Há crianças institucionalizadas que estão a ser abandonadas na Ucrânia, denuncia Aldeia das Crianças SOS

20 mar 2022, 16:11

A Ucrânia é "um dos países no mundo com o maior número de crianças institucionalizadas em acolhimento residencial". Serão cerca de 100 mil, indica Filipa Morais, diretora da angariação de fundos da Aldeia de Crianças SOS Portugal

Todos os dias, milhares de pessoas tentam fugir da guerra na Ucrânia em direção aos países fronteiriços, como a Polónia e Roménia. São sobretudo mulheres, crianças e idosos, que carregam consigo os poucos pertences que os braços conseguem suportar. À sua espera estão voluntários de várias organizações humanitárias, entre elas a Aldeia das Crianças SOS, que trabalha em diversas frentes para proteger e cuidar de crianças que perderam os cuidados parentais ou que correm o risco de perdê-los. Este já era um problema antes da guerra que se tornou mais preocupante com a invasão russa ao país.

O alerta vem da Aldeia das Crianças SOS Portugal, que, em declarações à CNN Portugal, conta que várias crianças institucionalizadas em acolhimento residencial estão a ser abandonadas na Ucrânia pelo próprio pessoal das instituições.

"Chegou-nos o testemunho das nossas equipas no terreno de que, em algumas instituições, algum staff tinha saído por questões de segurança e, como não podem levar as crianças, fugiram com a sua família e as crianças institucionalizadas ficaram para trás", revela a diretora da angariação de fundos da organização, Filipa Morais.

Noutros casos, acrescenta, o pessoal acabou por ficar reduzido, com a saída de alguns colaboradores, "mas não consegue prestar os cuidados na mesma" pela falta de bens de primeira necessidade.

A Ucrânia é "um dos países no mundo com o maior número de crianças institucionalizadas em acolhimento residencial", cerca de 100 mil, indica Filipa Morais. A probabilidade destas crianças serem retiradas da Ucrânia "é muito menor em relação às outras crianças" com família, acresenta.

"Enquanto uma família pode pegar nas crianças e sair, o que acontece com as crianças institucionalizadas é que estão sob a guarda do Estado. Não é tão fácil, em termos legais, retirarmos estas crianças", explica.

Famílias de acolhimento na fronteira da Ucrânia (Fotografia: Aldeias de Crianças SOS)
Criança viaja de Kiev para Siedlce, Polónia (Fotografia: Aldeias de Crianças SOS)

Das cerca de 100 mil crianças institucionalizadas, prossegue, "70 mil encontram-se nas cidades da Ucrânia com conflitos iminentes", de onde "é praticamente impossível" conseguir retirá-las em segurança. "A verdade é que não há verdadeiramente um cessar-fogo e acabam por ocorrer tiroteios, e já aconteceu crianças morrerem nessas tentativas de evacuação", conta Filipa Morais.

A Aldeias de Crianças SOS Portugal alerta que estas crianças, por estarem desacompanhadas e sem documentos de identificação, estão mais suscetíveis ao risco de "de negligência e violência". São alvos fáceis para a atuação de redes criminosas de tráfico humano – situações que têm vindo a ser denunciadas por várias organizações internacionais. É necessário, por isso, "um maior controlo nas fronteiras", defende Filipa Morais, apelando a um maior esforço por parte dos governos dos países fronteiriços e da União Europeia.

De acordo com a responsável, a Aldeia de Crianças SOS está a trabalhar num "plano de evacuação" destas instituições localizadas nas cidades mais atingidas pelos bombardeamentos. "O nosso foco é que essas crianças sejam realocadas para outro local mais seguro dentro da Ucrânia", sublinha. 

Mas "é necessário medir o risco entre estar num sítio onde não há segurança, onde não há comida e não há água, e arriscar a própria vida para [as crianças] serem retiradas" no meio de bombardeamentos.

Bunker na Aldeia de Crianças SOS em Brovary, Ucrânia (Fotografia: Aldeia de Crianças SOS)
Crianças num bunker em Brovary, Ucrânia (Fotografia: Aldeias de Crianças SOS)
Crianças num bunker em Brovary, Ucrânia (Fotografia: Aldeias de Crianças SOS)

Nova lei da Ucrânia exige regresso das crianças que saem do país

De acordo com Filipa Morais, a Ucrânia adotou recentemente uma nova lei que refere que as crianças que saírem do país na sequência da guerra devem regressar quando o conflito terminar. "Ficámos a saber que tem de haver um acordo bilateral entre o governo da Ucrânia e o governo que vai acolher estas crianças, e uma das condições é exatamente as crianças voltarem à Ucrânia depois de a guerra terminar e assim que houver condições de segurança", revela.

Para a responsável, esta é uma boa notícia, uma vez que garante uma "maior segurança" no processo de acolhimento. E sublinha a palavra acolhimento, lembrando que não se trata de um processo de adoção, até porque "a maior parte destas crianças não são órfãs" –  92% destas 100 mil crianças institucionalizadas têm pai ou mãe, precisa. "Não estão com eles [os pais] por algum motivo mais grave, mas não são crianças para adoção".

"Todos os dias atendemos chamadas e recebemos e-mails de pessoas que querem acolher crianças ucranianas", conta, salientando que as organizações humanitárias, incluindo a Aldeia de Crianças SOS, não têm responsabilidades nesta matéria, que cabe apenas ao Estado. "Qualquer processo de acolhimento tem de passar obrigatoriamente pelas entidades competentes, isto é, pela Segurança Social", acrescenta. 

Além disso, prossegue, é importante perceber que estas crianças, que já lutavam contra o trauma que as levou para as instituições onde se encontram, lutam agora contra o trauma de assistir, de perto, a uma guerra no seu país, e, por essa razão, precisam de ser acompanhadas por profissionais que as orientem da melhor forma.

"Não desfazendo o carinho que as pessoas podem dar, que é extremamente importante, tem de haver um acompanhamento de profissionais da área de psicologia, educadores sociais, entre outros", argumenta.

A atuação da Aldeias de Crianças SOS na Ucrânia

No dia anterior à invasão russa da Ucrânia, a Aldeias de Crianças SOS estava a apoiar duas mil pessoas no país. Hoje, passadas três semanas do início do conflito, a organização não consegue precisar o número de famílias e crianças que apoia.

Nos próximos tempos, porém, a Aldeias de Crianças SOS estima apoiar "quase 500 mil pessoas", não só no pós-guerra imediato, mas contando também com as consequências a longo prazo do conflito, que deverão estender-se a outros países, sobretudo os que fazem fronteira com a Ucrânia e estão a receber os milhares de refugiados que todos os dias tentam fugir da guerra.

Nesse sentido, a Aldeia de Crianças SOS Portugal criou um fundo de emergência destinado a apoiar as equipas que estão a trabalhar na região, de forma a garantir a deslocação e abrigo, a compra de medicamentos, produtos de higiene e alimentos e apoio psicológico. De acordo com Filipa Morais, "80 a 90% dos fundos angariados irão diretamente para as Aldeias de Crianças SOS da Ucrânia e os restantes para os países que tiverem de se readaptar para receber famílias e crianças" daquele país.

As Aldeias SOS são compostas por condomínios onde crianças e jovens vivem com um cuidador de referência e permanecem junto dos seus irmãos biológicos. Além do programa de acolhimento, a organização atua também na área da prevenção, com a promoção do Programa de Fortalecimento Familiar, que intervém com famílias biológicas, capacitando-as para um cuidado protetor do bem-estar das suas crianças, de forma a prevenir, assim, a sua  institucionalização.

Crianças de Odessa, Ucrânia, brincam numa Aldeia SOS em Bucareste, Roménia (Fotografia: Aldeias de Crianças SOS)

 

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