Ucranianos, é para o vosso bem (diz a Rússia)

25 fev 2022, 18:49

“A decisão de realizar uma operação de desmilitarização e de desnazificação da Ucrânia foi tomada para libertar os ucranianos da opressão e permitir-lhes que escolham o seu futuro.” A frase é do ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, e corresponde, mais coisa menos coisa, ao teor da intervenção de Vladimir Putin quando anunciou o início da agressão contra a Ucrânia. Também é importante ouvir o que o mesmo Lavrov declarou perante a pergunta o mais direta possível de um jornalista da CNN que está em Kiev (ver link no fim do texto): a intenção da Rússia é decapitar as atuais chefias ucranianas?

A resposta não foi menos direta e até brutal. Lavrov nunca disse sim, mas é claro que disse sim. A Ucrânia, no seu entender, está dominada por duas coisas más, externas e internas, que a impedem de decidir livremente: o ocidente e os Estados Unidos, por um lado; e os neonazis, por outro. Por conseguinte, a “operação militar especial” não foi contra a Ucrânia, mas antes para proteger a Ucrânia e os ucranianos de uma especial incapacidade de se defenderem das más influências. No fundo, aquilo que parece uma agressão (e é uma agressão) não pode ser assim encarado: é, pelo contrário, o gesto protetor e paternal do pai severo, mas bondoso, que dá uma reprimenda ao filho tresmalhado para o fazer voltar ao bom caminho. A Rússia, portanto, está a ser a força libertadora da opressão e extremismo que se apoderaram do poder na Ucrânia.

Só que…não.

A ação militar russa não garante o direito de autodeterminação da Ucrânia, viola-o de modo frontal, por eliminar a independência política de um Estado soberano. A imposição de uma nova chefia política será, sempre, um ato de força, e não a expressão da vontade livre de um povo. E só sobreviverá, como é fácil de antecipar, pela força das baionetas. O que a Rússia diz, olhos nos olhos, à comunidade internacional é que os ucranianos serão “livres” nas condições definidas pelo “protetor”, mas não nos termos em que o pretendam (aquilo que está pressuposto na determinação livre de um destino coletivo). Os ucranianos são, por isso, “menores” aos olhos “desta” Rússia, não sabem como viver de forma evoluída.

É curioso como esta construção é muito próxima daquela que, em pleno período colonial, era feita dos territórios “não-autónomos”. É isso mesmo: ao invadir a Ucrânia, a Rússia trata os ucranianos como um dos povos “que ainda não se governam a si mesmos”, e aceita o sacrifício, a “missão sagrada”, de velar pelo seu bem-estar. Era assim que o art. 73 da Carta das Nações Unidas descrevia as colónias, e depressa esta forma de ver foi destroçada pelos processos de descolonização. A Rússia, então, volta quase oitenta anos para trás. E aplica, agora, a “receita” que já no passado estava ultrapassada a um Estado soberano. Está tudo dito.

Para quem queira ouvir a resposta de Serguei Lavrov: https://edition.cnn.com/videos/world/2022/02/25/russian-fm-presser-sergey-lavrov-aqa-intl-hnk-vpx.cnn

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