazem fila para uma refeição gratuita em Rafah, Faixa de Gaza, 21 de dezembro de 2023 (Fatima Shbair/AP)

Hanadi Gamal Saed El Jamara, 38 anos, diz que o sono é a única coisa que consegue distrair os seus filhos da fome que lhes faz doer a barriga.

Atualmente, a mãe de sete crianças dá por si a mendigar comida nas ruas cobertas de lama de Rafah, no sul de Gaza.

Tenta alimentar os filhos pelo menos uma vez por dia, diz, enquanto cuida do marido, doente de cancro e diabetes.

"Agora estão fracos, têm sempre diarreia, têm a cara amarela", disse à CNN a 9 de janeiro El Jamara, cuja família foi deslocada do norte de Gaza. "A minha filha de 17 anos diz-me que sente tonturas e o meu marido não come".

À medida que Gaza se aproxima da fome em grande escala, os civis deslocados e os profissionais de saúde contam à CNN que passam fome para que os seus filhos possam comer o pouco que existe. Se os palestinianos encontram água, é provável que não seja potável. Quando os camiões de ajuda humanitária chegam à faixa de fronteira, as pessoas atropelam-se umas às outras para se apoderarem da ajuda. As crianças que vivem nas ruas, depois de terem sido forçadas a abandonar as suas casas pelos bombardeamentos de Israel, choram e lutam por pão estragado. Outras, segundo consta, caminham durante horas ao frio à procura de comida, arriscando-se a ser expostas aos ataques israelitas.

Mesmo antes da guerra, duas em cada três pessoas em Gaza dependiam de apoio alimentar, recorda à CNN Arif Husain, economista-chefe do Programa Alimentar Mundial (PAM). É que os palestinianos viveram 17 anos de bloqueio parcial imposto por Israel e pelo Egito.

Os bombardeamentos e o cerco de Israel, desde 7 de outubro, reduziram drasticamente os abastecimentos vitais em Gaza, deixando toda a população de cerca de 2,2 milhões de pessoas exposta a elevados níveis de insegurança alimentar aguda ou pior, de acordo com a Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC), que avalia a insegurança alimentar e a desnutrição a nível mundial. Martin Griffiths, chefe do serviço de ajuda de emergência da ONU, disse à CNN que a "grande maioria" dos 400 mil habitantes de Gaza caraterizados pelas agências da ONU como estando em risco de morrer à fome "estão de facto em situação de fome". Os especialistas em direitos humanos da ONU alertaram que "Israel está a destruir o sistema alimentar de Gaza e a utilizar os alimentos como arma contra o povo palestiniano".

Ao longo de mais de 100 dias, os palestinianos em Gaza assistiram a deslocações em massa, bairros transformados em cinzas e escombros, famílias inteiras eliminadas pela guerra, um aumento de doenças mortais e o sistema médico destruído pelos bombardeamentos. Atualmente, a fome e a desidratação são as principais ameaças à sua sobrevivência.

"Estamos a morrer lentamente", reflete El Jamara, mãe a viver em Rafah. "Acho que é ainda melhor morrer com as bombas, pelo menos seremos mártires. Mas agora estamos a morrer de fome e de sede".

Os ataques israelitas em Gaza desde os atentados do Hamas de 7 de outubro mataram pelo menos 26.637 pessoas e feriram outras 65.387, de acordo com o Ministério da Saúde dirigido pelo Hamas. As forças armadas israelitas lançaram a sua campanha depois de o grupo militante ter matado mais de 1.200 pessoas em ataques sem precedentes contra Israel e afirmam que o alvo é o Hamas.

Comem erva para sobreviver

Mohammed Hamouda, um fisioterapeuta deslocado para Rafah, recorda o dia em que o colega, Odeh Al-Haw, foi morto ao tentar obter água para a sua família.

Al-Haw estava na fila de uma estação de água no campo de refugiados de Jabalya, no norte de Gaza, quando ele e dezenas de outras pessoas foram atingidos pelos bombardeamentos israelitas, conta Hamouda.

"Infelizmente, muitos familiares e amigos ainda estão no norte da Faixa de Gaza, a sofrer muito", diz Hamouda, pai de três filhos, à CNN. "Comem erva e bebem água poluída".

Ataques aéreos israelitas em Gaza dizimaram vastas áreas do território palestiniano, incluindo o campo de refugiados de Jabalia, na cidade de Gaza, fotografado a 11 de outubro. Um profissional de saúde deslocado disse à CNN que o seu colega foi morto pelos bombardeamentos israelitas na região, quando tentava obter água para a sua família (AP)

O bloqueio de Israel e as restrições à entrega de ajuda significam que as provisões são desesperadamente baixas, fazendo subir os preços e tornando os alimentos inacessíveis à população de toda a Faixa de Gaza. De acordo com a ONU, a escassez é ainda mais grave na zona norte da faixa, onde Israel concentrou a sua ofensiva militar nos primeiros dias da guerra. As falhas de comunicação impedem os esforços de informação sobre a fome e a desidratação na região.

"As pessoas mataram um burro para comer a carne", diz Hamouda a amigos em Jabalya, recordando um episódio do início deste mês, quando a escassez se agravou.

No que poderá ser um rude golpe para os esforços humanitários, vários países ocidentais suspenderam nos últimos dias o financiamento da principal agência da ONU em Gaza, a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Médio Oriente (UNRWA), devido às alegações de Israel de que vários dos seus funcionários participaram nos ataques de 7 de outubro, e que motivaram o despedimento de vários funcionários daquela agência.

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Jordânia instou os países que suspenderam o financiamento a reconsiderar, afirmando que a UNRWA é uma "tábua de salvação" para mais de dois milhões de palestinianos em Gaza e que a agência não deve ser "coletivamente punida" devido a alegações contra uma dúzia dos seus 13 mil funcionários.

Sem água potável

Gihan El Baz embala uma criança no joelho enquanto conforta filhos e netos, que, segundo ela, acordam todos os dias "a gritar" por comida.

"Nos abrigos, não há comida suficiente, o sol põe-se sobre nós e ainda nem sequer almoçámos", continua El Baz, que vive com 10 familiares dentro de uma tenda desgastada pelo tempo em Rafah. Ela cuida do marido, que caiu e fraturou o braço enquanto estava tonto de cansaço.

"Não há bebidas, não há água limpa, não há casas de banho limpas, a criança chora por um biscoito e nem sequer conseguimos encontrar nenhum para lhe dar".

Os órfãos Hoor (à esquerda) e Kanan (à direita) abrigam-se dentro de uma tenda num campo de deslocados em Rafah, no sul de Gaza, a 25 de janeiro. Os prestadores de cuidados palestinianos dizem que o stress de não poderem proteger as crianças dos ataques é exacerbado pela sua incapacidade de fornecer alimentos suficientes (Cortesia Hazem Saeed Al-Naizi)

Os pais deslocados em Rafah, para onde o Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) informou que mais de 1,3 milhões de residentes de Gaza foram forçados a fugir, dizem que o stress de não poderem proteger os seus filhos dos bombardeamentos é agravado pela sua incapacidade de fornecer alimentos suficientes. O acesso limitado à eletricidade impossibilita a refrigeração de produtos perecíveis. As condições de vida são sobrelotadas e pouco higiénicas.

"As pessoas são obrigadas a cortar árvores para obter lenha para aquecer e preparar os alimentos. Há fumo por todo o lado e as moscas espalham-se por todo o lado e transmitem doenças", descreve Hazem Saeed Al-Naizi, diretor de um orfanato na cidade de Gaza, que fugiu para sul com as 40 pessoas que tinha a seu cargo - a maioria das quais são crianças e bebés com deficiência.

Homem deslocado faz pão junto a uma tenda que montou num passeio em Rafah, no sul de Gaza, a 22 de janeiro (Cortesia Mohammed Hamouda)

Hamouda, profissional de saúde deslocado, costumava alimentar os seus filhos - de seis, quatro e dois anos - com uma mistura de frutas e legumes, biscoitos, sumos frescos, carne e marisco. Este ano, lamenta, a família mal comeu uma refeição por dia, vivendo de pão seco e carne enlatada ou legumes.

"As crianças estão a ser violentas umas com as outras para conseguir comida e água", acrescenta Hamouda, que trabalha no Hospital Abu Youssef Al-Najjar e é voluntário num abrigo próximo. "Não consigo evitar que as lágrimas caiam quando falo destas coisas, porque é muito doloroso ver os nossos filhos e outras crianças com fome."

Segundo a UNICEF, no mês passado, 350 mil crianças com menos de cinco anos em Gaza estavam especialmente vulneráveis à subnutrição grave.

Maior risco de morte

A "escala e a velocidade" da otencial fome em Gaza lançam as crianças que sobrevivem para uma vida inteira de riscos para a saúde, explica Rebecca Inglis, médica de cuidados intensivos na Grã-Bretanha que visita regularmente Gaza para ensinar estudantes de medicina.

Os primeiros mil dias de vida de uma criança são "absolutamente críticos" para o crescimento físico e o desenvolvimento cognitivo, continua a especialista, em declarações à CNN. As crianças malnutridas têm um risco 11 vezes maior de morrer em comparação com as crianças bem nutridas, reforça. Isto porque deficiências de vitaminas e minerais obrigam o corpo a entrar num "estado de paragem de emergência", em que perde a capacidade de produzir energia, ganhar peso ou manter as funções renais e hepáticas.

As crianças subnutridas, especialmente as que sofrem de subnutrição aguda grave, correm maior risco de morrer de doenças como diarreia e pneumonia, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Os casos de diarreia em crianças com menos de cinco anos de idade, por exemplo, aumentaram cerca de 2.000% desde 7 de outubro, segundo a UNICEF.

Hamouda confirma que os próprios filhos têm diarreia e sintomas de constipação e gripe. "Os corpos das crianças estão desidratados... a sua pele está desidratada".

Além disso, em alturas de grande stress, as mulheres grávidas têm mais probabilidades de abortar ou de dar à luz prematuramente, referiram anteriormente profissionais de saúde à CNN. Em Gaza vivem 50 mil mulheres grávidas, segundo o Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA). Os bebés que sobrevivem no útero têm maior probabilidade de nascer com peso inferior ao normal e, portanto, correm maior risco de morrer. Já as mães, famintas e desidratadas, não conseguem fornecer leite materno suficiente para os seus bebés.

Desafios à distribuição de alimentos, ajuda bloqueada

Shadi Bleha, 20 anos, está a tentar alimentar uma família de seis pessoas. Duas vezes por semana, recebem da UNRWA duas garrafas de água, três biscoitos e "por vezes" duas latas de comida.

"Não é suficiente para satisfazer as necessidades da minha família", diz à CNN o estudante, que está abrigado numa tenda em Rafah.

Os palestinianos do sul de Gaza também disseram à CNN que a distribuição humanitária mal regulada significa que alguns civis não recebem qualquer ajuda, enquanto os que recebem podem vender para obter lucro.

Noutros casos, os vendedores compram a ajuda aos comerciantes e vendem-na nos mercados a preços inflacionados. Algumas pessoas com carro viajam para mais longe para obter água, regressando aos campos de deslocados para revender a água a preços mais elevados. A intensificação das greves também faz aumentar os preços. Há três semanas, um saco de 25 quilos de farinha custava menos de 20 euros em Khan Younis, segundo Al-Naizi, mas depois de as Forças de Defesa de Israel (IDF) intensificarem os ataques ao sul da cidade, passou a custar mais de 30 euros.

Outros dizem que recebem pacotes de ajuda humanitária que foram abertos e que não têm nada. As tâmaras, o azeite e o óleo de cozinha encontrados nos pacotes de ajuda são alegadamente vendidos no mercado negro por mais do dobro do seu valor.

A diferença entre o que os civis palestinianos precisam e o que lhes é dado é enorme
Após o início da guerra entre Israel e o Hamas, as Nações Unidas estimaram que os palestinianos necessitam de mais de 1,2 mil milhões de dólares em ajuda humanitária urgente, mais de 90% dos quais para os residentes de Gaza. Até à data, foi disponibilizado pouco mais de metade do financiamento de emergência necessário.

Nota: Os dados abrangem a Faixa de Gaza e a Cisjordânia. Os números incluem fundos autorizados e pagos e excluem as promessas. O financiamento não afetado é dinheiro que foi comunicado para múltiplas utilizações, mas a organização beneficiária ainda não decidiu quais as necessidades que irá cobrir. Inclui também fundos que não foram afetados ou que não têm uma descrição da sua utilização

Em 21 de janeiro, o Coordenador das Atividades Governamentais nos Territórios (COGAT) de Israel afirmou que 260 camiões humanitários foram "inspecionados e transferidos para Gaza", o que representa o número mais elevado desde o início da guerra.

Mas as agências de ajuda humanitária dizem que não é suficiente. Em janeiro, os militares israelitas apenas concederam acesso a um quarto das missões de ajuda humanitária planeadas pelas agências humanitárias para Gaza, informou o OCHA em 21 de janeiro. A CNN contactou as IDF para comentar as estatísticas do OCHA, mas não obteve resposta.

O PAM apelou à criação de novas vias de entrada para a ajuda, à passagem de mais camiões nos controlos fronteiriços diários, à redução dos obstáculos à circulação dos trabalhadores humanitários e à garantia da sua segurança. A 5 de janeiro, a agência informou que seis padarias em Deir al-Balah e Rafah tinham reiniciado as operações, mas três continuavam fora de serviço. "O pão é o género alimentício mais solicitado, sobretudo porque muitas famílias não dispõem dos meios básicos para cozinhar".

Entretanto, a ofensiva militar de Israel arrasou pelo menos 22% das terras agrícolas de Gaza, segundo o OCHA. O gado está a morrer de fome e os produtos frescos são difíceis de encontrar.

Civis deslocados fazem fila para receber ajuda distribuída pelo Programa Alimentar Mundial em Rafah, no sul de Gaza, a 21 de janeiro de 2024 (Cortesia Mohammed Hamouda)

Juliette Touma, diretora de comunicação da UNRWA, afirmou que as necessidades dos civis deslocados em Gaza ultrapassam a quantidade de ajuda autorizada pelas autoridades. "Simplesmente não temos o suficiente e não conseguimos acompanhar as necessidades avassaladoras das pessoas no terreno", diz à CNN. "Isto torna a prestação de assistência humanitária extremamente difícil".

Tanto a UNRWA como o PAM disseram à CNN que, embora não pudessem verificar os relatos de indivíduos que revendem ajuda a preços mais elevados, isso é inteiramente possível, dada a escala do desespero e da fome em Gaza.

"É o caos absoluto e as pessoas estão absolutamente desesperadas, estão absolutamente esfomeadas", acrescentou Touma. "O relógio está de facto a contar para a fome."

O PAM disse à CNN que as distribuições de ajuda são baseadas em listas de beneficiários verificadas e observadas por monitores de alimentos, que "informam que os alimentos são entregues aos destinatários pretendidos".

"Por vezes, as famílias tomam a decisão pessoal de vender alimentos do PAM em troca de outros artigos domésticos de que possam necessitar. Para ser claro, os alimentos distribuídos pelo PAM não estão à venda", declarou a agência num comunicado.

A guerra também provocou uma perda de emprego em grande escala em Gaza, o que reduziu ainda mais o poder de compra dos residentes, à medida que os preços disparavam.

Hamouda gasta agora quase 250 euros por semana para comprar alimentos e provisões para a sua família - em comparação com 45 a 60 euros antes da guerra. Numa fatura vista pela CNN, os mantimentos mensais para os órfãos ao cuidado de Al-Naizi foram comprados a uma empresa de aprovisionamento por 6.287 euros - incluindo 1.993 euros só para o leite em pó para bebés. Antes da guerra, a mesma quantidade de leite em pó teria custado 1.550 euros.

"Vivemos quase numa selva, onde a guerra, o assassínio, a ganância dos comerciantes, a injustiça das instituições na distribuição da ajuda e a ausência de governo conduzem a este caos mortal", termina al-Naizi.

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