“Por favor, por favor, não pensem mal de nós”. Reportagem em Odemira: quando todos falam dos imigrantes, todos menos eles

19 dez 2021, 08:00
Neste refúgio nepalês em São Teotónio, o que se passa em Portugal não passa lá

Quando anoitece em Odemira, as ruas têm poucas testemunhas. O escuro encobre um portão da GNR no centro de Vila Nova de Milfontes, por trás do qual se torturaram imigrantes, e uma porta que está sempre aberta mas que poucos cruzam para um refúgio nepalês improvisado em São Teotónio. Framboesas e mirtilos são o bilhete de sonho para uma comunidade de asiáticos no Sudoeste Alentejano que não pára de crescer. Uma história de imigração e desintegração, embalada em caixas de frutos vermelhos.

No Himalayan Restaurant & Bar há duas bandeiras que convidam todos a entrar. A bandeira de Portugal cruza-se com a do Nepal, única no mundo com a forma de dois triângulos, duas montanhas dos Himalaias, bordedajas a azul e fundo carmesim. É quinta feira à noite, o país acaba de ser sacudido pelo escândalo da violência policial sobre migrantes na região de Odemira, as imagens violentas repetem-se em muitos televisores mas não ali. Está toda a gente a falar deles menos eles. Neste restaurante em São Teotónio jantam muitos nepaleses, alguns indianos, nenhum português. O que se passa em Portugal não passa ali.

Yub Raj Gurung está a jantar com amigos, celebram a aquisição da residência em Portugal de um deles. Quer muito contar a história dos nepaleses em Portugal, mas tem um pedido. “Por favor, não fiquem a pensar mal de nós”. Está muito contente, diz, porque “um português está a falar com ele de igual para igual”. Yub tem 31 anos e vive há cinco em Portugal. Fala num inglês com sotaque nepalês.

- Mas os portugueses tratam-te mal?
- Não. Eu adoro estar aqui.
- Nestes cinco anos, fizeste algum amigo português?
- Os portugueses não querem falar comigo.

O posto da GNR

As imagens reveladas pela CNN Portugal e pela TVI nessa quinta feira já passam em todo o lado, são fotogramas de vídeos encontrados pela Polícia Judiciária no telemóvel de um agente da GNR. Num final de tarde de setembro de 2018, pelas 19h, um imigrante foi violentamente esbofeteado por um militar. Meses mais tarde, pelas 21h30, elementos do mesmo posto da GNR agrediram com reguadas e pancadas aleatórias um grupo de imigrantes asiáticos. De acordo com as imagens, estas agressões ocorreram mesmo à porta do posto, atrás de um portão que está normalmente aberto e que dá para o passeio da rua principal. O portão afastou os olhares indiscretos, mas dificilmente impediria os transeuntes de ouvirem o que ali se passava.

É o Posto Territorial da GNR em Vila Nova de Milfontes. Do outro lado da rua fica a escola primária e o posto de turismo. Mesmo ao lado, há duas lojas de roupa, uma loja de telecomunicações, um banco. A rua, situada entre as duas avenidas com mais comércio da vila, é movimentada durante o dia. Mas, à noite, as crianças estão em casa e as lojas fecham, a rua pertence ao posto da GNR.

Na loja de roupa a poucos metros do posto, na sexta feira de manhã, duas funcionárias dividem as atenções entre atender uma cliente e receber as encomendas do estabelecimento. Aceitam falar com a CNN Portugal, mas não querem ser identificadas. Filhas da terra, como se apresentam, admitem estar chocadas com as imagens das cenas violentas passadas no posto da GNR. “A serem verdade.”

Lado a lado. O Posto Territorial da GNR em Vila Nova de Milfontes, onde ocorreram algumas das agressões aos imigrantes, e uma loja de roupa

Do que se passa no posto, não sabem de nada, nunca viram ou ouviram algo digno de suspeita. Pelo contrário, asseguram que já tiveram de chamar os militares para as ajudar a lidar com alguns imigrantes mais difíceis. Uma vez, relatam, um deles entrou na loja e começou a falar “agressivamente”, exigindo que lhe fosse dado trabalho. “Nem para nós temos”, lamenta a funcionária, para a seguir acrescentar que os imigrantes fazem falta na agricultura e trazem crianças para a vila.

“É triste porque nós conhecemos as pessoas envolvidas”, diz a mais velha, de cerca de 30 anos. A mais nova, com 20, concorda. Mas os imigrantes “não são só vítimas e não queremos que transformem esta situação em algo maior do que é”. E o que é? A comunidade asiática que tem chegado ao concelho de Odemira nos últimos anos também traz muitos problemas, garantem. Ambas queixam-se de já terem sido perseguidas por grupos de homens imigrantes na rua e sublinham que se tornou perigoso andarem sozinhas pela vila. Sentem-se olhadas e por vezes até filmadas. Mas não conhecem ou ouviram falar de alguma situação violenta que tenha sido causada por membros desta comunidade.

Os “esquemas” dos frutos vermelhos

O número de residentes estrangeiros no concelho de Odemira, do qual Vila Nova de Milfontes faz parte, tem vindo a crescer de ano para ano e, em 2020, estes representavam 39% do total da população residente no concelho, de acordo com o último relatório do Alto Comissariado para as Migrações e do Observatório do Observatório das Migrações. O documento nota que esta proporção tem aumentado “de forma muito rápida”: em 2018, eram 25%. A maioria dos imigrantes que tem impulsionado este crescimento vem da Índia e do Nepal (dados dos SEF) para trabalhar na agricultura, nas estufas de frutos vermelhos da região. 

Foi assim que o nepalês Sudarshan Bhandari veio parar a Portugal, há 4 anos. Começou por apanhar mirtilos e framboesas, mas agora tem uma empresa de “prestação de serviços agrícolas”, como se pode ler no cartão da “Possível Desfile, LDA” que nos entrega. “Nós arranjamos pessoas para trabalhar no campo”, explica. E onde encontram essas pessoas? A resposta é vaga. “Por aí.”

A Sudarshan, encontramo-lo no “Mahal Pizza & Bar”, no meio abandonado centro comercial de Vila Nova de Milfontes, a cerca de dez minutos a pé do centro. A maioria das lojas que estão abertas neste espaço comercial é explorada por proprietários asiáticos. Os clientes são mais difíceis de definir. Não se veem. O que não faz com que os lojistas estejam mais disponíveis para conversar. Um empregado de um café vazio reencaminha-nos para um escritório improvisado noutra loja, onde outro trabalhador explica apenas que “se trabalha” sem especificar em quê. “Trabalha-se”, repete, e acrescenta que não tem tempo para falar. Tem de trabalhar.

É então que encontramos Sudarsham e o amigo Om Chhetri, ambos sorridentes, ao balcão da loja de pizzas. Sudarsham é o mais novo, com 31 anos, e o mais falador. Om, com 35, completa e corrige algumas frases do amigo, como quando ele diz que o tempo ali é igual ao do Nepal, de onde vieram. “No Nepal há quatro estações e chove de Abril a Outubro”, corrige Om. Ambos estão felizes em Portugal, garantem, em inglês, gostam de bacalhau, e não têm nenhum reparo a fazer sobre nada. Tudo corre bem.

Sudarshan Bhandari (dir.) e Om Chhetri já não apanham fruta em Odemira. Sudarshan agora ajuda as empresas a encontrar outros trabalhadores

Menos feliz está Alexander Pereira, um barbeiro luso-britânico de 24 anos que abriu atividade no centro comercial há três anos. O número de clientes baixou consideravelmente por causa da pandemia e também ele está desocupado quando visitamos o centro comercial. Sobre os vizinhos estrangeiros, não sabe muito, mas está disponível para falar. Diz que “vivem a cultura deles”, aceitam salários abaixo do salário mínimo, “o que acaba por prejudicar as outras pessoas”, e que “vivem vinte numa casa, sem condições”.

Fala bem com eles, mas eles não são amigos nem clientes porque “preferem sítios mais baratos” e “gostam de um corte de cabelo estranho” que este Campeão Nacional de Cabeleireiro em 2018 (o diploma está pendurado na parede) tem dificuldade em fazer. Simpatiza com o dono do “kebab” três portas ao lado, mas estranha o número de lojas e a quantidade de clientes que os vizinhos têm. Afirma que são “esquemas” para trazer os imigrantes para Portugal pois os empregados estão sempre a mudar.

A existência de redes organizadas para trazer imigrantes para trabalhar em Odemira não é nova. Em 2011, o projeto de investigação “O impacto da imigração no sector agrícola: o caso do Alentejo”, de João Carvalho e Sandro Teixeira, revelava que havia imigrantes a pagar dez mil euros para comprar a passagem para Portugal e a possibilidade de, através do trabalho, conseguirem primeiro um visto de residência e depois a nacionalidade portuguesa, ao fim de seis anos a trabalhar no país.

De acordo com o relatório do Observatório das Migrações, nos últimos anos assistiu-se a um aumento da importância relativa da concessão da nacionalidade portuguesa a cidadãos de origem em países asiáticos, tendo representado 16% do total de concessões em 2020 (em 2011, representavam metade dos pontos percentuais, 8%).

O barbeiro de Alexander Pereira é vizinho de muitas lojas com proprietários asiáticos num centro comercial com mais lojas do que clientes

Os clientes de Alexander Pereira são sobretudo portugueses, alguns militares da GNR “porque têm de ter o cabelo sempre curto”. O cabeleireiro é assim uma espécie de “zona desmilitarizada”, terreno neutro onde se sentam imigrantes para cortes esquisitos e os GNR para quase rapar. É um espaço comum, mas não necessariamente de encontro. Em Odemira as comunidades não estão integradas.

Alexander conhecia um dos militares envolvido no primeiro processo de violência para com a comunidade imigrante que envolvia os militares de Odemira. Foram da mesma turma. Falava pouco com ele e deixou de saber do amigo durante o julgamento. Diz que ele “teve azar porque estava na patrulha naquele dia e foi chamado”.

“Eles sabem que os portugueses não gostam deles”

Há quase um ano a trabalhar num projecto artístico com imigrantes asiáticos em Odemira, a coreógrafa Madalena Victorino diz que nunca tinha ouvido falar de “nada do género” das agressões agora conhecidas praticadas pelos militares da GNR. O projeto artístico, financiado, entre outros, pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelos municípios de Odemira e de Santiago do Cacém, arrancou em Janeiro e o primeiro passo foi conquistar a confiança desta população imigrante.

Ao telefone, Madalena explica que começaram por utilizar as empresas como intermediárias mas que esse método se revelou “pouco eficaz” porque, diz, elas não estão interessadas no bem-estar dos trabalhadores. Tiveram de ir para a rua ganhar a confiança dos imigrantes, um processo que demorou meses. No final, apresentaram um espectáculo, “Bowing”, nas ruas de Odemira que contou com a colaboração de mais 80 pessoas, entre imigrantes e artistas e que foi visto por 1200 pessoas em três dias. 

Através da arte, Madalena quer contribuir para a integração da comunidade, algo que considera à partida “super difícil” pela desconfiança que vê entre os portugueses. “Há um preconceito generalizado de que estas populações são violentas e agressivas”, conta. E “eles sabem que os portugueses não gostam deles”. Mas vieram à procura de um “sonho” e têm medo de dizer algo que lhes seja menos favorável.

Madalena trabalhou durante meses com a comunidade asiática em Odemira. Em Novembro, apresentaram um espectáculo que quer ser um ponto de encontro entre os povos. Fotografia: João Mariano

Madalena reconhece que entre os imigrantes há alguns problemas, relacionados, por exemplo, com o sistema de castas que existe nos países de origem, mas são tudo questões que podem ser trabalhadas. “É preciso olhar da maneira certa para eles”, argumenta a coreógrafa. “É preciso procurar uma porta de entrada. E nós fizemos isso com as artes. E eu quero trabalhar com as pessoas que não têm esta oportunidade. O projeto tem ajudado os imigrantes e tem-me ajudado a mim também.”

Da parte da comunidade local, a artista vê “preconceito” e “medo”. Há também tentativas de integração, mas não são eficazes, como os cursos de português para os trabalhadores, que estes não têm energia para frequentar, ou o programa Português como Língua Não Materna, nas escolas públicas. "Há um trabalho a ser feito, mas estas soluções não funcionam como poderiam", nota Madalena, pois nem os mais velhos nem os mais novos falam Português. Alguns nem mesmo Inglês. A língua continua a ser uma grande barreira.

O estudo do Observatório das Migrações revela que as nacionalidades nepalesa e indiana estavam entre as nacionalidades estrangeiras mais representadas no ensino básico e secundário no ano letivo 2019/2020, com 2300 alunos destes países. Mas o insucesso destes estudantes também está documentado. Os nepaleses e os indianos, juntamente com os alunos do Bangladesh e do Paquistão, são também aqueles que apresentaram piores resultados escolares, com as taxas de transição/conclusão mais baixas, chegando a ter menos 15 pontos percentuais do que a média dos alunos estrangeiros.

O refúgio nepalês

Há um muro de sorrisos entre o que vemos e o que queremos saber. Quem são as vítimas dos GNR, conhecem-nos?, como é a relação com as autoridades policiais, com os empregadores, como é a vida dos que trabalham nos campos? As bocas desenham simpatia, mas pouco se abrem. Ou então “está tudo bem”. Está tudo bem?

Naquela quinta feira no Himalayan Restaurant & Bar, Yub Raj Gurung mostrou-nos as mãos para sublinhar que só quer trabalhar e não quer incomodar ninguém. Metade das unhas desapareceram, o que resta está cheio de nódoas negras. Mas como? Encolhe os ombros. Há barreiras que nenhuma língua pode ultrapassar. 

“Querem que apanhemos sempre mais e mais fruta.” Não é uma queixa. Yub não se queixa, sorri. Está feliz por estar em Portugal, quer trazer a mulher, a filha de sete anos, o pai e a mãe. Eles venderam tudo o que tinham para ele vir primeiro e lhes abrir a porta. Pagaram 16 mil euros e Yub agora trabalha na apanha da fruta em qualquer empresa que lhe der trabalho. Maravilha Farms, Sudoberry, The Summer Berry. Yub repete os nomes bonitos e ingleses que contrastam com as mãos que acabou de mostrar.

- No Nepal há discriminação étnica, entre religiões, entre castas, entre géneros. Aqui há paz. Temos serviços básicos como habitação e saúde. Por favor, não pensem mal de nós. Só queremos estar aqui porque é bom.

No restaurante onde estamos, há uma sala separada onde comem os supervisores das empresas. São imigrantes como eles, talvez até tenham começado da mesma forma a apanhar framboesas e mirtilos, mas conquistaram uma posição superior, que é preciso sublinhar, mesmo depois do horário de trabalho. Na sala comum, Yub continua encantado com a presença de portugueses. Não se lembra de ver ali nenhum antes. Continua a contar a sua história, que não é só dele, diz, mas de todos os nepaleses em Odemira. E repete, uma e outra vez: “Por favor, não pensem mal de nós. Por favor”. Di-lo sempre com um sorriso, mas os olhos ficam expectantes à espera de uma resposta.

Yub Raj Gurung chegou a Portugal há cinco anos. A filha e a mulher estão no Nepal à espera de uma oportunidade para se lhe juntarem

Trabalha seis a sete meses por ano. Recebe 800 euros e faz as contas ao dinheiro. 150 vão para o alojamento. 150 para comer. 50 para pagar eletricidade e internet. 80 para pagar transporte para o trabalho. Vai mandando remessas de 100 e 150 euros de vez em quando e guarda o resto para se aguentar quando não tem trabalho.

- Nós somos iguais a vocês. Somos humanos. Como estariam vocês se tivessem deixado a vossa família, os vossos filhos e se não os vissem há anos? Nós não queríamos estar longe da nossa família. O Governo trata-nos bem, mas os portugueses não querem saber de nós. Olham-nos com desconfiança. Não gostam dos nossos hábitos.

A noite vai longa e Yub está demasiado longe de casa. Daqui a pouco irá dormir numa cama num quarto de três pessoas. Uma cama não é uma casa. 

Yub mostra com as mãos qual era a altura da filha quando a viu pela última vez. Mal lhe chegava aos joelhos. Agora, calcula pelas videochamadas, deve passar-lhe a cintura. A filha não se lembra de ver o pai pessoalmente. O pai não quer ser esquecido. Pela filha. Pelos portugueses. “Por favor, não passem por mim fingindo que não me veem.”

Nota: Artigo atualizado no dia 22 de dezembro com novas declarações.

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