Mais dinheiro para as famílias, menos impostos para as empresas, fim da isenção de IVA no imobiliário... 6 grupos de medidas desejadas para o Orçamento do Estado

9 out 2023, 08:00
Dinheiro (Pexels)

A horas da apresentação da proposta do Orçamento do Estado para 2024, a CNN Portugal recolhe propostas e desejos de especialistas para responder aos problemas que o país atravessa. Das dificuldades financeiras das famílias à falta de médicos nos hospitais.

Mais apoios para as famílias, fim da isenção de IVA no imobiliário, ajudas de custos para professores deslocados e cobrança de taxas para melhorar a gestão dos resíduos. Estas são algumas das medidas propostas pelos especialistas de diversas áreas, contactados pela CNN Portugal, para incluir no próximo Orçamento do Estado.

1. Reduzir o IRS e acabar com a derrama estadual


Excedente orçamental este ano e, apesar de se antecipar que o Governo coloque uma previsão de saldo nulo no Orçamento, provavelmente um novo excedente no próximo. É o que antecipa o economista Ricardo Ferraz, sustentando-se nos dados divulgados em agosto pelo Ministério das Finanças, de aumento do excedente orçamental para 2.648 milhões de euros. “Este ano poderemos estar a falar de um excedente orçamental em torno dos 1.500 milhões de euros”, estima. Em 2024, “se o Governo não fizer nada além do esperado”, o Estado voltará a ter receitas mais elevadas que as despesas - e terá um excedente orçamental “em linha com aquele que já vai ter este ano”, prevê Ricardo Ferraz.

O aumento do excedente “está associado a uma arrecadação fiscal que está a bater recordes”, salienta Ricardo Ferraz, que defende que é possível manter a “prudência orçamental” e, ao mesmo tempo, apostar num alívio fiscal “mais ambicioso”.

“Seria preferível termos um excedente orçamental mais reduzido, mas apoiarmos mais a classe média e reduzir os impostos, de forma a tornar o país mais competitivo fiscalmente”, defende o economista.

Embora no Programa de Estabilidade apresentado em abril já se perspetive um desagravamento do IRS em 2 mil milhões de euros entre 2024 e 2027, Ricardo Ferraz lamenta que o Governo não aproveite o excedente orçamental deste ano para “ir mais longe” na atribuição de apoios às famílias. Ainda assim, admite que o executivo “ainda irá a tempo de implementar uma reforma fiscal mais ambiciosa do que o que está previsto no Programa de Estabilidade” no Orçamento do Estado para o próximo ano. 

O economista considera, desde logo, que “não basta apenas pensar numa redução do IRS para os jovens”, como prometeu o Governo, mas sim “uma redução do IRS que abrangesse toda a gente”. “Creio que existe essa margem no Orçamento do Estado”, afirma.

Já para o fiscalista Jaime Esteves, “mais do que reduzir” o IRS, seria importante definir “um limite superior dos escalões em cerca de 10% a 15% das suas bandas atuais”, argumentando que tal resultaria “automaticamente” num “alívio significativo dos rendimentos” das classes média e baixa, que, diz, “vivem numa asfixia muito grande” com a “rápida progressividade dos escalões”. “Chegamos a taxas de 35%, 40% para salários que são muitíssimo baixos”, aponta.

Além das famílias, importa também olhar para as empresas, desde logo com a abolição da derrama estadual, um imposto adicional em sede de IRC criado em 2010 e que incide sobre a parte dos lucros tributáveis das empresas superiores a 1,5 milhões de euros. “A derrama estadual é um enxerto de tributação progressiva, em que quanto maiores forem os lucros, maior o nível de tributação, o que não faz sentido”, afirma Jaime Esteves, argumentando que “uma empresa não é mais rica por ter mais ou menos lucro”. 

Esta tributação “penaliza o crescimento das empresas” e, consequentemente, os seus funcionários. Isto porque, diz o fiscalista, “os estudos demonstram que as maiores empresas pagam melhores salários”, portanto “penalizar o crescimento [das empresas] significa penalizar também a população". 

Jaime Esteves acredita que “a conjugação do alívio de tributação nas empresas, favorecendo o crescimento com a abolição da derrama estadual, com algum alívio no IRS nas classes médias” poderia “promover a qualidade de vida em Portugal”.

2. Acabar com a isenção de IVA no imobiliário e com o 'Imposto Mortágua'

A crise na habitação é tema obrigatório no âmbito do Orçamento do Estado para 2024, defende Jaime Esteves, que lamenta que o Governo esteja "a olhar para o problema ao contrário”.

“O problema não está na procura - que vai sempre existir e ainda bem que existe, significa que há pessoas que querem morar em Portugal -, mas sim do lado da oferta”, argumenta o fiscalista, assinalando que só poderá haver maior oferta de habitação com investimento. Esse investimento pode ser arrecadado, por exemplo, através dos Vistos Gold e do Estatuto do Residente Não Habitual - instrumentos que o Governo resolveu eliminar, mas que, no entender de Jaime Esteves, “não deveriam ser mexidos”.

Para o fiscalista, “o grande problema da habitação” é mesmo o Imposto Municipal sobre as Transmissões (IMT), sugerindo a abolição deste imposto, bem como a aplicação de uma taxa de IVA de 6% na venda de imóveis. No entender de Jaime Esteves, isenção de IVA sobre os imóveis “parece uma grande vantagem para o imobiliário, mas é na realidade o cancro do imobiliário”. 

“É verdade que eu vendo o imóvel construído sem IVA, mas também é verdade que não pude deduzir o IVA que suportei na construção”, sustenta. Ora, uma vez que hoje em dia a construção já não cabe a um “construtor integrado”, mas “a um conjunto de empreiteiros e subempreiteiros” contratados por um promotor, isto significa que “o comprador vai pagar o IVA sobre toda a construção, com exceção da própria margem de lucro do promotor”.

Quer isto dizer que, “quando o imóvel chega ao proprietário, pelo menos 30% do seu valor refere-se a impostos de IMT e IVA”, indica o fiscalista, concluindo assim que  “o grande beneficiário da crise da habitação é o Estado”.

“A solução seria um imobiliário sujeito a IVA, eventualmente com taxas reduzidas - 6% é uma taxa que compara bem com taxas equivalentes na Europa - mas com capacidade de reduzir todo o IVA da construção. Assim, não só o preço de construção baixaria imenso, como também o preço de venda”, sugere Jaime Esteves.

Já os proprietários defendem a abolição do Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (AIMI), conhecido como “Imposto Mortágua”, por ter sido apresentado e defendido na Assembleia da República pela deputada Mariana Mortágua, que hoje lidera o Bloco de Esquerda. Este imposto incide sobre contribuintes singulares ou coletivos que sejam proprietários, usufrutuários ou superficiários de prédios urbanos em Portugal. Enquanto o IMI incide sobre cada prédio individual, o Adicional ao IMI é calculado tendo em conta a soma dos valores patrimoniais dos tributários dos prédios urbanos de que uma só pessoa, seja individual ou coletiva, seja titular.

Para o presidente da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP), Luís Menezes Leitão, o Adicional ao IMI “afasta o investimento privado na habitação e desvia-o para as rendas comerciais e industriais, que não pagam este imposto”. “Veríamos com muito bons olhos se este Orçamento do Estado finalmente reconhecesse o erro de ter introduzido este imposto em 2017 apenas por razões ideológicas contra a propriedade privada”, afirma o também advogado.

Questionado sobre o teto máximo de aumento de 2% dos novos contratos de arrendamento - uma medida que o próprio primeiro-ministro já veio dizer que não será repetida  no próximo ano - o presidente da ALP indica que, sobre essa matéria, o Governo só tem uma coisa a fazer: “cumprir a lei.”

“No ano passado tomou-se a medida disparatada de aplicar um critério sem qualquer base na lei e o resultado foi o disparar das rendas em 30%. O primeiro-ministro parece que ficou consciente do erro que foi cometido no ano passado, tanto assim é que disse que não o iria repetir”, afirma Luís Menezes Leitão.

Sobre esta matéria, o presidente da Associação Lisbonense de Inquilinos, António Machado, diz apenas que essa é “uma decisão do Governo”, não tendo feito “nenhuma proposta” de um número para o limite ao aumento das rendas. “As rendas já estão tão altas que vão aumentar o quê? Onde é que isto pára? Já vamos no pelotão da frente no preço da habitação e no pelotão de trás nos rendimentos das famílias. Isto é completamente incomportável. Se avançarmos mais, torna-se uma desgraça”, lamenta.

Para evitar esse desfecho, António Machado defende um aumento da dedução das rendas em sede de IRS. “Neste momento são de 15% até 502 euros e o que nós vamos propor é que passe para 20% até 2 IAS [Indexante dos Apoios Sociais], que  são, neste momento, 480 euros”, indica.

3. Na saúde, não basta "aumentar 15% ou 20% os salários"

Greves de médicos e enfermeiros, escusas de responsabilidades e às horas extraordinárias, serviços de urgências com elevados tempos de espera e hospitais sem capacidade de resposta (inclusive o maior hospital do país, o Santa Maria, em Lisboa). Este é o retrato do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que atravessa "bastantes problemas", como descreve o especialista em economia da saúde, Pedro Pita Barros.

Um dos grandes problemas é a falta de médicos e outros profissionais de saúde, aponta o especialista, que admite que esta questão "tem demorado demasiado tempo" a ser solucionada, sendo "transversal a vários governos". "Desde o período da troika até agora não houve uma ideia consistente do que se queria ter ao nível das negociações com os profissionais de saúde e, neste momento, temos um acumular de tensões que exige uma solução que terá de ser de longo prazo", argumenta.

Para Pedro Pita Barros, a solução passa não só pela oferta de melhores condições salariais, mas também por uma maior "flexibilidade de tempos de trabalho". "Não se pode pensar que se resolve este problema simplesmente aumentando mais 15% ou 20% os salários e mantendo tudo o resto constante", diz.

"O modelo de dedicação plena provavelmente é útil, mas será insuficiente. Serão necessários outros modelos que acomodem diferentes preferências dos profissionais de saúde e necessidades das unidades de saúde locais", assume.

Além da melhoria das condições salariais e flexibilidade de trabalho, o especialista chama a atenção para a necessidade de se pensar no desenvolvimento profissional das pessoas que trabalham no setor da saúde. "O nosso SNS tem de ser menos burocrático na forma de lidar com os profissionais de saúde, procurando acomodar situações de flexibilidade, condições remuneratórias e situações de desenvolvimento profissional", defende.

4. Ajudas de custos para professores deslocados e requalificação das escolas

A luta dos professores por melhores condições de trabalho não é de agora e as negociações entre as organizações sindicais e o Ministério da Educação não têm fim à vista. O arranque do novo ano letivo começou com mais de 90 mil alunos sem professor a pelo menos uma disciplina e com o ministro da Educação a lamentar a convocação de greves dos professores.

Cristina Mota, da Missão Escola Pública, um grupo de professores apartidário, desenha o retrato da educação em Portugal com um gráfico da evolução da percentagem do PIB dedicado ao setor. Em 2010, 6,7% do PIB era dedicado à educação. Hoje é de 4,4%. Neste cenário, é urgente aplicar “um maior investimento na educação”, defende a representante, assinalando desde logo a necessidade de se investir em “recursos humanos qualificados para uma escola pública condigna”. 

Para tornar a carreira de professor mais atrativa, Cristina Mota propõe que os docentes deslocados possam receber “ajudas de custos”, quer ao nível da habitação, com ajudas para pagar as rendas, quer ao nível da mobilidade, sugerindo ajudas para cobrir os gastos em combustível, portagens ou passes de transportes públicos.

Além disso, a questão da recuperação do tempo de serviço, um dos principais motivos da contestação dos professores, mas que tem sido sucessivamente recusada pelo executivo. O primeiro-ministro reafirmou na semana passada que o custo seria “insustentável para o país”, mas a representante da Missão Escola Pública cita um estudo da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE) que demonstra que a aceleração de carreiras “não teria um custo tão elevado” quanto tem sido dito pelo Governo, até porque “é um custo diluído ao longo do tempo”.

Em concreto, o estudo da ANDE confirma as contas do Governo quanto ao impacto imediato da recuperação integral do tempo de serviço dos professores - um impacto anual 331 milhões de euros. Mas, de acordo com a associação, a despesa só aumenta até 2025/26. Nessa altura, chegará aos 3.529 milhões de euros anuis.

Além do investimento em recursos humanos, é necessário investir também nos recursos materiais, desde logo na requalificação das escolas, aponta Cristina Mota, lembrando que o Ministério da Educação conta investir dois mil milhões de euros para a edificação das escolas até 2033. Para a professora, este período de tempo é “muito longo”. “Precisamos de intervenções mais rápidas. Se uma escola precisa de uma intervenção já este ano, em 2033 qual não será o estado dessa escola?”, questiona.

A par da edificação das escolas, os professores chamam ainda a atenção para o investimento em softwares que facilitem o trabalho burocrático associado às atividades letivas, como o programa INOVAR, que “nem todas as escolas conseguem adotar” pelos custos que acarreta.

5. Cobrança de taxas e incentivos à energia verde

Numa altura em que as preocupações ambientais têm dominado a agenda pública, a reboque dos protestos climáticos de jovens ativistas, a associação Zero reuniu um conjunto de propostas que, no seu entender, são essenciais para este Orçamento do Estado, começando desde logo pela gestão dos resíduos. 

Entre as medidas propostas pela associação, destaca-se o fim do financiamento da taxa europeia sobre as embalagens de plástico não recicladas através do Orçamento do Estado. Considerando que “Portugal tem uma baixa taxa de reciclagem das embalagens de plástico” - de acordo com os dados do Eurostat, 66% destas embalagens colocadas todos os anos no mercado português ou são enviadas para aterro ou incineradas e, portanto, estão sujeitas à taxa europeia de 0,80 euros por quilograma ou 800 euros por tonelada sobre embalagens de plástico não recicladas - a Zero considera que não cabe ao Estado financiar essa taxa através do orçamento.

“O que defendemos é que quem coloca as embalagens de plástico no mercado seja responsável pelo pagamento desta taxa”, afirma Susana Fonseca, vice-presidente da Zero, sugerindo a aplicação de uma taxa a todas as embalagens de plástico colocadas no mercado português, de forma a assegurar o pagamento daquele valor à União Europeia.

A associação insiste também na concretização da cobrança de uma taxa de 30 cêntimos sobre todos os materiais descartáveis utilizados no takeaway. Embora esta taxa já esteja a ser aplicada desde julho do ano passado sobre as embalagens de plástico de utilização única, o Governo tem vindo a adiar a aplicação desta taxa sobre as embalagens de alumínio descartáveis, estando agora prevista a sua entrada em vigor a partir de 1 de janeiro do próximo ano. “Esperemos que venha a concretizar-se e defendemos o mesmo para os sacos de plástico utilizados para pão, frutas e legumes nos supermercados”, vinca.

A Zero considera que a cobrança de taxas “não é um problema quando as pessoas têm forma de escapar” das mesmas, podendo utilizar embalagens e sacos reutilizáveis para o mesmo efeito.

Ainda no âmbito da gestão de resíduos, a associação adverte que “há várias metas de reciclagem que não estão a ser cumpridas” pelas entidades gestoras. No entender da Zero, isto acontece porque “não há ainda incentivos suficientes” para o cumprimento das respetivas metas, sendo “mais dispendioso enviar [os resíduos] para reciclagem". “A taxa de gestão de resíduos [TGR] é tão baixa que é muito melhor para as entidades não cumprirem as meta, lamenta Susana Fonseca, referindo-se à taxa que penaliza diretamente as entidades gestoras, que pagam um valor mais alto quando os resíduos são colocados em aterro ou incinerados. 

Nesse sentido, a Zero propõe um aumento da TGR paga pelo incumprimento das metas por parte das entidades gestoras dos diversos fluxos de resíduos.

No âmbito da gestão de recursos hídricos, Susana Fonseca chama a atenção para a "enorme desigualdade entre setores" na cobrança da taxa de recursos hídrico. "Os utilizadores domésticos contribuem com 66% das receitas do taxas da taxa de recursos hídricos, mas só consomem 13%. Quem consome a 'fatia de leão' é o setor agrícola, que só contribui com 4,9% das receitas. Não deveria ser assim, tem de haver um maior equilíbrio das responsabilidades", argumenta a vice-presidente da Zero. 

A associação defende ainda um maior incentivo à mobilidade elétrica, sugerindo desde logo o alargamento da oferta de passes para transportes coletivos "ao país inteiro", e não apenas em Lisboa. Além disso, a associação critica o reembolso parcial do imposto sobre o gasóleo e gás profissional, no caso de empresas de transporte de mercadorias e transporte coletivo de passageiros, alegando que esta medida leva ao prolongamento de veículos a combustíveis fósseis em circulação. "Muitas empresas oferecem viaturas ou vales de combustível aos seus funcionários", lamenta, sugerindo, em alternativa, maiores incentivos incentivos à conversão das frotas que usam combustíveis fósseis para frotas elétricas ou a hidrogénio verde.

A Zero apela ainda ao Governo para que "dê o exemplo" e deixe de adquirir veículos que não sejam elétricos já a partir do próximo ano.

6. Equipar a justiça "com meios do século XXI"

Também na Justiça há questões que urgem ser resolvidas neste Orçamento do Estado para 2024. Numa altura em que todos os dias são adiados julgamentos devido à greve dos funcionários judiciais, o advogado Rogério Alves chama a atenção para a necessidade de "equipar a justiça com meios próprios do século XXI", apostando na evolução tecnológica dos tribunais, de forma a facilitar a recolha de depoimentos e a comunicação com tribunais exteriores, entre outros processos essenciais para o decorrer dos trabalhos.

"Tem de haver um maior investimento em meios técnicos, por um lado, e no funcionamento dos atos de justiça e dos órgãos de investigação criminal, por outro. Não se pode continuar a esperar um ano por uma perícia", argumenta.

Além do investimento material, o advogado defende um maior investimento nos recursos humanos, assumindo que o Governo deveria "aproveitar o Orçamento do Estado para resolver o problema dos vencimentos das pessoas que trabalham na justiça e que, tal como acontece noutros setores profissionais, ganham miseravelmente".

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