Kamila Valieva: o escândalo, a (in)justiça, as lágrimas e o futuro da Rússia nos Jogos Olímpicos

CNN , Ben Morse e Jack Bantock
18 fev 2022, 16:03

Quando Kamila Valieva caiu várias vezes no programa livre de patinagem, na quinta-feira, nos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim 2022, muitos dos fãs de patinagem artística presentes tiveram pena da atleta de 15 anos.

Sob o enorme peso de um grande escândalo de “doping”, Valieva terminou em quarto lugar no evento individual feminino, enquanto a sua colega do Comité Olímpico Russo (ROC), Anna Shcherbakova, ganhou o ouro.

Valieva, que era a grande favorita para terminar em primeiro lugar, depois de ter ficado no topo no programa curto de terça-feira, desfez-se em lágrimas ao sair do gelo, à medida que as emoções dos dias anteriores pareciam começar a vir ao de cima.

Cânticos fortes de “Kamila, Kamila, Kamila” ouviam-se das bancadas, ao mesmo tempo que uma Valieva chorosa era consolada pela treinadora Eteri Tutberidze, à saída do ringue.

A antiga patinadora olímpica dos EUA, Polina Edmunds, ofereceu o seu apoio a Valieva no Twitter: “É uma experiência olímpica muito traumatizante para Kamila Valieva. Não a deviam ter deixado competir. É devastador que a tenham colocado nesta posição, a todos os níveis”.

Shcherbakova, a patinadora que competiu antes de Valieva na final, disse que se sentiu “nervosa” ao ver a sua colega patinar.

“Vi a Kamila, mas provavelmente não percebi o que se estava a passar”, disse a jovem de 17 anos. “Estava muito nervosa por ela durante a prova, porque foi bastante óbvio, logo no primeiro salto, que ela se estava a esforçar demasiado e eu sei perfeitamente o que um atleta sente nesses momentos”.

Porque deixaram Valieva competir?

A controvérsia sobre se Valieva deveria ser autorizada a competir no evento, apesar de a nuvem de “doping” que paira sobre a cabeça da patinadora russa, foi o assunto principal. Ela lutou para se manter na competição e escreveu o capítulo seguinte numa história que certamente irá muito além dos Jogos Olímpicos de Pequim.

A patinadora russa tem estado no centro do escândalo de “doping” que começou em dezembro de 2021, quando a atleta de 15 anos testou positivo para trimetazidina, um medicamento cardíaco proibido, que os especialistas dizem que aumenta a resistência.

Valieva tentou explicar o teste positivo com uma contaminação dos medicamentos tomados pelo seu avô, disse na terça-feira um funcionário do COI familiarizado com a audiência do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) que ilibou Valieva para o resto dos Jogos Olímpicos.

Contudo, o teste apenas foi analisado e reportado à Agência Russa Antidopagem (RUSADA) em fevereiro, resultando na suspensão de Valieva a 8 de fevereiro.

A suspensão chegou um dia após Valieva ter ajudado ROC a ganhar uma medalha de ouro, no evento em equipa de patinagem artística.

Valieva foi restituída depois do recurso e o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) permitiu que esta competisse nos Jogos Olímpicos. O TAD disse numa declaração que tinham decidido que Valieva teria autorização para competir devido a “circunstâncias excecionais”, incluindo medidas específicas ligadas ao seu estatuto de “pessoa protegida”, por ser menor, segundo o Código Mundial Antidopagem.

A cláusula permite “medidas específicas para diferentes padrões de provas e para sanções mais reduzidas”.

O TAD também reconheceu que Valieva não testou positivo durante os Jogos de Inverno. Durante a decisão, o painel considerou “princípios fundamentais de justiça, proporcionalidade, danos irreparáveis”, dizia a declaração.

Concluíram dizendo que “impedir a atleta de competir nos Jogos Olímpicos iria causar-lhe danos irreparáveis nestas circunstâncias”.

Uma questão de justiça

A continuação do envolvimento da patinadora nos Jogos Olímpicos levou a corredora norte-americana, Sha'Carri Richardson, a questionar a decisão, citando um teste positivo para canábis que impediu o seu próprio sonho olímpico, em Tóquio, no verão passado.

“Podemos ter uma resposta concreta quanto à diferença da situação (de Valieva) e da minha (sic)"? Escreveu Richardson no Twitter. “A minha mãe morreu, não posso correr e também era uma das favoritas ao top 3. A única diferença que vejo é o facto de eu ser uma jovem negra”, acrescentou.

O porta-voz do Comité Olímpico Internacional (COI), Mark Adams, disse, na quarta-feira, que “não existem grandes parecenças” entre os casos.

“Como é óbvio, todos os casos são diferentes e ainda nem sequer chegámos ao final deste. Mas, no que toca ao caso da Sra. Richardson, ela tinha testado positivo a 19 de junho, muito antes dos Jogos”, disse Adams aos jornalistas.

“Os resultados chegaram cedo, por isso, a USADA tratou do caso a tempo, antes dos Jogos. A Sra. Richardson aceitou um período de um mês de inelegibilidade, que teve início a 28 de junho. Portanto, diria que não existem grandes parecenças entre os dois casos”.

Na terça-feira, um funcionário do COI disse que Valieva estava a explicar a violação de “doping”, na qual testou positivo para um medicamento cardíaco que os especialistas dizem melhorar a resistência, com uma contaminação da medicação do seu avô.

A sua treinadora Tutberidze disse à agência estatal de notícias russas, Tass, que têm a “certeza absoluta” de que ela está inocente. No entanto, a Agência Mundial Antidopagem (AMA) e a RUSADA estão a investigar a comitiva de Valieva.

Os efeitos do medicamento que melhoram a resistência poderiam revelar-se potencialmente influentes, após uma mudança nas regras em 2004, que recompensa os atletas por executarem saltos no final das suas coreografias.

Sob o atual sistema de pontuação, os saltos realizados na segunda parte do programa livre recebem um bónus de 10%, uma vez que é mais difícil de os executar com pernas cansadas.

Na sequência das críticas generalizadas sobre a regra, em 2018, que alegavam que as patinadoras estavam a deixar todos os saltos para o final das coreografias, a União Internacional de Patinagem criou uma nova regra, dizendo que as patinadoras só receberiam 10% de bónus até três saltos na segunda parte do seu programa livre.

Foi sob este contexto e esta pressão sem precedentes que Valieva competiu no evento individual. Ainda assim, a jovem de 15 anos conseguiu a melhor pontuação no programa curto, na terça-feira, chegando em primeiro lugar ao programa livre decisivo, na quinta-feira.

Seguiu-se outra controvérsia, quando foi anunciado pelo porta-voz do COI, Adams, que qualquer resultado que envolvesse Valieva no evento individual feminino teria um “asterisco”, até o seu caso ficar concluído. Como tal, não receberia flores nem medalhas na cerimónia.

Contudo, depois das várias quedas na sua coreografia livre, o quarto lugar de Valieva deixou-a fora do pódio.

Subsequentemente, a cerimónia de entrega de medalhas está marcada para sexta-feira, 18 de fevereiro, segundo o site oficial dos Jogos Olímpicos.

O diretor da Agência Antidopagem dos Estados Unidos (USADA), Travis Tygart, disse o seguinte sobre Valieva numa declaração: “Por um lado, fico triste por ela, devido aos atos desprezíveis dos adultos na sua vida e das falhas catastróficas dos sistemas russos e do COI que vão deixar uma nuvem negra permanente sobre as suas atuações.

“Por outro lado, todos nós, que valorizamos um desporto limpo, estamos revoltados, porque estas falhas roubaram tragicamente aos atletas os seus incríveis sacrifícios e os seus sonhos olímpicos”.

O que o futuro reserva para a Rússia nos Jogos Olímpicos?

Os atletas russos estão atualmente impedidos de competir sob o nome, bandeira e hino nacional do país, em grandes eventos desportivos internacionais, até 16 de dezembro de 2022.

Porém, a AMA avisou, antes dos Jogos de Pequim, que apesar de a Rússia seguir agora regras antidopagem, não deveria assumir que as sanções serão automaticamente levantadas quando a suspensão do país terminar. A Rússia parece pensar de outra forma.

O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse aos jornalistas no início da semana que a Rússia poderia competir nos próximos Jogos Olímpicos com “um regime normal de participação nacional de pleno direito”.

“Esperamos que, no próximo ciclo olímpico, entremos num regime normal de participação nacional de pleno direito. A Rússia sempre foi um membro muito responsável da família olímpica e mantém-se plenamente empenhada nos ideais olímpicos”, disse Peskov.

Apesar de a AMA não fazer mais comentários enquanto o caso de “doping” de Valieva permanecer aberto, serão levantadas grandes questões sobre a reintegração completa do país na competição olímpica e sem “doping”.

Pode “estar na altura de uma pausa na participação da Rússia nos Jogos Olímpicos”, disse à CNN o presidente e fundador da AMA, Dick Pound, em resposta à decisão do TAD de autorizar que a patinadora Valieva continuasse a competir.

“Isto já decorre há demasiado tempo e é demasiado óbvio. Talvez esteja na altura de uma pausa na participação da Rússia nos Jogos Olímpicos”, disse Pound, durante uma entrevista à CNN, com Selina Wang.

“O governo (russo) não consegue perceber porque ninguém brinca com eles. E a resposta é porque eles fazem batota”, continuou.

Pound, que também é antigo vice-presidente do COI, disse à CNN que as punições que o ROC enfrentou desde Sochi, têm sido “brandas” e ineficazes e que, apesar de banir a equipa de competir poder ser uma “opção nuclear”, chamaria a atenção da Rússia”.

“Essa é a opção nuclear. Dizem simplesmente que lamentam, mas que não serão convidados para os próximos Jogos Olímpicos, não receberão mais eventos desportivos olímpicos e por aí fora. Isso chamaria a atenção deles. Até agora, temos tido pouco sucesso em chamar-lhes a atenção, porque todas as decisões tomadas são objeto de recurso”, disse Pound.

“Isso não é uma atmosfera saudável para a Rússia. E não é uma atmosfera saudável, se os atletas do resto do mundo tiverem de entrar em competições onde participem russos”, acrescentou.

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