"Podemos ser uma espécie de Silicon Valley da Defesa". Europa quer revolucionar a indústria militar e isso pode ser "uma enorme oportunidade" para Portugal

9 mar, 08:00
Fábrica de munições de artilharia de 155 mm da BAE Systems no Reino Unido (Oli Scarff/Getty Images)

Longe da Rússia, de caras para o Atlântico e com a UE a querer aumentar o financiamento para as pequenas e médias empresas da área da Defesa, Portugal pode ser um dos países que mais beneficia com esta conjunção de fatores

É ambicioso, mas “realista”, e pode ser “uma oportunidade enorme” para Portugal. Depois de dois anos de guerra na Ucrânia, a União Europeia lançou um programa para impulsionar a indústria da Defesa no continente para não só dar resposta às necessidades ucranianas, mas também aumentar a capacidade da Defesa num continente cada vez mais instável. “Temos de passar para o modo de economia de guerra”, defendeu Thierry Breton, comissário europeu da Indústria, durante o anúncio do lançamento do programa, na terça-feira.

“Os americanos são nossos aliados, mas têm os seus interesses. Andamos a desindustrializar o continente há 30 anos e, agora, recomeçar este motor industrial não se faz de um dia para o outro. É preciso que os países europeus comprem na Europa e em conjunto”, afirma o major-general Agostinho Costa.

Levar os países europeus a comprar armamento a empresas que produzem na Europa é precisamente um dos principais pontos do plano para reindustrializar o setor da Defesa europeu, avançado pela Comissão. Até 2030, a União Europeia quer que, pelo menos, metade dos orçamentos de Defesa sejam utilizados em produtos fabricados na Europa. A medida é semelhante ao National Defense Authorization Act dos Estados Unidos, que exige que uma percentagem do armamento seja fabricada no próprio país.

Outra das principais medidas é levar a que 40% das compras de equipamento militar seja feita de forma conjunta, à semelhança daquilo que foi feito entre 2021 e 2023 com a compra de vacinas da covid. A medida pretende aproveitar a dimensão do bloco europeu para ser capaz de fazer encomendas de maiores dimensões, levando a preços mais baixos e a uma maior eficiência na aplicação de recursos.

“Quando os 27 trabalham em conjunto, a resposta é muito mais eficiente, com menor custo e consegue resultados muito melhores. Há uma margem muito grande para sermos mais eficientes e para conseguirmos assegurar a proteção dos cidadãos”, explica à CNN Portugal Sofia Moreira de Sousa, representante da Comissão Europeia em Portugal.

A invasão russa da Ucrânia veio expor algumas das principais vulnerabilidades da Europa no campo defensivo. Poucos meses depois de ter começado a enviar apoio militar a Kiev, as reservas de munições da Alemanha chegaram a um nível crítico. Depois de décadas de desinvestimento, a maior economia da Europa tinha armamento suficiente para apenas “dois dias de combates”. Mas nos outros países o cenário não era muito melhor nos principais exércitos do continente. O Reino Unido tem “apenas” 150 carros de combate e a França tem apenas 90 sistemas de artilharia pesada, aproximadamente o que a Rússia perde todos os meses na Ucrânia.

A situação tem vindo a ganhar um caráter de urgência nos últimos meses, após as declarações de Donald Trump, antigo presidente e atual candidato republicano à liderança do maior aliado europeu, em relação aos países da NATO que não cumprem o investimento de 2% do PIB na área da Defesa. O candidato republicano, que lidera as sondagens contra Joe Biden, sugeriu que encorajaria a Rússia a invadir os países que não cumprem esta meta. O possível regresso de Trump levou várias capitais europeias a questionarem-se acerca da necessidade de a Europa reclamar para si a responsabilidade de garantir a sua própria Defesa, independentemente da NATO, ganhando com isso uma maior autonomia estratégica. É precisamente isso que muitos diplomatas em Bruxelas defendem.

“A União Europeia precisa de assegurar a sua autonomia estratégica e a sua autonomia na área da Defesa. Incentivar a indústria do armamento na Europa para evitar que seja necessário recorrer a cadeias de abastecimento externas que podem estar ou não disponíveis”, insiste Sofia Moreira de Sousa.

Mas este processo vai demorar tempo e a Comissão Europeia parece ciente disso mesmo. Armin Papperger, diretor-executivo da Rheinmetall, a maior empresa de armamento europeia, admitiu que a Europa precisa de cinco anos para repor as suas reservas, mas só dentro de dez anos é que será capaz de se defender sozinha. A empresa alemã, que é uma das maiores produtoras de munições do mundo, poderá ser uma das grandes beneficiadas do aumento do investimento em armamento europeu.

A curto prazo, a Comissão Europeia propôs um fundo de 1,5 mil milhões de euros para incentivar as compras de armamento conjuntas. No entanto, o comissário europeu para a Indústria, Thierry Breton, sugeriu que é preciso criar um fundo de Defesa de 100 mil milhões para acelerar o processo. “Estou convicto de que vamos fazer isso”, defendeu, durante o anúncio da Estratégia para a Indústria de Defesa Europeia. Ainda assim, não é garantido que esses valores sejam suficientes para tapar todos os buracos da Defesa no continente.

“1,5 mil milhões não vai resolver os problemas da Europa, mas vai ser uma ajuda para produção de materiais necessários para Ucrânia. Mesmo 100 mil milhões não é muito, mas é um sinal importante, porque significa que a União Europeia, como um todo, começa a preocupar-se com a sua situação estratégica”, refere o major-general Isidro de Morais Pereira.

Um dos problemas da indústria de Defesa europeia é o facto de muita da produção ser vendida para fora da União. Atualmente não há um mecanismo que permita aos países obrigar os privados a dar prioridade ao fornecimento de armamento para o mercado europeu ou para a Ucrânia, caso seja a vontade dos Estados-membros. Josep Borrell, comissário europeu para os Negócios Estrangeiros, chegou mesmo a apelar para que os países europeus travem a venda de armamento para o estrangeiro. Esta estratégia europeia tenciona criar um mecanismo para fazer isso mesmo.

Estas medidas, defende Thierry Breton, seriam suficientes para fazer com que a União Europeia seja capaz de produzir a um ritmo semelhante ao da Rússia, nos próximos 18 meses. Desde que começou a invasão da Ucrânia, a Rússia aumentou significativamente a sua produção de munições e encontrou no Irão e na Coreia do Norte parceiros viáveis capazes de fornecer equipamentos militares em grandes quantidades. Segundo a Coreia do Sul, as fábricas norte-coreanas estão a “trabalhar a tempo inteiro” para entregar armas à Rússia.

“Caso haja uma guerra, como há agora, a Europa tem de encomendar as peças e fica completamente dependente da capacidade de terceiros. A Europa tem sempre de acordar e de, independentemente de quem ganhe as eleições nos Estados Unidos, tem de ter capacidade de se defender. Que não haja dúvidas: voltámos a precisar de equipamento pesado e a produção de munições é absolutamente necessária e imprescindível”, garante o especialista em assuntos militares Isidro de Morais Pereira.

E Portugal pode vir a beneficiar bastante com algumas das principais mudanças da estratégia europeia. A Comissão Europeia quer impulsionar fortemente uma indústria da defesa descentralizada, que não seja focada apenas em gigantescos conglomerados. Por isso, vão ser criadas facilidades no financiamento a pequenas e médias empresas, através de um fundo para acelerar a transformação da rede logística do setor da Defesa no continente. "Todas as indústrias podem e devem beneficiar deste novo programa que alerta para a necessidade de investimento na indústria da Defesa. Há uma componente muito especial que visa apoiar as pequenas e médias empresas", explica Sofia Moreira de Sousa.

De acordo com dados de 2022, a indústria da Defesa em Portugal é composta por 363 empresas e 61 entidades de educação e formação, com vendas somadas no valor de 4,6 mil milhões de euros. Mas este setor em Portugal é composto quase na sua totalidade por pequenas e médias empresas. Cerca de 90,6% do tecido empresarial da Defesa no nosso país é formado por empresas de pequenas dimensões, que empregavam 38.844 pessoas, em 2022. E este é um setor que paga quase o dobro da média do salário nacional, com um salário médio de 1.652 euros, segundo o Instituto Nacional de Estatística.

“É uma enorme oportunidade para as empresas portuguesas. A nossa indústria é constituída por indústrias muito pequenas. É uma vulnerabilidade, mas também tem garante de alguma flexibilidade. Seria interessante que Portugal se posicionasse como pronto para ter pólos de tecnologia e de investigação e tornar Portugal uma espécie de Silicon Valley da Defesa da Europa”, sugere Agostinho Costa.

Esta visão parece ir ao encontro das propostas de alguns dos maiores partidos que vão a eleições já no dia 10 de março. Tanto o Partido Socialista como a Aliança Democrática ou o Chega defendem a utilização da indústria da Defesa para reequipar as Forças Armadas e alavancar o potencial económico do país.

Para o major-general Isidro de Morais Pereira, esta é uma oportunidade única para o nosso país, devido à sua localização estratégica. Portugal é o país mais distante da Rússia e, além disso, está virado para o Atlântico e possui portos de águas profundas que permitem a exportação e o transporte de equipamentos. “Podemos produzir drones e tecnologia de ponta, mas também podemos ser um hub logístico da Defesa”, aponta.

Um dos pilares do programa estratégico é a cooperação com parceiros estratégicos internacionais, principalmente com a Ucrânia. A Comissão Europeia quer Kiev e a sua indústria militar a participar ativamente nos vários programas de defesa da União Europeia nos próximos anos. Para os especialistas, esta é uma cooperação que faz todo o sentido uma vez que a Ucrânia é, neste momento, “um laboratório para as fábricas de armamento”.

Atualmente, dezenas de sistemas de armamento são utilizados pela primeira vez no campo de batalha, obtendo daí lições importantes que permitem adaptar produtos e melhorá-los, em tempo real. Nenhum caso tem sido tão claro como o dos drones aéreos e navais. Centenas de startups ucranianas estão a competir para fornecer drones às Forças Armadas e a fazer adaptações aos seus produtos numa questão de horas. Se os soldados russos têm armas de guerra eletrónica que anulam os drones, os engenheiros ucranianos arranjam rapidamente uma solução e entregam-na em pouco tempo. Esse conhecimento é precioso.

“A verdade é que a Ucrânia é um laboratório extraordinário para as fábricas de armamento. Neste momento, estão a ser utilizadas armas que nunca foram testadas e estão a ser introduzidas alterações em tempo real. As armas são criadas e enviadas imediatamente para a frente de combate. A parceria entre empresas tradicionais e startups são importantíssimas”, conta Isidro de Morais Pereira.

O plano é realista, admitem os especialistas. Os prazos “são razoáveis” e possíveis de atingir. Mas nem todos concordam que este plano, mesmo que cumprido, seja o suficiente para corrigir as debilidades da defesa da Europa.

“Não há euforias. A Defesa da Europa não é só uma questão industrial. Este tipo de medidas é um passo importante para nos tornarmos um pilar europeu da NATO, mas é preciso criar uma estrutura de comando militar europeu. Andamos a fazer de conta, não encaramos que a Europa precisa de uma defesa comum”, frisa Agostinho Costa.

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