Refugiados menores: como proteger as crianças dos riscos que correm depois de fugirem da guerra

14 mar 2022, 18:30

Estão a chegar a Portugal crianças e jovens ucranianas sem os pais, uns para ficarem com familiares outros acolhidos por instituições. Que respostas existem para estes menores? O Governo acabou de criar uma plataforma eletrónica e um grupo de trabalho interministerial para facilitar a sinalização e acolhimento

Pelas fronteiras da Europa estão a passar milhares de crianças. Umas estão acompanhadas pelos pais, ou pelo menos com a mães, outras são enviadas para viverem com familiares. Além disso, há cada vez mais pessoas que nos últimos dias que, perante as imagens devastadoras dos refugiados, querem ajudar e se têm oferecido para receber e jovens menores. No entanto, acolher uma criança refugiada não é assim tão fácil. 

Antevendo um número crescente de refugiados menores desacompanhados - é esse o termo usado internacionalmente – o Alto Comissariado para os Refugiados já pediu a quem trabalha no terreno que procure candidatos a famílias de acolhimento, apurou a CNN Portugal. A ideia é que todos estes acolhimentos respeitem as regras e não sejam feitos à margem do sistema. 

Carmo Belford, jurista  do JRS - Serviço Jesuíta aos Refugiados, explica que as dificuldades do acolhimento de menores desacompanhados começam logo na fronteira: "O ideal é que os pais assinem uma autorização para as crianças  viajarem com outra pessoa e, no caso de virem ter com o familiar, também devem passar uma declaração de tutela. No entanto, sabemos que numa situação de guerra isso raramente acontece. Portanto, são as ONG que trabalham no terreno e que acolhem os menores na fronteira que devem assegurar-se que elas só viajam em absoluta segurança, porque existe o risco de caírem em redes de tráfico humano, por exemplo." O mesmo cuidado deve ser tido por todos aqueles que forem buscar refugiados e que só devem trazer pessoas que já tenham sido identificadas e referenciadas pelas associações locais.

Essa mensagem é reforçada por Sofia Marques, coordenadora do Sistema de Proteção e Cuidado da Companhia de Jesus: "As viagens para trazerem refugiados só deviam ser feitas por organizações públicas. Essas iniciativas individuais acarretam muitos riscos, para quem vai buscar as crianças mas também para quem vem. Temos de garantir a segurança de todos", diz.

E sublinha: "Estão a chegar crianças sem documentos, algumas são ainda muito pequenas, nem sabem dizer o seu nome. Isto significa que, para além de todos os perigos, estas crianças correm ainda o risco de perder a sua identidade. De não conseguirem reconstruir a sua história nem saber que é a sua família. E é claro que perante uma guerra e o risco de perder a vida isto pode parecer um mal menor, mas é muito importante que, dentro do possível, tentemos manter a identidade das crianças e manter em aberto a possibilidade de eles voltarem para o seu país e para a sua família."

Governo criou plataforma e grupo de trabalho só para estes casos

Portugal não tem até hoje sinalizada a chegada ao país de menores não acompanhados oriundos da Ucrânia, garantiu esta segunda-feira a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho. 

No entanto, reconhecendo a gravidade do problema e para facilitar o processo de identificação e acolhimento destas crianças, o Governo acabou de criar uma plataforma eletrónica de registo de casos de menores não acompanhados. Para além da sinalização de todos os casos, a plataforma permite o levantamento de disponibilidades de acolhimento temporário, bem como a identificação de ações voluntárias de transporte para território nacional. Foi também criado um serviço de esclarecimento de dúvidas, através do email: childcare.ukraine@seg-social.pt, que será brevemente complementado com uma linha telefónica de apoio.

Além disso, o Governo criou um grupo especial de acompanhamento deste tema, com equipas do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, do Ministério da Justiça, do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) e do Alto-Comissariado para as Migrações. "É essencial reforçar a importância da identificação de todas as crianças que se encontrem nesta situação, quer estejam já em Portugal ou em trânsito, a fim de garantir a sua segurança e plena proteção, bem como o acesso a todos as valências de apoio existentes no país", diz o Governo no comunicado.

“Não temos ainda sinalização de menores não acompanhados, mas queremos exatamente é prevenir que as crianças estejam desprotegidas e, portanto, a nossa preocupação total é essa: garantir que temos um sistema de acompanhamento e de proteção das crianças e também de identificação de famílias que estejam disponíveis para acolher crianças de uma forma acompanhada e controlada”, afirmou a ministra, disse, estimando que, entre os ucranianos que já chegaram a Portugal, cerca de 20% sejam crianças, “o que não significa menores não acompanhados”.

Com familiares, em famílias de acolhimento ou em instituições

A situação dos menores que viajam desacompanhados e que vêm ter com familiares "pode levantar vários problemas", alerta à CNN Portugal uma pessoa que trabalha numa associação de apoio a refugiados. Na urgência de fugir de uma guerra e de tentar salvar os seus filhos, alguns pais enviam crianças e jovens para Portugal para virem ter com familiares. Essa pode ser a melhor solução imediata. Mas é preciso lembrar que essa pessoa não tem qualquer responsabilidade legal sobre o menor. Se houver um acidente ou se a criança ficar doente, quem será responsável? E se esse adulto morrer, quem fica com a criança? E se? "As pessoas têm muito boa vontade e é óbvio que querem acolher os sobrinhos e os primos. Toda a gente acha que isto é temporário, que as crianças vão voltar um dia para o seu país ou que a mãe vai chegar dentro de algum tempo, e esquecem-se que, entretanto, é preciso encontrar um enquadramento legar para estes menores."

Carmo Belford explica que a sinalização destes menores é feita no momento em que pedem a proteção temporária para legalizarem a sua presença em Portugal. Nestes casos, normalmente, as crianças podem ficar com o familiar enquanto ele ainda não é oficialmente nomeado como tutor mas as autoridades continuam a acompanhar muito de perto a situação.

No casos dos menores que vêm sozinhos, sem qualquer familiar em Portugal, "o processo de acolhimento tem de passar sempre pela Segurança Social", explica esta jurista. "Nós, JRS , não o fazemos esse acolhimento. Quando detetamos um caso desses sinalizamo-lo logo à Segurança Social", diz.

Algumas organizações que trabalham nesta área estão já à procura de candidatos a famílias de acolhimento. São muitas as pessoas que, nos últimos dias, perante as imagens devastadoras dos refugiados, querem ajudar e se têm oferecido para acolher crianças ucranianas. Estes candidatos são depois avaliados pelo Instituto de Segurança Social que coordena todo o processo.

"Existem muitas questões aqui que temos de considerar", diz-nos outra pessoa, que já trabalhou com o acolhimento de menores refugiados da Síria e que está agora envolvida no acolhimento de menores ucranianos. "Numa situação destas, sabemos que as redes de tráfico de menores são muito rápidas e já devem estar no terreno. As autoridades têm que estar muito atentas e agir depressa para proteger as crianças e jovens. Mas, por outro lado, o acolhimento de menores tem de ser feito com muito cuidado. Não podemos entregar as crianças a qualquer pessoa - seja um familiar ou não. É preciso ter a certeza que elas vão ter condições, que vão ser bem tratadas, que irão para a escola, que não vão ser exploradas nem abusadas. Estas crianças já passaram por muito, temos de garantir que não vão ter mais dificuldades."

"É fantástico ver todo o movimento da sociedade civil, a generosidade é imensa. Mas este é um processo muito exigente. A Segurança Social demora geralmente seis meses a avaliar uma família para acolhimento, mesmo que se arranje um processo simplificado, mais célere, há garantias míminas que temos de ter", afirma Sofia Marques. "Não são só as condições sócio-económicas, é preciso perceber também se há capacidade para acompanhar estas crianças, como vai ser a sua integração. São crianças que estão num país estranho, que não falam a nossa língua, que estão traumatizadas. Precisam de uma estrutura."

A coordenadora do Sistema de Proteção e Cuidado alerta para o facto deste acolhimento de emergência se poder prolongar durante vários meses: "Existe este impulso de ajudar, mas temos de estar preparados para proteger estas crianças para além do impulso. A comunidade vai ter que ser resistente e persistente."

Por tudo isto, "para já, o acolhimento familiar só pode ser possível com famílias que já estejam certificadas pela Segurança Social.O mais provável é que, num primeiro momento, as crianças que cheguem sem família sejam colocadas em instituições", explica a advogada Joana Alves de Oliveira, que trabalha com a Associação de Defesa  dos Direitos Humanitários, sublinhando ainda que existem procedimentos diferentes para os menores que pedem asilo e para os que chegam no âmbito do protocolo de proteção temporário, como é o caso da maioria dos ucranianos.

O Conselho Português de Refugiados é a entidade que em Portugal acolhe as pessoas que pedem asilo internacional. À CNN Portugal, Mónica Frechaut garante que até agora ainda não chegou nenhum menor ucraniano desacompanhado nesta situação.

Como é que Portugal costuma lidar com os refugiados menores?

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) define menor desacompanhado como todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo, que está separado de ambos os pais e não está a ser cuidado por nenhum adulto que, pela lei ou costume, tem responsabilidade para o fazer.

A Alta Comissária para as Migrações (ACM), Sónia Pereira, garantia na quinta-feira na TVI, que há já "um mecanismo preparado para acolher crianças e jovens menores não acompanhados que chegam ao nosso país".

"Se num desses transportes chegar uma criança que vem acompanhada por um adulto que não tem responsabilidade legal sobre ela, à entrada em Portugal terá que ser registada como menor não acompanhada e entra na alçada do Instituto da Segurança Social (ISS), que tem a responsabilidade em Portugal de coordenar o acolhimento dessas crianças e desencadear todos os procedimentos para o seu acompanhamento", explicou. "Nós felizmente já criámos alguma massa crítica em termos de procedimentos nessa área com o acolhimento que fizemos de menores vindos da Grécia e existe já uma estrutura de acompanhamento a este tipo de perfil."

Segundo Sónia Pereira, estas crianças terão todos os direitos que qualquer outra criança portuguesa que, por algum motivo, esteja afastada da sua família. "Aquilo que é diferente é ser uma criança migrante e nós termos criado um mecanismo partilhado entre o ISS e o ACM - criou-se uma resposta especializada para crianças que são migrantes e estrangeiras e que chegam ao nosso país com essa particularidade de não serem acompanhadas por um adulto, o que quer dizer que vão ter de entrar no nosso sistema de promoção e proteção e depois hão de ter um tutor que se responsabiliza por essa criança em território nacional." Têm, portanto, "um atendimento diferenciado, ajustado às suas necessidades."

As decisões passam todas pelos tribunais

No caso dos menores desacompanhados cabe ao Ministério Público instaurar um processo de promoção e proteção de menor, explica à CNN Portugal Nuno Cardoso Ribeiro, advogado especialista em direito familiar. "Qualquer decisão sobre o futuro destes menores terá de ter sempre a cobertura de uma decisão judicial, tomada por um Tribunal de Menores, nos locais onde os houver, ou por outro tribunal, "por referência à lei de proteção de crianças e jovens em perigo, que se aplica a todos menores em Portugal, mesmo os que não sejam portugueses".

"Em cada caso, o tribunal decide qual a melhor medida a instaurar", explica o advogado. As medidas podem passar por entrega a uma instituição, a uma família de acolhimento ou a "pessoa idónea". 

Os menores terão, depois, de continuar a ser acompanhados pelos serviços da Segurança Social ou pelos técnicos da Santa Casa da Misericórdia. "As medidas serão revistas periodicamente. O tribunal pode ainda decretar alguma outra medida complementar, como um apoio psicológico ou financeiro."

O grande problema destes processos é serem geralmente muito morosos. "Parece-me essencial que se tomem decisões rápidas, com medidas cautelares, ainda que provisórias, para garantir a segurança de quem acolhe e, sobretudo, de quem é acolhido", afirma Sofia Marques, sublinhando a importância de o Ministério da Justiça fazer parte do grupo de trabalho, agora criado, na procura de uma resposta a este "estado de necessidade".

De acordo com a legislação portuguesa, "o menor, que seja considerado refugiado, deve ser colocado junto de familiares se possível; ou na falta destes, em famílias de acolhimento, em centros de alojamento especializados ou em locais que disponham de condições para o efeito. A estabilidade de vida deve sempre ser tida em consideração e as mudanças de local de residência devem ser minimizadas. É ainda responsabilidade das entidades da Administração Pública garantir o acesso a serviços de reabilitação, assistência psicológica ou outro apoio qualificado a menores vítimas de abuso, negligência, exploração, tortura, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes ou de conflitos armados", explica Joana Marta num artigo publicado em dezembro do ano passado pelo Observatório das Migrações. 

Os menores desacompanhados só podem ser repatriados para o país do qual são nacionais, ou para um país terceiro, se existirem garantias que irá ser proporcionado acolhimento e assistência adequada. Além disso, devem ser feitas todas as diligências para estabelecer a identidade e nacionalidade do menor não acompanhado, localizar a sua família e garantir a sua representação legal. Em qualquer caso, são sempre responsabilidade do Estado.

Desde o início do conflito na Ucrânia, Portugal já recebeu 5.775 pedidos de proteção temporária de refugiados ucranianos. Mas é provável que o número de ucranianos que chegaram a Portugal seja bastante superior. Apesar de as autoridades estarem a receber os autocarros e aviões fretados para o efeito e de estarem a trabalhar de perto com as instituições que estão a receber refugiados, há também pessoas que chegam, pelos mais diversos meios, sobretudo para virem ter com familiares e amigos e que acabam por escapar ao controlo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. E entre elas, estão crianças e jovens e menores 

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