As barreiras que podem salvar Veneza

CNN , Julia Buckley
17 jan 2022, 22:00

A primeira coisa que nos ocorre ao ver esta ilha privada e feita pelo homem entre o Mar Adriático e a lagoa de Veneza é o covil de um vilão de Bond. A segunda, ao atracarmos no pontão privado, caminharmos além da fachada Brutalist e entrarmos numa “sala de controlo” onde os funcionários vigiam permanentemente a água ao redor da ilha, é algo saído de "Squid Game."

Na verdade, por mais sinistra que pareça, esta ilha de 144 mil metros quadrados que vigia silenciosamente Veneza o tempo todo não é uma força maligna. Está aqui para proteger uma das cidades mais frágeis do mundo.

A ilha sem nome - situada entre a península de Cavallino-Treporti (que se desenrola do território continental italiano e lança um braço protetor ao redor da lagoa de Veneza) e a ilha do Lido, um banco de areia gigante que isola a maior parte do centro histórico de Veneza do Mar Adriático – é o coração do MOSE: o sistema de barreiras de inundação que, ao fim de 1200 anos, permite que a cidade flutuante faça frente à subida do nível do mar.

Demorou o seu tempo. O MOSE – Moisés em italiano e acrónimo de Módulo Experimental Eletromecânico ou Modulo Sperimentale Elettromeccanico – estava em preparação desde 1984. Mas demorou quase quatro décadas a construir, afetado por atrasos e corrupção a tal nível – um ex-autarca foi julgado por desvio de verbas do projeto – que muitos venezianos acreditavam que nunca iria funcionar.

No entanto, a 3 de outubro de 2020, os receios revelaram-se infundados quando, como é comum acontecer no inverno, Veneza foi atingida por uma maré excecionalmente alta.

Uma maré 135 centímetros acima dos níveis normais atingiu Veneza. Habitualmente, isso deixaria metade da cidade debaixo de água, mas desta vez a cidade manteve-se seca. Foi a primeira vez que o MOSE foi erguido em condições meteorológicas adversas. Tal como um veneziano disse à CNN na altura, “foi histórico... como o primeiro passo de Armstrong na Lua."

Catorze meses depois, o MOSE foi erguido 33 vezes: 13 em 2020, e 20 em 2021. O período habitual de cheias é entre outubro e março. Provou-se que os críticos estavam errados. O sistema protegeu a cidade sempre que foi erguido.

As aletas amarelas que saem ligeiramente do mar parecem frágeis contra a brutalidade do Adriático nestas imagens captadas quando foram erguidas, o que normalmente acontece durante tempestades provocadas pelos ventos sirocos, que fustigam a cidade vindos de sul.

Mas, se nos aproximarmos, vemos que as aparências iludem. Cada uma das enormes barreiras tem entre 20 e 30 metros de comprimento e 20 metros de largura. Estão embutidas no fundo do mar em caixas de betão com 40 metros de largura, 60 metros de comprimento e 10 metros de altura.

E são 78, espalhadas por quatro linhas, nos três pontos de entrada da lagoa de Veneza.

Enquanto obra de infraestrutura, o MOSE é um colosso.

No entanto, quando as barreiras não estão a ser usadas, não se vê nada. Ao contrário das barreiras de inundação do norte da Europa – e com um custo muito maior – o MOSE foi concebido para ser invisível quando as barreiras não são necessárias.

Uma ilha estilo Bond na terra de ninguém

As barreiras na enseada de Treporti são divididas em duas numa ilha artificial.

O núcleo do projeto é a ilha construída de propósito e que flutua no meio do ponto de entrada mais a norte da lagoa.

Sobranceira à bucólica ilha de Sant'Erasmo, com as Dolomitas cobertas de neve no horizonte, é uma “terra de ninguém” entre o mar e a lagoa, no sítio onde as águas da lagoa e do Adriático convergem, segundo o engenheiro e diretor das instalações, Alessandro Soru.

A "bocca di Treporti” ou enseada de Treporti é um canal quase com 1600 metros de largura entre Punta Sabbioni (a extremidade de Cavallino-Treporti) e o ponto mais a norte da ilha do Lido.

Há outros dois pontos de entrada na lagoa: em Malamocco, na extremidade sul do Lido, e outro em Chioggia, uma vila pesqueira na ponta mais a sul da lagoa.

Mas o canal de Treporti é de longe o mais largo, e o nível do fundo do mar varia entre 6 e 12 metros. Assim, em vez de criar uma barreira imensa com altura variável, a ilha foi criada para dividir a enseada em duas. E fornece também um espaço para a sede do MOSE, que de outra maneira poderia perturbar os turistas nos parques de campismo e praias de Punta Sabbioni.

'Mesmo à James Bond'

A sala de controlo monitoriza a lagoa a partir da segurança de uma ilha artificial.

Lá dentro, uma parede de monitores na sala de controlo transmite imagens em circuito fechado dos barcos que passam pelos três canais. Também dá informações sobre a meteorologia e os níveis das marés e monitoriza as barreiras quando estão erguidas.

Um dos ecrãs monitoriza o nível da lagoa e o nível do mar, o primeiro a azul e o segundo a vermelho.

Nos dias normais, a linha azul e a vermelha sobem e descem juntas como um monitor cardíaco, com um pico na maré cheia e uma depressão na maré vazia.

No entanto, recentemente, a 8 de dezembro de 2021, as linhas tiveram uma divergência espetacular.

A linha vermelha, que marca o nível da maré do Adriático, teve um pico 130 centímetros acima da média, enquanto a linha azul da lagoa acompanhou durante algum tempo, depois caiu e nivelou muito abaixo da linha vermelha, até acabarem por descer juntas.

Nessa data, às 20h58, o MOSE foi erguido quando a maré atingiu os 80 centímetros. E aquela queda rápida? É física, mais especificamente a dinâmica de fluídos do princípio de Bernoulli, ou seja, o nível da lagoa desceu rapidamente aos 50 centímetros, antes de estabilizar nos 80 centímetros durante as 12 horas seguintes. O MOSE foi descido às 8h44 do dia seguinte, quando as duas linhas voltaram a convergir.

Quando o tempo está bom, há duas pessoas aqui no turno de dia, e uma equipa de quatro, 18 metros abaixo, nos 800 metros de túneis das caixas de betão por baixo das aletas que ligam a ilha ao Lido e à Punta Sabbioni. A humidade subaquática sente-se nos ossos.

O túnel subaquático acompanha a barreira desde a Punta Sabbioni ao Lido.

Por baixo, no túnel, correm labirintos para transportar o ar que enche as barreiras, enquanto câmaras laterais albergam as válvulas que ligam as aletas às caixas de betão. Cada uma delas pode ser selada com um botão a partir do corredor principal, e podem funcionar mesmo se, numa catástrofe, a água entrasse. Soru aponta para uma portinhola no canto da sala: "Aquilo é para podermos entrar por submarino, se ficar inundada. Mesmo à James Bond”, diz ele.

Mas quando as marés são altas, este é o centro permanente de toda a operação, com uma equipa de 100 pessoas a funcionar na sala de controlo, nos túneis subaquáticos e na lagoa, com barcos a acelerar para trazerem trabalhadores para a ilha, uma vez que não há transportes públicos. Há até alojamentos para os trabalhadores poderem dormir aqui entre turnos.

 

Como funciona o MOSE

Com o tempo normal, a aleta amarela fica rente ao fundo do mar dentro da sua caixa de betão.

Após as décadas de controvérsia inicial, a construção do MOSE começou em 2009, sendo a última “aleta” instalada em junho de 2019, no lado do Lido da ilha Treporti.

A lagoa de Veneza é conhecidamente rasa – a profundidade média é de apenas um metro. Mas as enseadas do Adriático são muito mais profundas. Malamocco, a entrada para o porto industrial, tem 14 metros de profundidade, por exemplo. Apesar de não terem alterado a profundidade das enseadas, os engenheiros escavaram o fundo do mar junto às três enseadas para albergarem as “caixas” de betão, que ficam rentes ao fundo do mar.

As caixas com 14 mil toneladas foram moldadas em betão no continente, levadas a flutuar para a sua posição e afundadas na água. Os detritos retirados do fundo do mar foram usados para construir a ilha em Treporti – a “cidadela das obras”, como lhe chama Soru.

Dentro das caixas de betão estão as comportas metálicas que são tratadas a cada três meses com um anticorrosivo – que não é tóxico por causa do ecossistema da lagoa. Cada uma das 78 barreiras tem os mesmos 20 metros de largura, e varia entre 20 e 30 metros de comprimento, consoante a profundidade da água.

Conseguem resistir a ondas até três metros acima dos níveis normais da maré, o que é significativamente mais do que a maré recorde com 194 centímetros que arrasou a cidade em 1966.

O seu funcionamento depende de um método hidráulico surpreendentemente simples. Adormecidas no fundo do mar, as barreiras ocas são enchidas com água para ficarem pesadas.

Para as erguer, é bombeado ar para dentro das aletas, o que expulsa a água. As aletas sobem a flutuar até saírem acima da água. Nesse momento, formam uma barreira para o Adriático que investe contra elas de um lado, e a lagoa mantém-se calma, e baixa, do outro lado.

Quando a maré passa, é bombeada água novamente para as aletas e o ar é expelido, o que as faz voltar a mergulhar e encaixarem nas suas caixas. Erguê-las demora apenas 32 minutos e descê-las leva metade disso. É menos que os 91 minutos que demorava no ano passado, segundo Elisabetta Spitz, a “comissária extraordinária” responsável pelo projeto que responde ao governo italiano.

Para a manutenção das aletas existe um túnel de manutenção subaquático 140 degraus debaixo da água.

O processo parece simples, mas foi afinado com precisão. Entre cada barreira há uma folga de quase oito centímetros para libertar parte da pressão intensa das aletas quando suportam o Adriático. Pela mesma razão, são erguidas quatro ou cinco de cada vez e não todas em simultâneo. Também podem funcionar de maneira independente. Assim, os engenheiros podem optar por erguer apenas algumas barreiras para abrandar o fluxo da água para a lagoa ou descê-las temporariamente em Malamocco para deixar um navio industrial passar para o porto de Veneza, o segundo mais concorrido de Itália e o quinto no Mediterrâneo.

Segundo Soru, isso também significa que, como as pessoas receiam, se uma barreira não se erguer, o MOSE não deixa de funcionar na globalidade. Se bem que isso nunca aconteceu.

Dedo no botão

As cheias de novembro de 2019 causaram mais de mil milhões de dólares em prejuízos.

Decidir erguer as barreiras é um processo complicado. Há duas instituições que estudam as previsões meteorológicas: o Centro Maree di Venezia, que monitoriza os níveis das marés da cidade, e a Sala Operativa Consorzio Venezia Nuova, que é responsável pelo MOSE. Ambas usam modelos diferentes e comparam as suas previsões.

Spitz chama a este processo uma "série de avisos, desde 48 horas antes da maré até três horas antes".

Não são apenas os operacionais do MOSE que os recebem. "Informam toda a gente que opera na lagoa para começarem, porque todos têm alguma coisa a fazer - desde o homem que pilota o barco de recolha do lixo e tem de mudar de rota, até aos navios que precisam de entrar e sair”, explica ela.

Quinze minutos antes desse aviso de três horas, Spitz e um representante do governo recebem um e-mail que resume tudo o que aconteceu nas horas anteriores e pede confirmação para avançar.

"Por exemplo, se houver um navio atrasado porque apanhou mau tempo, podemos decidir deixar uma parte da barreira aberta para ele poder entrar."

"Só intervimos se houver eventos excecionais que signifiquem que temos de nos desviar do procedimento. Se não houver, o procedimento decorre sem intervenção."

Não é apenas o nível do mar e a velocidade do vento que é preciso ter em conta. A precipitação aumenta o nível da água em redor da cidade, tal como os rios cheios que desembocam na lagoa. "Mesmo que esteja prevista uma maré de 95cm, não sabemos se as barreiras vão ser erguidas”, diz Soru.

A 8 de dezembro de 2019, Veneza foi atingida por uma enchente de 138cm que provocou danos extensos na cidade, poucas semanas depois de o MOSE ter mostrado que não era preciso voltar a acontecer. Qual foi a razão? Só estavam previstos 125cm, mas o vento, a chuva e a água do rio fizeram o nível do mar subir a pique.

As cheias de 2019 arrasaram o comércio local, incluindo os hotéis.

"Assumo a responsabilidade”, diz Spitz. "Foi uma das primeiras vezes que erguemos as barreiras. O procedimento era um pouco mais complicado e como não estava prevista acqua alta [inundações], tomámos a decisão de não ativar o sistema.

"Mas foi uma das primeiras tentativas, e compreendemos que o processo tinha de ser mais automático, por isso, atualizámos o procedimento. A culpa foi nossa, mas hoje não aconteceria."

"Foi desastroso, mas aprendemos com a experiência. Agora, erguemos as barreiras uns centímetros mais cedo”, diz Soru.

Quando o MOSE estiver completamente operacional em 2023, as barreiras serão erguidas quando o nível da água atingir 110cm acima do nível normal. Isso não irá ajudar as zonas mais baixas da cidade, como a Praça de São Marcos que fica inundada perto dos 90cm; mas irá proteger cerca de 86% de Veneza, incluindo as zonas mais residenciais.

Soru diz que, na verdade, as barreiras serão erguidas quando parecer que a maré vai atingir 100cm, para ter em conta o vento e a chuva que possa aumentar os níveis da água.

Mas por agora, na sua fase final de testes, as barreiras são erguidas quando se prevê que a maré atinja os 130cm.

As críticas

As barreiras erguidas pela primeira vez com tempo mau a 3 de outubro de 2020.

É claro que é raro projetos desta dimensão não terem detratores. Uma das principais críticas feitas ao MOSE é que as barreiras interferem com o ecossistema da lagoa, transformando-a num lago e não numa lagoa viva.

Mas, segundo Spitz, quando as barreiras estiveram erguidas durante 48 horas no ano passado, era um ensaio, um teste à sua resistência. No futuro, mesmo em períodos em que as barreiras sejam erguidas diariamente, será apenas durante algumas horas de cada vez. Foram também instaladas comportas em Chioggia e Malamocco para permitir a passagem de algumas embarcações pesqueiras e navios industriais enquanto as barreiras estão erguidas.

"Quando são levantadas, são três ou quatro horas no máximo”, diz Spitz. "E não é ponto assente que seja preciso erguer todas as barreiras. Há várias possibilidades e muita flexibilidade. Estamos a ensaiá-las todas para responder melhor às necessidades que venham gradualmente a surgir. Sempre que as erguemos, preparamos dezenas de testes para obtermos as respostas de que precisamos, para compreendermos o seu funcionamento e para conseguirmos melhorar o sistema."

E apesar de a Praça de São Marcos ficar inundada a um nível inferior àquele em que o MOSE é ativado, há outro projeto – que está atrasado – que prevê construir uma barreira de vidro ao redor da famosa basílica bizantina. No entanto, a proteção do comércio da praça, como o histórico Café Quadri, ainda está longe. O gerente, Roberto Pepe, já tinha dito à CNN que o limite de 110 centímetros do MOSES "não muda nada e deixa um travo amargo" àqueles cuja subsistência depende da praça.

Spitz insiste que não foi ela quem escolheu os limites, mas si uma comissão do governo local e nacional. O acesso ao porto também foi tido em consideração.

Quando são erguidas, as barreiras cortam os três principais pontos de entrada na lagoa.

"Temos de salvar Veneza, Chioggia, as ilhas. Murano, Burano e várias pequenas ilhas estão ainda piores quando há marés altas”, diz ela.

"Mas acima de tudo é preciso encontrar um ponto intermédio entre as necessidades económicas daqueles que trabalham na lagoa e a necessidade de proteger. É essa a grande questão a que teremos de responder no futuro."

Outra crítica ao MOSE? Os custos exorbitantes. O MOSE custou oito mil milhões de dólares a construir e as contas do primeiro ano indicam que custa 328 mil dólares de cada vez que as barreiras são erguidas – quase o dobro da estimativa inicial.

As aletas têm de ser tratadas com anticorrosivo a cada três meses e as suas caixas têm de ser dragadas duas vezes a cada estação, pois a acumulação de areia dentro delas impediu a descida de seis aletas durante os testes de 2020. Os contentores têm de ser limpos a cada cinco anos.

Lidar com as alterações climáticas

A grande questão, claro, é como irá o MOSE suportar as alterações climáticas.

Após as cheias de dezembro de 2020, Claudio Vernier, presidente da Associazione Piazza San Marco, que representa os comerciantes da Praça de São Marcos, disse à CNN que, quando o MOSE foi inicialmente planeado, previa-se que a água só atingisse os 110 centímetros um par de vezes por ano.

"Agora, com o agravar da crise climática, o nível da água está cada vez mais alto e vemos níveis de cheias 20 vezes ao ano. Como será daqui a 30 anos?", perguntou ele.

No entanto, Spitz e Soru insistem que as barreiras vão durar mais do que isso.

"Um estudo sobre corrosão que fizemos há alguns meses mostrou que podem durar 100 anos, mas é preciso fazer a manutenção a cada três meses”, diz Soru.

"Se daqui a 100 anos as barreiras não chegarem e não conseguirmos conter marés de três metros, posso dizer-vos que o problema não será em Veneza”, acrescentou Spitz.

"Neste momento, a lagoa está fechada. A proteção é mais do que suficiente, as barreiras são o que são. Mas é preciso pensar em proteger outras zonas. O problema seria muito maior no delta do Pó [que cobre grande parte do norte de Itália]. Se as alterações climáticas forem drásticas, haverá problemas graves noutros sítios. Será preciso olhar para outros lugares, não para Veneza."

Entretanto, têm sido discutidos planos para alimentar parcialmente o MOSE com painéis solares. Instalá-los em Malamocco poderia fornecer 20% da energia – mas Spitz espera tornar o projeto neutro em carbono em três anos, para o deixar bem posicionado para o futuro.

Spitz chegou em 2019, muito depois dos julgamentos por corrupção no MOSE. "Sei que houve escândalos, li a respeito deles, e foi certo terem sido estigmatizados e terem castigado as pessoas que o fizeram”, diz ela.

"Mas apesar de tudo o que aconteceu com o MOSE, desejo-lhe uma vida longa porque protege Veneza."

Se ela tiver razão, podemos esquecer as inundações devastadoras de novembro de 2019 – que mataram duas pessoas e provocaram mil milhões de dólares de prejuízos às empresas locais que ainda não recuperaram. E La Serenissima pode ficar um pouco mais serena.

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