Portugal apoia utilização de ativos russos para a reconstrução da Ucrânia (mas há divisão na União Europeia)

2 jul 2023, 22:00
Vladimir Putin com rublos (Sefa Karacan/Getty Images)

Discussão que dura há várias semanas pode ter resultados concretos no final do próximo mês. O Banco Central Europeu ou países como a Alemanha temem que esta via possa afetar as economias da Zona Euro

A Ucrânia deverá precisar de quase 380 mil milhões de euros para se reconstruir depois da guerra e parte desse dinheiro poderá vir da Rússia, de acordo com o Banco Mundial. É isso que a União Europeia discute há várias semanas, tentando perceber se é possível aplicar na recuperação do país que foi invadido em fevereiro de 2022 os cerca de 200 mil milhões de euros em ativos do Banco Central da Rússia que foram entretanto congelados.

Com a ideia de apresentar um plano dentro de semanas, continua a haver resistência de vários países em avançar. Desde a legalidade do processo às possíveis consequências económicas, Estados-membros como a Alemanha ainda estão a decidir se este será o melhor caminho.

Já Portugal, que integra uma task-force criada pela Comissão Europeia para discutir o assunto, garante que apoia a utilização destes bens russos. Em resposta à CNN Portugal fonte do Governo afirma que “Portugal tem apoiado, acompanhado e participado em todas as decisões e trabalhos preparatórios” tendo em vista a transferência destes fundos para a Ucrânia.

“O assunto tem sido objeto de múltiplas referências em conclusões, designadamente do Conselho Europeu, sempre com o apoio de Portugal”, acrescenta o executivo, que está esperançado na apresentação de uma proposta concreta “até ao final do próximo mês”. As últimas contas davam conta de que em Portugal estavam 25 milhões de euros em bens russos congelados.

O objetivo passa por tentar encontrar propostas que respeitem a “compatibilidade da utilização concreta de bens e ativos congelados para a reconstrução da Ucrânia com os quadros jurídicos europeu e dos Estados-membros”, segundo o executivo. Precisamente as dúvidas que ecoam na Alemanha, por exemplo, que também teme que com o avançar desta medida se coloquem em causa a confiança na segurança dos ativos armazenados por Estados estrangeiros na Europa.

Esta situação iria "abrir uma lata de vermes", de acordo com um responsável alemão que falou ao Financial Times. Berlim entende que, se a União Europeia aceitar dinheiro vindo da Rússia para este efeito, isso poderá abrir um precedente, nomeadamente para situações como os pedidos da Polónia para que a Alemanha dê uma indemnização ao país por causa da Segunda Guerra Mundial. O mesmo responsável indicou que o ministro da Justiça da Alemanha, Marco Buschmann, entendeu que as propostas em cima da mesa não têm base jurídica.

Um documento obtido pela Bloomberg dá conta de que a União Europeia concluiu que não pode confiscar legalmente os ativos russos, estando por isso em estudo a possível utilização temporária desses bens. O relatório indica que o grupo de trabalho não encontrou "nenhuma via legal credível que permita a confiscação de ativos congelados ou imobilizados com base apenas no facto de estes ativos estarem sob medidas restritivas da União Europeia".

O ministro austríaco dos Negócios Estrangeiros pediu cautela com os próximos movimentos. Também à Bloomberg, Alexander Schallenberg admitiu que compreende "perfeitamente a emoção do debate e o facto de dizermos que temos de deitar a mão a estes ativos". Mas também deixou um aviso. "Somos Estados de direito. Estamos a defender uma ordem internacional baseada em regras. Por isso, tudo o que fizermos neste domínio tem de ser absolutamente estanque. Pode ser contestado, e pode ser contestado perante os tribunais europeus ou americanos. Se alguma destas ações fosse levantada por um juiz, seria um desastre diplomático e económico".

Uma preocupação que não é apenas jurídica. Segundo o Financial Times também existem no Banco Central Europeu (BCE) algumas reticências, com um dos melhores exemplos a vir do Brasil. É que aquele país da América do Sul tem várias reservas em euros, mas pode ver com maus olhos a utilização de fundos congelados para outras vias, até porque poderão vir aí sanções de Bruxelas a Brasília, por causa destruição da floresta amazónica. Um cenário que o BCE teme que possa vir a desvalorizar o euro de forma particularmente negativa, o que teria implicações específicas nos países da moeda única.

"As implicações podem ser substanciais: pode levar à diversificação das reservas para fora do domínio do euro, aumentando os custos de financiamento para as dívidas europeias", referiu uma nota do BCE que foi citada pelo Financial Times.

Do outro lado da barricada, onde parece estar Portugal, defende-se que o tabu já foi quebrado em fevereiro de 2022, altura em que o G7 decidiu congelar os ativos do Banco Central da Rússia, sem que isso tenha provocado uma reação negativa.

Para já uma coisa parece certa: “A Ucrânia terá de pagar uma grande fatura para a sua reconstrução e grande parte dessa fatura recairá sobre a União Europeia”. Palavras do diretor-geral do Conselho Nacional de Comércio da Suécia, que também lidera o grupo de trabalho formado pelos 27, e que está continuamente a analisar as possibilidades de utilizar os bens congelados.

“É evidente que estamos a fazer algo de único. A União Europeia nunca embarcou numa abordagem da dimensão da que estamos a discutir”, acrescentou Anders Ahnlid. O responsável explicou que a ideia poderia dar três mil milhões de euros por ano à Ucrânia durante um grande período.

Outra hipótese em cima da mesa é utilizar os ativos congelados para fazer render o dinheiro, utilizando a margem de lucro para ajudar a Ucrânia, enquanto se salvaguarda uma possível devolução do dinheiro à Rússia no futuro.

Como pode funcionar a medida

Dos cerca de 550 mil milhões de euros de ativos que o Banco Central da Rússia tem na União Europeia, 200 mil milhões foram congelados. Quase todo este dinheiro está espalhado por contas na Euroclear, uma empresa de serviços financeiros com sede na Bélgica, e que é especializada em guardar e em investir este tipo de fundos.

O grupo informou, em abril, que a sua balança comercial tinha indicado que os fundos que ali estão alocados mais do que tinham duplicado, em grande parte por causa dos pagamentos associados aos ativos russos. Segundo a Bloomberg só no primeiro trimestre deste ano terão sido gerados 750 milhões de euros como consequência dos bens congelados.

Normalmente estes pagamentos teriam sido feitos para contas em bancos russos, mas os bloqueios decretados pela União Europeia, como resultado das sanções, fazem com que esse dinheiro fique nas contas da empresa a gerar dinheiro. Na prática, em vez de devolver o dinheiro, a Euroclear fica com o que já tem mais os rendimentos que dali surgem.

O plano do grupo de trabalho da União Europeia, que inclui Portugal, envolveria a criação de uma taxa especial para recolher as receitas de juros inesperadas que resultem desta situação, e que depois fariam parte do orçamento que a União Europeia vai estabelecer para ajudar a Ucrânia.

Os países mais pequenos parecem estar de acordo. O primeiro-ministro da Letónia, por exemplo, disse que os ativos russos são "um fruto fácil de apanhar". "Precisamos de encontrar uma base legal para utilizar, mobilizar estes ativos para ajudar... a pagar os danos que a Rússia está a causar na Ucrânia", disse Arturs Krišjānis Kariņš.

No entanto, as altas instâncias europeias, com o apoio de países como a Alemanha, veem a questão com outra cautela. "Aqueles que têm dinheiro podem pensar .... 'e se um dia eu estiver na lista'", disse um representante europeu à CNN Internacional, pedindo anonimato pelo caráter privado das negociações.

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