“Vivere pericoloso”, ou quanto vale a vida de um jornalista?

16 mar 2022, 21:57

A morte de jornalistas durante um conflito não é, em bom rigor, diferente da morte de um elemento da população civil, de um velho, mulher ou criança vítimas da violência de um agressor, aquele que age como a Grande Ceifeira

De uma certa maneira, como a morte de um combatente, a morte de um jornalista até é “menos” do que a morte dos civis em sentido “estrito”, porque um jornalista ou correspondente de guerra sabe ao que vai, tem a noção aguda daquilo que lhe pode acontecer, escolhe ir e escolhe ficar. E não ignora que, apesar de um estatuto próprio de proteção, não só os riscos a que se sujeita são tremendos e quase “inerentes” como, por outro lado, se foi tornando num dos alvos mais apetecíveis numa guerra.

É fácil de compreender porquê. E por aí também se alcança, e não é paradoxo ou jogo de palavras, que de cada vez que um jornalista tomba estamos perante uma morte que é “mais” do que outras. Não é que o valor da vida tenha tabelas de pesos e medidas, nada disso – mas há matilhas à solta e qualquer afirmação tem de ser explicada tintim por tintim.

Tenha-se presente: o custo da vida de um jornalista também se sente pelas consequências na nossa vida e, em especial, no acesso que queremos ter a informação séria e credível. Durante um conflito, com efeito, e sem pessoas que vigiem, contem e denunciem, a sociedade civil “global” fica à porta, ninguém a deixa entrar. Nessa altura, sentimos de forma mais aguda o valor da informação e o terrível desvalor das mortes dos que nos queriam continuar a contar. Brent Renaud, Pierre Zakrzewski, Oleksandra “Sasha” Kuvshynova, Evgeny Sakun e Viktor Dudar, estes são os nomes dos cinco jornalistas que já morreram desde o início do conflito a 24 de fevereiro; e a estes juntam-se mais de três dezenas de feridos.

Não pode além disso deixar-se de lado que, na Rússia e alhures, os jornalistas são cada vez mais alvo de medidas de perseguição. Nem de propósito, o Comité para a Proteção de Jornalistas (CPJ) contava-nos, ainda ontem, que Yahor Martsinovich (mais um jornalista) foi condenado a dois anos e meio de prisão na Bielorrússia, por ter ousado fazer a cobertura das manifestações de 2020.

O direito internacional humanitário, no entanto, regula a questão, e não é impossível evitar uma pequenina, mesmo pequenina crítica: alguns jornalistas não sabem sequer os direitos que são seus.

Não querendo fazer de rato de biblioteca, temos duas situações ligeiramente diferentes a considerar. 

A primeira é a do “jornalista”, aquele que cumpre “missões profissionais perigosas em zonas de conflito armado”. A outra é a do “correspondente de guerra”, aquele que está acreditado “junto das forças armadas” de uma qualquer das partes. Ambos estão sujeitos aos deveres do jornalismo. Todos beneficiam da proteção geral conferida aos civis. Mas os correspondentes de guerra, além disso, terão direito ao estatuto de prisioneiro de guerra se vierem a ser detidos no decurso do conflito (Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra de 1949, art. 79, 1 e 2; art. 4, 4, da III Convenção de Genebra, de 1949).

A figura do correspondente de guerra viveu de forma pachorrenta até à guerra do Iraque, em 2003. Nessa altura, surgiu a construção do jornalista embedded, criticada por alguns, mas de pouca relevância prática. E é assim que estamos: a Cruz Vermelha Internacional a dizer que esta proteção chega, ONG ligadas ao jornalismo a insistirem que não é suficiente. Fossem estas regras cumpridas minimamente, e chegava – razão para a CVI. Só que, verdadeiramente, as regras de proteção são cada vez menos cumpridas, sem que isso signifique que mais legislação internacional é algo que possa, de forma realista, alterar o que quer que seja. Por isso, olhando mais de perto, ninguém tem razão: o poder dos factos (violentos e de perseguição) tem prevalecido, e aí não há discussão erudita que resulte.

Na frente da guerra, proponho que se saia da Ucrânia e se aterre na Haia, Países Baixos. É ali a sede do Tribunal Internacional de Justiça. No despacho de medidas provisórias hoje adotado no caso Ucrânia c. Rússia (a ele voltarei com mais pormenor), o TIJ decide, com força obrigatória, três coisas.

Em primeiro lugar, a Rússia deverá, imediatamente, suspender as operações militares iniciadas a 24 de fevereiro de 2022 no território da Ucrânia. Em segundo lugar, a Federação Russa deverá garantir que quaisquer unidades militares regulares ou irregulares que sejam por si dirigidas ou apoiadas, assim como quaisquer organizações e pessoas que possam estar sujeitas ao seu controlo ou direção, interrompam quaisquer operações militares em curso. 

Finalmente, o Tribunal insta ambas as partes (Rússia e Ucrânia) a absterem-se de qualquer ação que possa agravar ou alargar o diferendo perante o Tribunal, ou tornar a sua resolução mais difícil. Sobre os dois primeiros pontos, 13 votos a favor, dois contra. Sobre o último, 15 a 0. Quem votou contra? A resposta não é demasiado difícil, suponho: os juízes russo (Gevorgian) e chinês (Xue).

Nem tudo é mau. Contra muitos palpites (apoiados, é certo, em inércia bastante do Tribunal, por exemplo no caso Geórgia c. Rússia), o Tribunal foi claro, decidiu, e até trabalhou a sua argumentação com base no art. 8 da Convenção do Genocídio. Traduzindo, para não ser demasiado massacrante, a jurisdição da Haia admitiu, pelo menos em tese (acreditem, é bom) que a Federação Russa pode, com a invasão militar contra a Ucrânia, incorrer na prática de genocídio – seguramente, uma das normas imperativas mais imperativas do direito internacional. Pode, repito. Pode. Mas é, ainda assim, um dia bom para quem acredite numa certa ideia de justiça internacional.

Antes de acabar, peço autorização ao leitor para voltar ao tema dos jornalistas num conflito e aos correspondentes de guerra. O cinema alçou-os à glória, na literatura quem pode esquecer Hemingway e a sua relação íntima com a guerra civil espanhola de 1936-39? Quando escreve “Por quem os sinos dobram”, uma das obras mais importantes do séc. XX, ainda é um jornalista de guerra a escrever ou é o escritor a aproveitar aquilo que o jornalista relatou, aliás sem especial imparcialidade? Pode o jornalista ser imparcial quando está convicto de quem é a parte ferida pelo agressor? Não sei, talvez exija que sim, mas sem uma convicção demasiado sólida sobre o assunto.

Deste livro se fez filme, como alguns recordarão. Mas, como disse, outros filmes foram marcantes, pelo momento, pela delicadeza ou brutalidade com que trataram os dilemas de quem se vê envolvido num cenário de guerra.

Recordo “O ano de todos os perigos”, por exemplo. Em que um Mel Gibson 400 anos mais novo assiste à revolta comunista na Indonésia (apoiada, e de que maneira, pela China), à queda de Sukarno e à repressão brutal levada a cabo pelo seu sucessor, Suharto. Sim, esse, depois ainda tristemente conhecido, na pele e na alma, por todos aqueles que lutaram por um Timor-Leste livre e independente. No filme em causa, cujo título vem de uma referência num discurso de Sukarno em 1964 (“vivere pericoloso”) só não perdoo o que fizeram a Linda Hunt, mulher a cem por cento obrigada a fazer um papel de homem (o Billy Kwan do filme), que depois veio a vencer um Óscar pelo melhor papel secundário…feminino.

Depois, fico-me por outro conselho, o “Under Fire” (em português, “Debaixo de Fogo”), de 1983, que aborda os últimos tempos do regime de Somoza na Nicarágua, e, lá está, os limites éticos do jornalismo e as fronteiras que separam o jornalismo da militância que o pode corroer. Também importa referir dois outros aspetos.

Por um lado, sendo ficção, o filme baseia-se numa história real, o assassinato na Nicarágua do jornalista Bill Stewart, da ABC, assim como seu tradutor, Juan Espinoza, pelas forças leais a Somoza, a 20 de junho de 1979 – tendo o episódio sido registado em vídeo e depois divulgado pelas televisões norte-americanas. É certo que isso contribuiu para a queda de Somoza e o acesso ao poder de Daniel Ortega. Só que isso aconteceu nos anos oitenta do século passado. Adivinhem quem esteve no poder de 1979 a 1990 e regressou em 2007, até hoje?

Finalmente, agora sem ficção, uma breve referência a um dos grandes, um dos maiores, um dos enormes: Robert Capa, fotojornalista de guerra, com uma história de vida breve e única. Nascido húngaro sob outro nome, fugido do país no início dos anos 30 para Berlim, onde se inicia, porque sim, na fotografia. Fugido outra vez, agora da Alemanha, com a chegada ao poder de sabem quem e a iminência de uma perseguição que não tardou. E, a partir daí, entre a guerra civil de Espanha e a Indochina, cobriu cinco conflitos sempre em situações que hoje trataríamos como absurdas, pelo risco que comportavam. Algumas das suas fotos são imortais, a começar por aquela que retrata o instante da morte de um republicano, atingido a tiro na cabeça, até outra morte, a do último soldado morto na Segunda Guerra Mundial, uma quase criança que acabara de chegar aos 21 anos e tombou trespassado pela bala de um sniper alemão.

Não foi, mesmo, o último soldado morto na Segunda Guerra Mundial. Mas o génio de Robert Capa assim cristalizou no tempo os seus últimos instantes nesta vida; e, logo a seguir, corpo inerte, pobre marioneta torcida por terra, uma mancha de sangue a alastrar e a invadir a fotografia, como se se movesse e nos agarrasse.

Os feitos de Robert Capa não se ficam, de todo, por aqui. A polémica, a discussão sobre o que fez, também não. Por exemplo, um documentário fantástico feito em Espanha em 2007 (“A sombra do iceberg” coloca em dúvida que seja verdadeira a foto do republicano que tomba para trás, a espingarda já inútil ainda no ar. Que o nome daquele que morreu seja aquele que se disse que era; e mais coisas. Não sei, mesmo que seja tudo isto verdade, ficam umas pelas outras. Em 1944, as fotos do Dia D, por exemplo, ninguém as coloca em causa – e nunca conheci ninguém que se atrevesse, sabendo ao que ia, a acompanhar os tantos que iam tombar em Omaha Beach. Só por essa coragem desvairada, sabemos daquele dia o horror e a coragem que nunca alcançaríamos por quem sobrevivesse e “só” pudesse contar.

Robert Capa, como os jornalistas que tombam na Ucrânia, caiu em 1954, aos quarenta anos, na guerra da Indochina. Pisou uma mina quando procurava um ângulo melhor para que a fotografia fosse boa.

Fosse aquela.


Hemingway, “Por quem os sinos dobram”, Livros do Brasil, reimpressão de 2016

Documentário “A sombra do iceberg” aqui:

Também sobre Robert Capa, veja-se este magnífico “No amor e na guerra”: 

Para o trailer de “O ano de todos os perigos”, ver aqui: 

Sobre o filme “Under fire”, ver aqui:

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