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Membro da Direcção da Ordem dos Psicólogos Portugueses

Psicologia em tempo de guerra. Putin: 5 centímetros de altura fictícios, 30 anos de medo real

7 mar 2022, 15:07

"Psicologia em tempo de guerra", uma rubrica para ler no site da CNN Portugal

“O medo é um catalisador de bom senso.” São estas as palavras que H. Malmgren, ex-conselheiro de vários presidentes dos EUA, guarda de uma conversa com Putin em 1992 em que este lhe explicou como, na ausência de uma lei sobre direitos de propriedade, os litígios eram rapidamente resolvidos na Rússia com um jantar entre representantes armados de cada uma das partes litigantes, dispensando anos de desnecessárias disputas jurídicas. Mais tarde, Putin utilizaria argumentação semelhante relativamente a conflitos entre países para os quais a solução, a seu ver, resultaria do medo gerado pela possibilidade de respostas desproporcionais ao conflito por uma ou pelas partes.

Num pequeno texto, Malmgren conta-nos como Putin usa esta emoção natural (medo) como veículo de pressão em conflitos e disputas e como racionaliza a sua utilização, apresentando-a como estímulo ao bom senso.

Quando extremo, o medo paralisa como porventura saberemos por já o havermos experienciado e sentido. Interfere negativamente na vida de pessoas, grupos e comunidades e faz-nos sentir presos, encurralados e indisponíveis para prosseguirmos actividades e projectos de vida, para nos cumprirmos e realizarmos. O medo extremo comporta sofrimento psicológico e partilha com o sofrimento psicológico o agrilhoar da pessoa a um presente que é marcado pelo passado e nos impossibilita, pela ansiedade, de nos libertarmos para um futuro diferente. O medo usa do passado para impactar o presente e o futuro, podendo determiná-lo.

Apesar do seu papel primordial de protecção, o medo não sendo normalmente racional, é, não raras vezes, utilizado e instrumentalizado junto de pessoas ou grupos por pessoas ou grupos que se percepcionam em “vantagem” (superioridade) mas também por pessoas ou grupos que se percepcionam em “desvantagem” (inferioridade).

A utilização do medo como estratégia ou “arma” possibilita, pelas suas consequências e impactos opressores, o enfraquecimento do(s) outro(s). Pode ainda, paralelamente, garantir atenção e espaço mediático pela sua diluição em várias dimensões da vida das pessoas e das sociedades. Assim é quando um atentado provoca terror junto da população. Assim é quando um grupo como o Estado Islâmico mostra imagens que horrorizam e atemorizam a população. Assim é quando Putin ameaça, agride (física e psicologicamente) ou invade.

Putin apresenta-se ao Mundo como medindo 170 centímetros mais, pelo menos, 5 cm do que efectivamente medirá. Simbolicamente tem como grande referência Pedro, o Grande, imperador russo, fundador da sua São Petersburgo natal e responsável pela modernização e reforma do país na transição do século XVII para o século XVIII. Usa (e abusa) da história (da sua visão e interpretação da história) para, no que se intitula de uma “guerra híbrida” - usando das novas tecnologias de informação e comunicação, incluindo os media e a diferenciação e personalização de mensagens e ataques - impactar a vida de um número cada vez mais significativo de pessoas e grupos. Usa das vulnerabilidades de líderes políticas e políticos que o seguem (ainda hoje), pelo que representa no questionar de um certo progressismo social, de uma ordem democrática liberal ou em virtude as condições e apoios que lhes concede. Usa das vulnerabilidades de pessoas que sofrem com a pobreza, a precariedade, a migração forçada, a exclusão e/ou outras condições que as tornam mais suscetíveis e vulneráveis à sua propaganda da ideia de um Mundo que necessita de uma grande, influente e extensa Rússia. Usa, finalmente, da incompreensão generalizada que, do outro lado da guerra, não se encontra a ausência de guerra, mas a Paz - Paz essa impossível quando existe qualquer tipo de violência, agressão, opressão e/ou deslegitimação.

 

Sabe-se hoje que, forçadamente ou por seu desejo, Putin viveu particularmente isolado durante os últimos dois anos de pandemia. Menos exposto à diferença, à diversidade, ao contraditório, terá aprofundando e sido reforçado na narrativa histórica que construiu. Durante esse período, também certamente percepcionando “janelas de oportunidades” no momento que vivemos, intensificou a propaganda e a utilização da desinformação e da destabilização de países e governos, bem como publicou um marcante ensaio sobre uma pretensa “unidade histórica de russos e ucranianos” que na sua visão se consubstancia num “único povo” hoje não cumprido pela criação artificial de um território que tende, se não a não legitimar, a não totalmente reconhecer – a Ucrânia. Retorna, portanto, ao ideal e ao movimento identitário de não reconhecimento do outro e da diversidade, hoje politicamente em voga num Mundo e numa Europa demasiado necessitados de respostas simples, fortes e, por vezes, salvíficas para os muitos e muito complexos desafios societais contemporâneos.

 

Conforme a ciência psicológica pode contribuir para a compreensão de fenómenos como o medo, a solidão/isolamento, o encerramento e o efeito de “bolha” de grupos fechados ou a percepção das forças/fraquezas/vulnerabilidades, também, pode (e deve) contribuir para a sua prevenção e para a construção da Paz. Mais do que a partir de um modelo tendencialmente biomédico, de procura das doenças (incluindo mentais) do líder, que possam neste caso justificar as acções e intenções do regime russo, precisamos de pensar a grave crise e a guerra que vivemos considerando dimensões psicológicas e sociais.

Considerando que, factualmente, a guerra não é uma inevitabilidade, embora também não seja uma impossibilidade. Considerando que é hoje claro que é cientificamente incorrecto que os seres humanos tenham uma predisposição inerente para o comportamento agressivo, para a resolução violenta de conflitos ou para a guerra. Enfatizar essa incorrecção deve ser o pilar base para a promoção da convivência, dos relacionamentos entre pessoas e grupos e da Paz. Considerando, ainda, que é incorrecta qualquer percepção de que o tempo e a sua passagem, por si só, resolverão traumas passados, sejam eles pessoais ou colectivos, sendo, portanto fundamental desenvolver acções de reparação histórica, de pacificação do presente e de construção de um futuro sem violência.

Termino como comecei: voltando a Malmgren. No mesmo texto diz também que a Rússia, quando Putin chegou ao poder, “precisava desesperadamente de um líder forte”. A Rússia acreditou que precisava dele. Putin acreditou na sua visão da e para a Rússia. O Mundo mudou. Putin vê o Mundo não como o Mundo é, mas como ele é, a partir da sua própria propaganda, reforçada pelo seu círculo próximo e pela sua interpretação das vitórias e objectivos que até hoje cumpriu. Isso não muda(rá). Conseguirá a Rússia, além de reconhecer que não precisa(va) dele, sair da sua propaganda e desvincular-se de Putin? Aqui está parte significativa, que merece a meu ver ser investida, de um caminho para a Paz.

Oxalá consiga porque, assim, mais facilmente poderemos aspirar a um Mundo sem medo que possa olhar e reparar o passado para se projectar no e para o futuro. Um Mundo sem medo de ser o que é, do tamanho que é. Sem medo da autodeterminação dos povos, dos direitos humanos e de se cumprir. Um Mundo de Paz.

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