As duas guerras da Ucrânia

1 mai 2022, 15:03

A 7 de outubro de 2001, já lá vão muitos anos, começava a guerra no Afeganistão, a resposta militar de grande envergadura aos atentados terroristas do 11 de setembro. Não o sabíamos, mas esta guerra não ia acabar com a Al-Qaeda. Pensávamos que, se depuséssemos os talibã, era obrigatório que aquela organização terrorista se diluísse: tínhamos decapitado a cabeça que a sustentava.

Erro, ainda nos movíamos de forma muito conservadora (mas era impossível pensar e ter feito muito diferente). Marcados pelo saber de experiências passadas, ignorávamos como atacar de forma eficiente aquilo que desconhecíamos.

Infelizmente, por efeito do medo, deu-nos para a criatividade e a invenção onde devíamos ter estado quietos. Nessa altura aplicou-se, pela primeira vez, aquela que chamo a teoria dos dois conflitos, desenhado pelos Estados Unidos e pré-anunciado ao Conselho de Segurança no início das hostilidades.

No mesmo teatro de operações, o Afeganistão, o primeiro conflito, contra o Estado afegão ou quem o controlava de facto – os talibã. E, em simultâneo, o primeiro episódio da guerra contra o terrorismo (contra a Al-Qaeda). Aplicavam-se regras diferentes. Uns eram combatentes, aos outros não era reconhecido esse estatuto, apenas se dizia que teriam direito a “humanidade”. Num caso, prisioneiros de guerra, no outro, detidos de uma segunda guerra, que só seriam libertados quando a guerra contra o terrorismo acabasse.? Ou seja, provavelmente, nunca.

Do resto da história, sabemos todos pelo menos um pouco. Os talibã foram destroçados, a Al-Qaeda sobreviveu e continuou depois a sua cavalgada brutal até “sabermos” como a enfrentar. 

Mais ou menos vinte anos depois, o travo que nos fica é um pouco amargo. Os talibã lá estão de novo em Kabul, impantes, e deixámos os afegãos à sua sorte nas circunstâncias e forma bem conhecidas (nunca se subestime a forma: pode marcar para sempre a forma como somos vistos por aqueles que, como no caso, tivemos de deixar para trás).

Alcançámos êxitos muito importantes contra a Al-Qaeda e unimo-nos contra o seu sucessor Daesh, de métodos ainda mais horrendos. Mas tivemos e temos Guantanamo e outros desmandos; tivemos o Iraque em 2003 e Abu Ghraib; tivemos o “roadmap” democrático, com os resultados que estão à vista; e, entretanto, nem tudo é mau, os Estados Unidos abandonaram a construção perversa de “um teatro de operações, dois conflitos”. Estas serão, para muitos, detestáveis picuinhices jurídicas, e talvez o sejam. Mas têm enormes consequências.

Agora, na Ucrânia, é cada vez mais claro que se trata, outra vez, de dois conflitos, mas nada que se compare com a teoria dos dois conflitos. Há muito de Direito nisto, mas há, sobretudo, muito de movimentação de grandes placas tectónicas de poder, quase todas convergindo para triturar a Rússia.

A tese é a seguinte. Num primeiro conflito, temos a Ucrânia, fortemente apoiada por Estados Unidos, Europa e outros (Austrália, Japão), a lutar contra a Rússia. Num segundo conflito, temos Estados Unidos, Europa e outros (Austrália, Japão), através da Ucrânia, a lutarem contra a Rússia. A Rússia, como agressor, é protagonista em cada um dos conflitos, e é protagonista da raiva geral. Quanto aos restantes, a Ucrânia é protagonista num dos conflitos, o que nos surge como mais evidente; e nós somos os “participantes” principais dos outros, pedindo à Ucrânia que “finja” que só ela está a combater.

Por conseguinte, dizer-se que na Ucrânia se trava uma “guerra por procuração” (proxy war) é correto, mas insuficiente, porque apaga e diminui o papel dos ucranianos na defesa do seu País; mas dizer-se também, por razões de propaganda, que esta guerra é (só) entre a Rússia e a Ucrânia conduz a uma leitura simplista e também ela insuficiente para se descortinar o tempo e o modo que marcou a evolução da guerra desde o seu início.

Diga-se, muito a correr, que há “outras” guerras em curso, todas relacionadas com o que se passa na Ucrânia, e muitas delas na União Europeia, intramuros – e o seu impacto vai ser muito duradouro. A Polónia, por exemplo, jogou uma cartada decisiva para impulsionar de forma dramática a sua influência em matéria de segurança e defesa, mas não só, na União Europeia e na NATO. O grupo de Visegrado (não posso dizer que tenha vertido uma lágrima que fosse) terá implodido, ou pelo menos sofrido rombos sérios no casco, por efeito do “divórcio” com a Hungria. A Alemanha está a ser pressionada para ser a grande potência europeia também no plano militar, e ainda nos vamos rir. Porque, quando o for, os mesmos que agora clamam vão dar a conhecer a sua preocupação com o militarismo germânico. Enfim, nada que a maravilhosa liberdade de opinião não acomode com aquela complacência que só podem ter as grandes liberdades.

Na guerra propriamente dita, podíamos ter tido uma “fusão” dos dois conflitos? Podíamos, em princípio. Bastava que, logo a início, tivéssemos dito à Ucrânia que contasse connosco, que estaríamos ao seu lado. Legítima defesa coletiva, e pronto.

Essa não foi, e ainda bem, a decisão política. Não fazer nada, era impensável. Fazer “tudo” era impensável, porque colocava em confronto direto as maiores potências nucleares, e uma delas, o agressor, a jogar a sua sobrevivência: não costumam ser as melhores condições para a racionalidade. É verdade que a Ucrânia fez tudo o que podia para nos envolver diretamente a seu lado, para que o conflito, até, deixasse de a ter como centro nodal. Fez o que lhe competia (e fê-lo muito bem) e fizemos nós o que o bom senso impunha (e fizemos muito bem). Mas devemos à Ucrânia a nossa decisão de “participarmos” no segundo conflito, porque só nos aventurámos em frente e redefinimos o que queríamos quando compreendemos que a Ucrânia tinha força para tal.

Só que, em dois planos, a Ucrânia já nos envolveu muito mais do que teríamos suposto nas primícias da guerra: pela resistência feroz perante o inimigo, deixou de ser a coitadinha da Ucrânia e transformou-se num parceiro bélico mais do que credível. E, pela pressão incansável, por uma propaganda tremenda e global, deixou-nos “sem” escolha, mesmo aos mais reticentes. Não chegavam os apoios iniciais, muito contidos, nada “provocadores”, era preciso muito mais. Resultado: a não ser pela ausência de combatentes com uniforme a lutarem ao lado das forças ucranianas, já não sei que mais falte, desde armamento do mais sofisticado a meios cada vez mais adaptados a cada fase que o conflito tem vindo a ter.

Deixe-se também de lado, por algum pudor, a análise mais fina do que sejam os “voluntários” de diferentes Países a combaterem ao lado de cada uma das partes desta guerra. Poucos terão notado, com certeza. Mas o veterano britânico que há dias morreu em combate (pobre rapaz, veterano aos 22 anos) não estava ali por acaso. Tinha sido contratado por uma empresa privada de segurança – eufemismo detestável – que, com toda a certeza, não envolveu os seus ativos naquela guerra por simples amor à causa.

Os objetivos estratégicos dos dois conflitos podem não ser todos coincidentes, embora, do ponto de vista do tempo, confluam. A Ucrânia não quer de todo negociar uma paz que resulte numa qualquer cedência, territorial ou de outra natureza, perante a Rússia. Por isso, já nem responde às propostas do opositor. Nós, não queremos que a Ucrânia negoceie o que quer que seja com a Rússia de Putin, porque sabemos que, a cada dia que passe, a Rússia terá mais dificuldades. A cada dia que passe, será menos “esta” Rússia para o futuro. E, logo, queremos que seja retalhada de vez na Ucrânia. Traduzindo e pondo a coisa em pratos limpos: o conflito vai durar muito mais do que inicialmente seria expectável, porque nenhuma das três partes pode agora largar o osso, perdoe-se a expressão vulgar.

Não pode a Rússia, desde logo, porque, tanto como se julgava que ia acontecer com a Ucrânia, joga aqui a sua sobrevivência como regime. Nunca, por ato de vontade própria, recuará se não puder dizer que ganhou alguma coisa. Nunca a Ucrânia, porque sabe que agora, e de vez, tem as costas quentes, e quem está sozinha e isolada é a Rússia. E nunca nós, porque o nosso conflito vai muito para lá do conflito no terreno. Esta, supomos, terá que ser a nossa “final war” com a Rússia, e só não digo a guerra para acabar com todas as guerras porque o exemplo histórico de onde se retira a expressão não deu grande resultado.

Lembra-me isto, outra vez, “A perfeição do tiro”, de Mathias Enard:

“Caminhámos um pouco junto ao mar, em silêncio, e de repente Myrna perguntou-me:
- Achas que a guerra ainda vai durar muito?
- Não sei. É possível.
- Dir-se-ia que ninguém tem vontade que acabe. Para que terminasse, seria preciso que morressem todos.
Sorri. No fundo, tinha razão.
- Ou que alguém ganhasse – acrescentei. 
- E vais combater enquanto a guerra durar?
- Sim, sem dúvida. Nunca se sabe… a não ser que haja uma mudança.
Não via o que poderia mudar, mas não disse mais nada.
Deteve-se e olhou-me nos olhos.
- Esta guerra, cria-a gente como tu.”

É também tudo isto que explica, por exemplo, os mais do que prováveis pedidos de adesão à NATO de Suécia e Finlândia que, como é evidente, não saíram exclusivamente da sua cabeça. São um risco calculado, e não suicida. E dificilmente terão uma janela de oportunidade tão favorável. Por outro lado, no “nosso” conflito com a Rússia, é mais uma farpa espetada no bicho. Farpa política, é verdade, mas nem por isso menos importante, até pela sua projeção na balança das relações de poder.

No terreno, há um resultado já alcançado, a nosso favor e a favor da Ucrânia. Por muitas baixas que tenha ou possa, infelizmente, vir a ter, a Ucrânia vai doravante ser um Estado com fortíssimas capacidades de defesa. À sua custa e à custa de muito sangue dos seus, nas trincheiras e nas ruas e becos das cidades e povoações, treinada pelos melhores e armada pelos melhores, a Ucrânia sairá deste conflito muito forte. Não vejo, no contexto do nosso continente e perante este tipo de opositor, outro caso recente que sequer se lhe aproxime. Este resultado é bom para a Ucrânia, e é bom para o continente e será bom para quando voltar a paz. Porém, só vai ser conseguido à custa de uma devastação muito significativa do País.

Há, depois, efeitos políticos internos do conflito que a nós interessam, mas que, para Kiev, são de infinita importância. À cabeça, talvez colocasse Azovstal. O batalhão de Azov, já todos o sabem, é muito mais do que uma simples força no terreno, é um dos sustentáculos maiores do esforço de guerra da Ucrânia – como se confirmou quando Volodimir Zelensky (aliás, com especial incómodo para muitos) se fez acompanhar de um elemento daquela organização quando discursou perante o Parlamento grego.

Por esse motivo, o destino dos combatentes daquele batalhão que, ao que parece, estão dentro das instalações da Azovstal é tão especial. Não faltam prisioneiros de guerra ucranianos nas mãos dos russos; não faltam prisioneiros de guerra russos nas mãos dos ucranianos. Já tem havido trocas de prisioneiros. Estes, porém, têm um “estatuto” diferente, e por isso dizem que não se rendem e exigem sair de Azovstal livres e com as suas armas. A exigência não faz sentido do ponto de vista das regras aplicáveis aos conflitos armados, assim como cada vez é menos credível que os civis em Azovstal não queiram sair. É, portanto, uma batalha com regras diferentes, em que cada um finge que acredita na versão do outro. De uma coisa podemos estar certos.

Penso que a Rússia não conseguirá deitar-lhes a mão, mas não quero pôr-me a adivinhar. Porém, se forem feitos prisioneiros pelos russos, essa será uma derrota tremenda para a Ucrânia. Se isso acontecer, as suas caras, origens e tatuagens, nacionalidades e “pecados” serão exibidos pela Rússia. Eles são o troféu de sonho, a desnazificação da Ucrânia em streaming.

Para não me alongar demasiado, uma última questão. Como era inevitável, a confirmação óbvia destes dois conflitos distintos na Ucrânia faz com que cada um apoie o outro; resulta numa escalada dos meios envolvidos que, espero, se saiba quando interromper; transforma os combates numa coisa cada vez mais irredutível e sem limites; radicaliza posições; inviabiliza o diálogo, e terá custos humanitários elevadíssimos.

No fim, o balanço vai ser feito, mas vai ser feito por quem ganhar (é sempre quem ganha que escreve os livros de História). Penso que a Ucrânia vai conseguir, penso que o objetivo de enfraquecer de forma duradoura a Rússia vai ser alcançado. Logo veremos quantas vidas terá sido necessário perder para se chegar a essa meta. Sem esquecer uma coisa, porque não somos observadores fleumáticos e imparciais que apaguem o rasto do tempo: foi a Rússia que, a 24 de fevereiro, decidiu lançar um ataque armado contra a Ucrânia. A partir daí, mudou o seu Mundo, e mudou o nosso.

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