Rússia esteve a "500 metros milimetricamente calculados" de começar a "Terceira Guerra Mundial"

8 mar, 07:00
Zelensky e Mitsotakis em visita a Odessa (AP)

Zelensky estava de visita a Odessa na quarta-feira com o primeiro-ministro grego quando caiu um míssil. O Kremlin garante que teria matado o presidente ucraniano se quisesse

De um momento para o outro, a terra tremeu e “um cogumelo” de fumo e poeira levantou-se no ar. Um míssil balístico tinha acabado de atingir um edifício em Odessa a menos de 500 metros do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e de Kyriakos Mitsotakis, primeiro-ministro da Grécia, um país membro da NATO. Os dois líderes e as suas comitivas escaparam ilesos, mas cinco pessoas morreram e várias ficaram feridas. Apesar de não ter acontecido em território da aliança, alertam os especialistas, o ataque poderia ter potenciado uma reação em cadeia com “consequências tremendas”.

“Foram 500 metros milimetricamente calculados. Vladimir Putin fê-lo para amedontrar a NATO, mas poderia facilmente ter sido o rastilho que começa uma Terceira Guerra Mundial, onde, com armas nucleares, não haveria vencedores”, afirma o professor José Filipe Pinto, especialista em Relações Internacionais.

Moscovo diz que o ataque teve como alvo uma fábrica de drones marítimos, que nos últimos meses têm afundado vários navios da frota russa do Mar Negro. No entanto, este foi o ataque mais próximo da localização não só do presidente ucraniano como do líder de um Estado que pertence à NATO. Um ataque fatal contra um primeiro-ministro da NATO poderia provocar uma reação dos membros da Aliança que colocaria o continente “mais próximo de uma nova escalada.”

Apesar de o artigo 5.º do tratado da NATO garantir que “um ataque armado” contra um dos Estados na Europa ou na América do Norte “será considerado um ataque” contra todos, o artigo 6.º estabelece que tal só se aplica em ataques militares contra territórios, navios, aeronaves ou forças terrestres de países aliados. Juridicamente, os membros da Aliança não estão obrigados a reagir a ataques contra chefes de Estado ou de governo, mas politicamente a resposta pode ser outra.

“Não há nenhuma obrigação jurídica, mas se fosse um ataque fatal, certamente haveria uma resposta. Um ataque a um chefe de governo pode ser considerado um ataque ao Estado, independentemente de ter sido no território da NATO ou não”, defende Francisco Pereira Coutinho, professor de Direito Internacional na NOVA School of Law.

O cenário mais provável seria a Grécia invocar o artigo 4.º, à semelhança do que fez a Polónia quando dois mísseis caíram no seu território, a poucos quilómetros da fronteira com a Ucrânia, para poder consultar os aliados. O encontro teria como objetivo apresentar a todos os membros os factos e as provas e discutir se existiu uma violação que permita ativar o artigo 5.º e mobilizar os Estados para a guerra. “Dado que o ataque ocorreu no território da Ucrânia, que não é um Estado membro da NATO, e que o alvo principal não era um funcionário da NATO, é altamente improvável”, considera Elena Davlikanova, investigadora do Centro de Análise Política Europeia (CEPA) e bolseira do Wilson Center.

Mas mesmo que não estejam reunidos os pressupostos para invocar o artigo 5.º, os especialistas alertam que uma reação “fraca” a um ataque direto contra um primeiro-ministro poderia tornar a Rússia ainda mais agressiva e arrojada, ancorando-se no seu poderio nuclear, uma possibilidade que deve ser suficiente para “motivar” os líderes ocidentais a reforçarem o apoio à Ucrânia.

“Um cenário bem provável era o envio de militares para a Ucrânia, como sugeriu o presidente Macron. Uma série de barreiras psicológicas a que temos assistido ao longo destes dois anos cairiam de forma muito rápida”, considera o major-general Isidro de Morais Pereira, antigo representante militar português no quartel-general supremo das Forças Aliadas na Europa (SHAPE), que adianta que o comando da NATO “está a desenvolver planos para defender os países da NATO em todos os cenários”.

Para Sean Monaghan, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), "o ponto essencial é que este conflito desnecessário nos aproxima de uma escalada imprevisível e catastrófica e deve acabar o mais rápido possível e a forma mais fácil de o fazer é, obviamente, Putin deixar a Ucrânia como entrou".

"Matar líderes democráticos não produz mudanças - matar autocratas sim"

Uma guerra entre a NATO e a Rússia não é do interesse de ninguém, razão pela qual José Filipe Pinto considera que este ataque é, acima de tudo, “um aviso para Zelensky e para o Ocidente”, com Moscovo a demonstrar que é capaz de atacar o presidente ucraniano quando quiser, mas que não o faz porque isso não é do seu interesse.

O bombardeamento teve lugar numa cidade com uma longa ligação histórica ao império russo. Vladimir Putin já afirmou várias vezes que considera que a cidade portuária fundada por Catarina, a Grande, pertence à Rússia. O timing do ataque pode mesmo indicar que o presidente russo quer avisar o Ocidente para que se mantenha longe de “um território que considera historicamente seu”, sublinha José Filipe Pinto. "Há aqui um aviso para a definição do espaço estratégico da Rússia, para aquilo que a Rússia considera o seu espaço vital."

Para Zelensky, o ataque a Odessa foi uma oportunidade para renovar os apelos ao Ocidente por mais apoio militar. "Vimos este ataque, podemos ver com quem estamos a lidar, eles não se importam com o local onde atacam", disse a partir da cidade portuária pouco depois da explosão. "Precisamos de nos defender, em primeiro lugar e acima de tudo. E a melhor maneira de o fazer é com um sistema de defesa aérea."

Já para o número dois do Conselho de Segurança Nacional russo parece ter sido exatamente o que José Filipe Pinto referia. No rescaldo do ataque, Dmitri Medvedev escreveu no seu canal de Telegram: "Tudo aqui é óbvio para todos. Não houver qualquer ataque à comitiva em Odessa e, se esse fosse o alvo definido, [as forças russas] tê-lo-iam atingido."

Mas o que teria a Rússia a ganhar com o assassínio de Zelensky neste momento? “Penso que é seguro dizer que, se a Rússia matasse Zelensky, isso tornaria a situação pior e não melhor para a Rússia – galvanizaria ainda mais a população da Ucrânia, serviria de catalisador a um maior apoio do Ocidente e aumentaria a indignação internacional e o isolamento da Rússia”, responde Monaghan. “Não estou seguro de que isso ajudasse os russos, na verdade poderia sair-lhes o tiro pela culatra – provavelmente iria aprofundar a determinação ucraniana para ganhar a guerra e a determinação ocidental para continuar a prestar-lhes apoio”, acrescenta Jamie Dettmer, colunista do Politico Europe,

Correspondente de guerra veterano, Dettmer aponta o “óbvio” – que o potencial assassínio de Zelensky “teria um grande impacto na Ucrânia, ainda mais por estes dias, no rescaldo de uma dececionante contraofensiva dos ucranianos e face aos desafios que enfrentam para assegurar, da parte dos seus aliados, o reabastecimento militar que necessitam para manter a resistência contra a agressão russa”. 

Encarar este ataque como uma tentativa de assassínio falhada pode ser falacioso, mas, como destaca, “o atual momento está entre os mais desafiantes para a Ucrânia nesta guerra e a oratória e persistência fascinantes de Zelensky têm sido fatores-chave na angariação do apoio ocidental que a Ucrânia recebeu até agora”. É, aliás, esse fascínio "uma das principais razões pelas quais legisladores russos e bloggers militares ultranacionalistas têm clamado para que Zelensky seja o alvo". 

Não tendo sido, Medvedev não deixou de acrescentar, na sua mensagem de Telegram, que "foi de alguma forma uma pena que [o míssil] tenha sido lançado com precisão contra um local pré-planeado". O que teria então a Rússia a ganhar com o assassínio de Zelensky? "A História geralmente não ensina nada a ninguém, mas o assassinato de Johar Dudayev pode ser um exemplo relevante", diz Elena Davlikanova, destacando que a morte do líder político e militar durante a primeira guerra da Chechénia (1994-1996) "deferiu um duro golpe ao movimento de independência checheno, ainda que o conflito se tenha arrastado por vários anos depois disso".

A investigadora do CEPA reconhece alguns limites a este paralelismo. "Mas apesar de as capacidades gerais da Ucrânia e o apoio ocidental ao país em 2024 representarem uma situação bem diferente da da República Chechena da Ichkeria nos anos 1990, o assassínio do presidente Zelensky poderia ter muitas consequências indesejadas – como mergulhar a Ucrânia em turbulência política com a nação a tentar recuperar da perda do seu líder."

Em tempos de paz, recorda Davlikanova, os ucranianos estariam a ir às urnas por esta altura, pelo que matar Zelensky agora poderia ter criado uma situação relativamente benéfica para Moscovo. "A Rússia iria aproveitar-se da situação para forçar a narrativa do poder ilegítimo e da necessidade de eleições, quando são impossíveis de fazer debaixo de fogo. A morte de Zelensky poderia ter dado esperança à liderança russa e levado a uma parte do Ocidente a iniciar negociações sob as exigências russas. A sua morte poderia ter tido uma influência significativa no destino da Ucrânia."

Apesar de tudo, a História também mostra outra coisa, como lembra Dettmer. "Um estudo com base em dados feito por académicos americanos há alguns anos, no qual examinaram os efeitos nas instituições e na guerra de 59 assassinatos cometidos entre 1875 e 2004, sugeriu que matar líderes democráticos não produz mudanças substanciais – matar autocratas sim.”

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