"Não consigo compreender o que aconteceu à minha família". Refém do Hamas recorda "guerra psicológica" durante 50 dias de cativeiro em Gaza

CNN , Christian Edwards e Bianna Golodryga
6 jan, 22:00
Doron Katz Asher contou à CNN como, com as as filhas, foram raptadas pelo Hamas da casa da mãe, no kibbutz Nir Oz, a 7 de outubro (CNN)

Doron Katz Asher diz que as suas filhas "lembram-se de todos os pormenores" do dia 7 de outubro.

Como acordaram com o som das sirenes e se esconderam no seu abrigo. Como os tiros se aproximaram. Quando as portas se abriram, o seu avô correu para fora do abrigo para que os atiradores do Hamas não vissem os restantes escondidos lá dentro. Como é que ele foi levado. Como deixaram a porta aberta do abrigo na esperança de que outros atacantes pensassem que já tinha sido invadido e seguissem em frente. Como isso não funcionou.

"Outra unidade terrorista entrou e levou-nos também", conta Asher à CNN.

Asher, a mãe e as filhas, Raz, de cinco anos, e Aviv, de dois anos, foram atiradas para a parte de trás de um trator com outros reféns do kibbutz, antes de os homens armados abrirem fogo. Asher foi baleada nas costas; Aviv foi baleada na perna; a mãe foi morta a tiro.

Asher, de 34 anos, e as filhas foram levadas para Gaza, onde foram mantidas primeiro numa casa e depois num hospital, antes de serem libertadas em novembro, durante o cessar-fogo temporário entre Israel e o Hamas.

Numa entrevista exclusiva à CNN, Asher descreveu os quase 50 dias que passou em cativeiro, a "guerra psicológica" a que foi sujeita, as condições em que foi mantida e o sentimento de culpa depois de ter sido libertada, enquanto muitas outras pessoas - incluindo Gadi Moses, de 79 anos, avô das suas filhas - continuam em cativeiro.

Asher e as filhas foram levadas primeiro para um apartamento que pertencia a uma família em Gaza. "Coseram-me as feridas sem anestesia, no sofá, enquanto as minhas filhas estavam ao meu lado", elembra Asher.

Nir Oz foi um dos kibbutz mais atingidos pelo ataque do Hamas a 7 de outubro, com mais de um quarto da comunidade morta ou feita refém (CNN)

Depois de ter sido exposta ao ataque terrorista de 7 de outubro, a que chamou "um filme de guerra", Asher tentou tranquilizar as filhas quanto ao facto de o perigo ter acabado. "Disse-lhes que já não há terroristas e que agora estamos com boas pessoas que nos estão a proteger até podermos regressar a casa", afirma.

As três eram vigiadas a todas as horas do dia pelos filhos e netos do proprietário da casa. Asher nunca soube os seus nomes, mas conseguia comunicar com o pai, que, segundo ela, falava hebraico, pois costumava trabalhar em Israel.

Embora Asher e as filhas não tenham sofrido danos físicos, a mulher garante que foi sujeita a "guerra psicológica".

"Não nos deram muita informação, tentaram sobretudo dizer que o Hamas queria libertar-nos, mas que em Israel ninguém quer saber de nós", sublinha Asher. "Que não voltaremos a viver no kibbutz porque não é a nossa casa - não é o sítio onde pertencemos."

Mas ela disse que não acreditava neles - e que o som dos combates no exterior do edifício em Gaza era "a forma de sabermos que algo se estava a passar para nos levar de volta a casa, para pressionar o Hamas a libertar-nos".

Após 16 dias, Asher e as filhas foram levadas do apartamento para o que ela descreveu como um "suposto" hospital na cidade de Khan Younis, no sul de Gaza. Porquê suposto?

Porque um hospital é "um lugar que é suposto cuidar das pessoas, mas em vez disso foi tomado pelo Hamas e eles usaram-no para esconder reféns", explica Asher.

As forças armadas israelitas têm afirmado repetidamente que o Hamas esconde infraestruturas terroristas em instituições civis de Gaza e nas suas imediações, tais como hospitais - uma afirmação negada pelo grupo militante. Os Estados Unidos afirmaram que o Hamas utilizou o Hospital Al-Shifa, o maior de Gaza, como centro de comando e local de detenção de reféns. Asher não disse onde estava detida.

A Asher juntaram-se outros reféns no complexo hospitalar - os primeiros prisioneiros que conheceu desde que foi levada para Gaza.

Aí recebeu alguma medicação quando as filhas ficaram doentes enquanto estavam dentro de casa, "mas não era suficiente".

Quando Aviv ficou com febre, Asher colocou-a no lava-loiça com água fria para baixar a temperatura. "Ela estava a gritar. Diziam-nos para estarmos calados, mas a rapariga tinha febre e eu tinha de cuidar dela de alguma forma." Ficaram no hospital durante quase cinco semanas.

Israelitas e membros das famílias dos reféns protestam em frente à base militar de Kiriya, em Telavive, Israel, a 16 de dezembro de 2023, apelando ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu para que faça mais para garantir a libertação dos restantes reféns detidos em Gaza (Ilia Yefimovich/picture-alliance/dpa/AP)

Quando lhe perguntaram qual tinha sido o momento mais negro, Asher não tem dúvidas: "surpreendentemente, foi o dia em que fomos libertados".

Quando foram "contrabandeados" do hospital para um veículo do Hamas, a mulher não sabia para onde estava a ser levada. "Ninguém nos disse que íamos ser libertados", recorda, "por isso a viagem pelas ruas de Gaza foi muito, muito assustadora".

Segundo ela, as ruas estavam cheias de milhares de pessoas - incluindo crianças e idosos - que tentavam bater no carro e nas suas janelas. Asher temia ser linchada.

"É a primeira vez que Raz me diz, depois de um mês e meio a protegê-la, 'mamã, tenho medo'", lembra Asher.

No total, 105 pessoas foram libertadas pelo Hamas durante uma trégua temporária com Israel, que começou a 24 de novembro e terminou a 1 de dezembro. Os vídeos que capturam alguns dos momentos em que os reféns foram transferidos para a equipa da Cruz Vermelha mostram frequentemente membros do Hamas a agir de forma gentil para com os reféns, segurando as mãos de mulheres idosas, por exemplo, e ajudando-as a sair dos carros.

"É um grande espetáculo", afirma Asher. "Antes de ser libertada, eu e as minhas filhas estivemos descalços durante 50 dias. Tínhamos frio porque eles usavam mangas curtas em novembro". Mas antes de serem entregues ao pessoal da Cruz Vermelha, deram-lhes sapatos e os membros do Hamas "vestiram-me um vestido bonito".

Quando regressaram a Israel, Asher e as filhas foram levadas para um hospital em Telavive, antes de receberem alta e regressarem a casa. A primeira coisa que as filhas fizeram foi "sair para sentir o vento na pele".

"Não vimos a luz do dia durante todo esse tempo... para eles, só o facto de poderem correr lá fora, aqui no nosso quintal, foi a primeira coisa que fizeram."

Agora a família está a tentar recuperar uma certa aparência de normalidade. Mas Asher diz que o trauma ressurge facilmente.

"Houve um dia em que viram um trator aqui e perguntaram se os homens maus estavam aqui. Tive de lhes dizer que não, que o trator não pertence aos homens maus", explica Asher. "O trator não é a coisa que te magoou, é algo com que trabalhamos no campo, na construção."

Asher também ainda não conseguiu fazer o luto pela morte da mãe. "Enquanto estivemos reféns, toda a minha energia foi dedicada às raparigas, porque se eu me perdesse no luto não haveria ninguém para cuidar delas", recorda. "Estava a agir em piloto automático... ainda estou em piloto automático".

E o alívio que sentiu quando foi libertada foi manchado pelo facto de saber que outros continuam em Gaza. A 29 de dezembro, 106 reféns permaneciam em Gaza, bem como os corpos de 23 que foram mortos, de acordo com o gabinete do primeiro-ministro israelita.

Entre eles está Gadi Moses, companheiro da mãe de Asher. "Estamos à espera dele, vai fazer 80 anos, está sem os medicamentos", conta a mulher.

As Brigadas Quds, o braço armado da Jihad Islâmica Palestiniana - outro grupo islamista que opera em Gaza - divulgaram um vídeo em dezembro que mostrava Gadi Moses e outro refém, Gadi Katzir, de 47 anos, a falar diante da câmara, pedindo ao governo israelita que providenciasse a sua libertação. "Ele ficou muito magro - nós vimo-lo no vídeo", diz a mulher.

"Não consigo compreender o que aconteceu à minha família e não consigo compreender a desumanidade deles. Pessoas que matam pessoas nas suas camas. Quem é que faz isso? Isso não é humano".

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