Crianças em estado terminal fogem de uma Kharkiv destruída pela guerra num comboio médico improvisado

CNN , Arwa Damon, AnneClaire Stapleton e Alex Platt
16 mar 2022, 08:30
Bombardeamento no centro de Kharkiv, na Ucrânia (Getty Images)

A pediatra Szuszkiewicz recebeu, ao longo de vários dias, telefonemas de pais desesperados com crianças presas em Kharkiv. O pedido de ajuda dos pais chegava ao mesmo tempo que as bombas caíam em seu redor. Uma mãe gritava que, sem um ventilador e analgésicos, o seu filho morreria

A equipa médica não sabe o que esperar quando ouve o ranger dos travões e o comboio para na escuridão, perto da fronteira entre a Ucrânia e a Polónia, em território ucraniano. Os faróis de um autocarro avançam lentamente. Eugenia Szuszkiewicz sente a ansiedade a enrolar-lhe o estômago.

Os níveis de stress da médica estão altíssimos. Este é um percurso perigoso para crianças que, no melhor dos casos, precisam de cuidados paliativos. Agora, 12 dessas crianças têm de o fazer em clima de guerra.

Os corpos pequenos e frágeis são sustentados pelos braços cansados das mães uma última vez enquanto descem do autocarro. Alguns são cuidadosamente entregues a médicos e enfermeiros que os esperam. Para outros, a sua saúde é demasiado delicada e exige uma ajuda extra para transportá-los em segurança para o comboio que os levará à Polónia.

A equipa médica espera conseguir fazer com que nenhuma das crianças sinta mais dores - sejam emocionais ou físicas. Uma das crianças encontra-se num estado tão grave que os médicos dizem-nos que talvez não sobreviva à viagem.

A equipa médica pede-nos para ficarmos longe e para não filmarmos nem tentarmos falar com alguém até que as crianças estejam estáveis. Uma por uma, são cuidadosamente colocadas em 12 pequenas esteiras a apenas alguns centímetros do chão.

Das 12 crianças, 11 vieram de hospitais residenciais da região de Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia, em tempos reconhecida por ter os melhores cuidados paliativos do país. Agora é uma das áreas mais bombardeadas do país, com as forças russas a atacarem zonas residenciais na última semana, atingindo infraestruturas civis como escolas, lojas, hospitais, blocos de apartamentos e igrejas.

Ao longo de vários dias, Szuszkiewicz - uma pediatra e especialista em cuidados paliativos - recebeu telefonemas de pais desesperados com crianças presas na zona de Kharkiv. O pedido de ajuda dos pais chegava ao mesmo tempo que as bombas caíam em seu redor. Uma mãe gritava que, sem um ventilador e analgésicos, o seu filho morreria.

“Eu só lhe podia dizer que se ela arranjasse forma de chegar a Lviv (no oeste da Ucrânia), eu conseguiria ajudá-la”, diz Szuszkiewicz, com a voz a falhar e as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto.

Continua sem saber se a mãe e a criança estão vivas.

Uma viagem agonizante

A bordo do comboio para a Polónia, Ira acaricia os dedos contraídos da sua filha.

“Sim, querida, vai ficar tudo bem”, diz a Victoria, de seis anos. Faz uma pausa. “Acho que vai ficar tudo bem.”

Victoria tem paralisia cerebral e não consegue andar. A sua mãe, Ira, disse-nos que é um “milagre” terem conseguido entrar no comboio. “Foi inacreditavelmente difícil sair”, diz.

Para entrar no comboio médico, Ira teve primeiro de viajar da sua aldeia nos arredores de Kharkiv para a cidade de Lviv, onde foi pedido às famílias que se reunissem. Ira embalou Victoria nos braços durante grande parte dos três dias que demorou a lá chegar, perante o pânico de outras pessoas que tentavam fugir e de comboios tão lotados que nem conseguia tirar a filha do colo.

Victoria, de seis anos, viajou para a Polónia num comboio acompanhada pela sua mãe, Ira 

Victoria abre um sorriso enorme que lhe ilumina os olhos cada vez que ouve o seu nome, mesmo que abafado pelas lágrimas da mãe.

“Ela sorri a toda a gente. Porque, no caminho para cá, só nos cruzámos com pessoas gentis e solidárias”, diz Ira.

Esta viagem fez com que Ira amasse ainda mais o seu país - como se fosse possível. Só torna ainda mais difícil a saída, acrescenta.

“Mesmo quando não estás à espera de ajuda, toda a gente ajuda. Eles (estranhos na viagem de comboio para Lviv) deram-nos comida, bebida, um tecto sobre as nossas cabeças, acompanharam-nos, guiaram-nos", conta.

“Não sei como tive força nas pernas”, diz, acrescentando: “É só porque ela (Victoria) é forte. Ela está a ajudar-me, está a dar-me força, creio.”

“Ela sem mim não sobrevive. Eu sei disso”, acrescenta.

Um hospital sobre rodas

Há cerca de 200 crianças em cuidados paliativos só na região de Kharkiv, de acordo com Szuszkiewicz.

Inicialmente, Szuszkiewicz tentou organizar um comboio ou um transporte terrestre até Kharkiv. Mas isso revelou-se impossível. Era muito perigoso, a cidade estava praticamente cercada. Em vez disso, as famílias tiveram de arranjar forma de chegar a Lviv, antes que ela conseguisse organizar um transporte rumo a um lugar seguro na Polónia.

Entrou em contacto com os diretores dos hospitais locais que compilaram uma lista de quem queria sair e de quem tinha hipóteses realistas de o fazer. Os pais de crianças ligadas a ventiladores não tiveram escolha - os seus filhos não sobreviveriam à longa viagem. Outros estavam demasiado doentes para o tentar.

Alguns decidiram arriscar de qualquer maneira. Szuszkiewicz diz que alguns pais lhe disseram que preferiam morrer na estrada do que debaixo de uma bomba.

Szuszkiewicz foi a principal organizadora, mobilizando uma rede de profissionais de saúde na Ucrânia para ajudar a transportar toda a gente até ao ponto de encontro em Lviv. No total, foram retiradas cerca de 50 pessoas.

O governo polaco e o Hospital Clínico Central de Varsóvia transformaram várias carruagens de comboio numa enfermaria médica improvisada, incluindo um bloco operatório.

Szuszkiewicz diz que assim que chegou e se aproximou do autocarro, disse: "Estamos aqui, em breve estarão a salvo, vamos retirar-vos deste país em guerra... Podem relaxar." Foi recebida com um misto de desconfiança e alívio.

Agora, “há muitas palavras de gratidão, há alegria, há esperança para a vida”, diz Szuszkiewicz.

Szuszkiewicz senta-se com Sophia, de seis anos, que agarra um brinquedo que lhe foi dado por voluntários no comboio.
As crianças recebem cuidados médicos no comboio

“Cada um destes pais diz que deixaram a sua cidade de Kharkiv apenas temporariamente, que todos irão voltar quando for possível, que irão reconstruir aquela cidade do zero assim que a guerra parar, assim que puderem voltar a viver na cidade. Dizem-no com um amor enorme à sua pátria", conta.

A médica está habituada à gratidão: tem ouvido pais a agradecerem-lhe por salvar os filhos. Mas desta vez, diz, é diferente, as palavras têm uma intensidade diferente para eles.

À medida que o comboio atravessa a Ucrânia rumo à Polónia, Ira recebe um vídeo de um vizinho em Kharkiv.

“Eles disseram que toda a cidade foi destruída no espaço de uma hora”, diz com a voz trémula e os olhos plenos de lágrimas.

“Não há uma única casa de pé. Percebe? Nem uma única casa. Está tudo reduzido a um monte de tijolos. Não é guerra, é extermínio. Extermínio do povo", diz.

Ira tenta ligar ao marido, à mãe, ao pai, à irmã. Ninguém atende.

“Aquilo que acontece dentro de uma pessoa quando toda a sua vida se está a desmoronar... Não se torna a vida de outra pessoa, uma pessoa...” a sua voz desvanece. “Uma pessoa não quer acreditar.”

Quando o comboio chega a Varsóvia, as luzes azuis brilhantes das ambulâncias refletem nas janelas. Não estão a sinalizar uma emergência médica, e não vêm em resposta a uma bomba. É sinal de que chegaram, para salvarem o que resta da vida dos seus filhos.

Anna Odzeniak contribuiu para este artigo

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