Um acórdão, três juízas e três tribunais

9 fev, 07:00

O acórdão não é de três juízas, mas de três tribunais. Uma juíza é do Tribunal da Relação de Lisboa, outra é da Relação de Guimarães e, finalmente, a juíza relatora é da Relação do Porto. Uma estrambólica linha de competência jurisdicional passa, a partir de agora, a ligar estas três nobres cidades portuguesas. Caso de antologia: um acórdão assinado por três juízas que pertencem a três tribunais diferentes.

O absurdo e o arbítrio parecem ter definitivamente tomado conta da justiça penal portuguesa. No processo marquês parece valer tudo. Duas das juízas saíram da Relação de Lisboa em setembro do ano passado com perfeita consciência do que está estipulado no artigo 49º do Estatuto dos Magistrados Judiciais: “a transferência dos juízes da Relação não prejudica a sua intervenção nos processos já inscritos em tabela”. Repito, já inscritos em tabela. Não era o caso do recurso do processo marquês, que só foi colocado em tabela na segunda-feira, dia 22 de janeiro de 2024. Por conseguinte, desde setembro que as senhoras juízas não são juízas da Relação de Lisboa; desde setembro que não têm competência em qualquer processo daquele tribunal; desde setembro que a sua intervenção no processo é um abuso e uma violação da garantia constitucional do juiz natural.

Mas não é a primeira vez. A única decisão do processo marquês que já transitou em julgado foi a manipulação da distribuição ao juiz Carlos Alexandre. A escolha viciada do juiz transformou todo o inquérito num jogo de cartas marcadas. Naquele inquérito, nunca o juiz foi isento, nunca foi imparcial, nunca esteve acima das partes, mas ao lado de uma delas, a do Ministério Público. Agora parece que querem voltar a fazer o mesmo - falsear o curso da justiça não cumprindo as regras de escolha dos juízes. Convenhamos que é preciso ter descido muito baixo na escala da decência processual para que episódios deste tipo se repitam no mesmo processo.

Por mim, a exigência é simples: cumprir a lei, anular o acórdão e redistribuir o processo. A competência para “exercer a justiça em nome do povo” pertence constitucionalmente aos Tribunais e, neste caso, a decisão sobre o recurso do Ministério Público tem de ser tomada por juízes do tribunal competente, a Relação de Lisboa. Em outubro do ano passado, Alfredo Costa, juiz do Tribunal da Relação de Lisboa, escrevia um despacho em que se pode ler: “É entendimento unânime a opção dos autos à distribuição (...) em situações semelhantes à dos autos, que apenas possui um adjunto e não tem o segundo adjunto nem relator”. Esta é exatamente a situação do processo marquês: desde setembro que não tem adjunta nem relatora por motivos de saída de ambas do Tribunal. Assim sendo, a única solução digna, legal e decente é aquela que o senhor juiz tomou no outro processo – remessa dos autos à distribuição. Nada mais, mas também nada menos. Se isso não acontecer, se insistirem em manipular, agora com outros métodos, a escolha dos juízes, então teremos a certeza de que querem transformar o processo marquês num processo de excepção. Como nas ditaduras, o Estado parece empenhado em escolher juízes ad hoc. Como nas ditaduras, o Estado parece querer escolher juízes em contravenção.

Se bem conheço o sistema, antecipo que virá aí uma dupla desculpa. A desculpa do princípio da continuidade e a desculpa da condição de exclusividade, concedida pelo Conselho Superior da Magistratura. Mas são desculpas. Não são mais que desculpas mal-arranjadas. Desde logo o princípio da continuidade não se aplica aos juízes que transitaram de um tribunal para outro (a não ser, como vimos, nos casos em que o processo já esteja inscrito em tabela, o que não era o caso). É esse o sentido do despacho que citei do juiz Alfredo Costa – tendo a Relatora e a Adjunta transitado para outros tribunais, cessou, como é obvio, o princípio da continuidade e o tribunal enviou os autos para nova distribuição. Quanto ao estatuto de exclusividade, que, aliás, foi concedido ilegalmente, não muda nada, só agrava o caso. A exclusividade não transforma uma juíza do Porto numa juíza de Lisboa. Nem uma juíza de Guimarães numa juíza de Lisboa. O estatuto de exclusividade e as decisões do Conselho Superior da Magistratura não se sobrepõem às leis da República – e a lei é clara: as juízas que saíram do Tribunal da Relação só podiam intervir em processos daquele tribunal se estes já estivessem inscritos em tabela. O julgamento do recurso não estava inscrito em tabela, logo, as juízas não são competentes. Logo, as juízas não são as juízas naturais do caso. 

Esta é a questão de início. Nenhuma outra deve ser discutida antes desta. Tempo virá em que poderemos discutir a linguagem do acórdão, as mentiras recuperadas, a deliberada e ostensiva ignorância das provas obtidas na fase instrução e ainda a inacreditável rábula do chamado “lapso de escrita” do Ministério Público. Mas não agora. Agora é tempo de discutir a questão que é prévia a qualquer outra – a escolha das juízas foi viciada, a competência judicial foi usurpada e a justiça falseada. Pela segunda vez. Vergonhosamente, é a segunda vez que acontece.

Nota final. Parece-me muito revelador que a maioria dos advogados não diga nada. Nada disseram na primeira manipulação, nada dizem na segunda. O princípio do juiz natural não parece ser muito popular entre os causídicos. E, no entanto, ele figura na Constituição. Ainda figura na Constituição.

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