Israel quer retirar todos os palestinianos de Gaza? Netanyahu diz que não, mas nos bastidores a história é outra

4 jan, 17:30
Benjamin Netanyahu e Itamar Ben-Gvir (Ohad Zwigenberg/AP)

Desde o início da guerra de Israel contra o Hamas, amontoam-se notícias de que Telavive está a preparar a deslocação forçada de todos os palestinianos da Faixa de Gaza para outros países. Há dois dias, face a declarações "inflamatórias e irresponsáveis" de ministros israelitas, os EUA voltaram a declarar que a única solução é a de dois Estados. Netanyahu assegura que o que os parceiros da coligação dizem não traduz as políticas do seu governo – mas à porta fechada estará a alimentar precisamente essa ideia, de olhos postos no Canadá, no Congo e em Tony Blair

Membros do governo israelita chamam-lhe “migração voluntária” ou “humanitária”. Os críticos de Israel falam em “deslocação forçada”, um crime de guerra sob todas as convenções internacionais. Entre o final de 2023 e o início deste ano, não um mas dois ministros do governo de Benjamin Netanyahu falaram publicamente sobre os alegados planos hebraicos para mover todos os palestinianos da Faixa de Gaza para outros países.

“A guerra representa uma oportunidade para nos concentrarmos em encorajar a migração dos residentes de Gaza”, disse na terça-feira Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional de Israel e líder do partido de extrema-direita Otzma Yehudit (“Poder Judeu”). “Não podemos retirar-nos de qualquer território onde estamos na Faixa de Gaza”, adiantou, numa aparente referência aos mais de 20 colonatos israelitas que existiram no enclave palestiniano até 2005, quando foram evacuados sob ordens do então primeiro-ministro Ariel Sharon. “Não só não excluo um colonato judeu ali, como acredito que seria uma coisa importante.”

As palavras de Ben-Gvir surgiram dias depois de um outro ministro, Bezalel Smotrich, sionista religioso, ter referido que, se Israel jogar bem as suas cartas na guerra que tem em curso desde 7 de outubro, o “êxodo de palestinianos” de Gaza permitirá ao povo judeu "viver" no enclave. “Não vamos permitir uma situação em que dois milhões de pessoas vivem ali”, assegurou o ministro das Finanças em entrevista à rádio do exército. “Se houver entre 100 e 200 mil árabes a viver em Gaza, a discussão sobre o pós-guerra será completamente diferente. Eles querem sair, têm estado a viver num gueto e em sofrimento há 75 anos.”

Canadá? “Obsceno.” Congo? Não é certo

Temendo um êxodo em massa, Egito e Jordânia têm rejeitado aceitar refugiados de Gaza, onde os bombardeamentos e incursões terrestres israelitas já provocaram mais de 22 mil mortos, na sua maioria civis, incluindo mais de 9 mil crianças. Mas a alumiar a rejeição pelos dois países vizinhos estão também lições da história moderna da região: quer o Cairo quer Amã temem que acolher refugiados conduza, em última instância, à expulsão dos palestinianos de um dos territórios que reivindicam e que Israel ocupa desde 1967, a par da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental – atribuídos aos palestinianos sob os Acordos de Oslo, em vigor desde 1993.

As declarações de Ben-Gvir e Smotrich não foram uma surpresa para quem segue de perto as movimentações no Médio Oriente. Em novembro, o ex-vice-diretor da Mossad, Ram Ben Barak, já tinha dito numa entrevista televisiva que, para os palestinianos, “é melhor ser refugiado no Canadá” do que viver em Gaza – onde mais de 70% das infraestruturas e casas já foram parcial ou totalmente destruídas por Israel desde outubro. Um mês depois, o jornal Israel Hayom noticiou que o Likud, partido do primeiro-ministro Netanyahu, estava a discutir com vários países a possibilidade de acolherem palestinianos de Gaza, com um deputado do Knesset a nomear o Canadá como uma das nações envolvidas nas alegadas negociações. 

De imediato, o ministro canadiano da Imigração, Marc Miller, recorreu à rede social X para esclarecer: “É obsceno ter de dizer isto, mas em momento algum discuti com qualquer membro do governo israelita a chamada ‘transferência voluntária’ de residentes de Gaza para fora de Gaza. Quem quer que finja o contrário só diz balelas.” (Esta semana, Otava confirmou que vai aceitar mil refugiados de Gaza, um plano temporário para acolher durante três anos palestinianos que tenham família no Canadá.)

Durante o primeiro mês da guerra contra o Hamas, os media israelitas avançaram que o governo tinha já preparada uma proposta para transferir os 2,3 milhões de palestinianos que vivem na Faixa de Gaza para o Egito, para depois serem redistribuídos por outros países. No memorando interno, o Canadá era citado como um dos países-alvo para o realojamento dadas as suas práticas de imigração “brandas”. A veracidade do documento foi confirmada por membros do executivo hebraico, que garantiram, contudo, que este não representava uma política governamental.

“A política de imigração voluntária dos residentes de Gaza está lentamente a tornar-se a política oficial de topo do governo e da coligação”, escrevia ontem o Times of Israel no seu site de atualidade em hebraico, o Zman Israel, sob o título “Contactos com o Congo para receber milhares de imigrantes de Gaza” – adiantando que “Netanyahu deu luz verde e os ministros e membros do Knesset de todas as fações da coligação estão a seguir a sua orientação”.

Duas caras

O primeiro-ministro terá aproveitado um encontro de membros do Likud, no início desta semana, para confirmar que quer concretizar a “migração voluntária” de residentes de Gaza para outros países. “O nosso problema é [encontrar] países que estejam preparados para os absorver e estamos a trabalhar nisso”, terá dito Netanyahu, citado pelo mesmo jornal, ao qual fonte do gabinete de guerra adiantou, sob anonimato: “O Congo está disposto a aceitar migrantes e estamos em conversações com outros países.”

Ainda ao Zman, a ministra dos Serviços de Informação ecoou a mesma ideia: “A imigração voluntária é o melhor plano e o mais realista para o dia a seguir ao fim dos combates”, disse Gila Gamaliel (Likud). Os seus argumentos: a Faixa de Gaza não pode ser gerida pela Autoridade Palestiniana, como aconteceu até 2006, nem os residentes de Gaza podem continuar a viver no enclave, porque “estarão expostos ao constante ódio de Israel e, portanto, apenas à espera da próxima oportunidade para executar um massacre nas comunidades dentro de Israel” – como o Hamas fez a 7 de outubro, em ataques sem precedentes que mataram mais de mil pessoas em Israel. “O problema de Gaza não é um problema só nosso”, adiantou Gamaliel. “O mundo deve apoiar esta emigração humanitária, porque essa é, a meu ver, a única solução.”

As notícias contrastam com a postura oficial de Netanyahu, que continua em modo de sobrevivência política e que, há dois dias, adotou outra posição quando confrontado com as mais duras críticas do seu maior aliado, os EUA, desde o início da guerra. 

“Os EUA rejeitam as declarações recentes dos ministros Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir a defender o restabelecimento dos palestinianos fora de Gaza”, disse o porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller, em comunicado. “Esta retórica é inflamatória e irresponsável. Tem-nos sido assegurado repetida e consistentemente pelo governo de Israel, inclusive pelo primeiro-ministro, que estas declarações não refletem as políticas do governo israelita. Devem parar imediatamente.”

O criticismo do Departamento de Estado, raro na sua forma e conteúdo, foi ecoado pela embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, que na rede social X reforçou que “não deve haver qualquer deslocação em massa dos palestinianos para fora de Gaza”. Ao coro de críticas juntou-se também o rabino Rick Jacobs, líder do movimento reformista, a maior denominação judaica nos EUA: “Condenamos o pedido de limpeza étnica do ministro israelita Smotrich.”

Perante o silêncio de Smotrich, o primeiro a reagir foi o ministro Ben-Gvir. “Admiro muito os Estados Unidos da América, mas, com todo o respeito, nós não somos mais uma estrela na bandeira americana.” Já Netanyahu procurou distanciar-se dos parceiros de coligação, garantindo que “declarações deste tipo não traduzem a política do governo” – apesar de tudo indicar o contrário. 

“Na prática, estão todos a trabalhar diligentemente para concretizar esta ideia”, garante o Zman Israel sobre o que classifica de “campanha política” para expulsar os palestinianos de Gaza, e que segundo o Canal 12 israelita envolve também um famoso político do Reino Unido. Sem citar nenhuma fonte, a estação televisiva noticiou no último dia do ano que o governo de Netanyahu está em contactos com Tony Blair para o convencer a dar a cara pela iniciativa, levando a um desmentido tão inequívoco quanto o do governo do Canadá.

Em comunicado, o Instituto Tony Blair para a Mudança Global, uma organização sem fins lucrativos fundada pelo antigo primeiro-ministro britânico em 2016, criticou a “mentira” disseminada e assegurou: “A história foi publicada sem que tenha havido qualquer contacto com Tony Blair ou a sua equipa. Nenhuma conversa teve lugar nem Tony Blair aceitaria ter tal conversa. A ideia é fundamentalmente errada. Os habitantes de Gaza devem poder ficar em Gaza e viver em Gaza.”

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