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Colunista e comentador

A guerra na Ucrânia e as ‘guerras’ no futebol

21 mar 2022, 15:32

A alusão aos ‘filhos de Putin’ foi o último exemplo de que no futebol pode ‘valer tudo’, sem consequências

A pandemia já tinha colocado os pontos nos is sobre as verdadeiras prioridades das pessoas.

O país esteve durante muitos anos habituado a olhar para o futebol como o escape para os seus problemas. O aumento crescente da dependência externa, no ramerrame do dia a dia, ia fazendo com que as pessoas, com maior ou menor dificuldade, fossem dando respostas para se manterem à tona. Como em todo o lado, umas voaram, outras seguraram-se, outras perderam-se.

O português é muito criativo e, no meio dessa criatividade, foi sempre fugindo da realidade (um país super-endividado, com uma carga fiscal brutal) até começar a ter a percepção de que a profundidade do buraco não era apenas resultante da pobreza e da escassez de recursos, mas também dos perdões de dívida, da desgovernação nos bancos e de uma teia de influências que muito prejudicou e ainda prejudica o erário público. 

O país andava a dar pontapés na bola, com uma tolerância divina sobre os negócios mal explicados do mundo do futebol. ‘Eles’ riam-se e os consumidores encolhiam os ombros. A bola a beijar a rede e os momentos de vitória e consagração serviam para tudo camuflar. 

O poder político fechou os olhos aos sinais evidentes de que algo não batia certo: os clubes exauridos financeiramente e certos agentes — e os séquitos em seu redor — a engordar em todos os aspectos. Um festim, glosado nas principais capitais da Europa e no Dubai.

Em vez de se parar com o festim e de tratarem da galinha dos ovos d’ouro, os barões (bem assinalados) do futebol, com a ajuda de uma soldadesca escolhida para o efeito, entraram numa louca dinâmica segundo a qual pareciam destinados a provar que nada os podia parar.

Em Portugal, os excessos foram evidentes e atingiu-se o ponto da loucura, com acusações de parte a parte, primeiro entre representantes (?) do FC Porto e do Benfica e, mais recentemente, colocando Sporting e FC Porto num confronto que culminou, mais recentemente, com aquele triste espectáculo no Dragão, onde coletes de diversas cores se sentiram legitimados para entrar na peleja.

Entretanto, havia chegado a pandemia e, com ela, o futebol teve um momento em que precisou de parar.

O futebol (já soterrado por processos judiciais) parou, houve um momento em que a detenção de Luís Filipe Vieira fez aproximar pólos desavindos — talvez uma questão de consciência sobre o peso da farinha transportada nos sacos — mas a baliza do ódio continuou escancarada.

Frederico Varandas, agora reeleito para mais um mandato na presidência do Sporting, e com menos tempo de contaminação por um sistema caduco, atirou-se a Pinto da Costa como gato a bofe.

Não serão questões pessoais que estarão na base dessa contenda mas perspectivas diferentes como chegar à vitória ou evitar que outros cheguem. E o escrutínio deve ser sempre igual para todos, sem excepção. 

Conclusão: os clubes portugueses, genericamente, os que estariam em condições de reagir, não aprenderam nada com a pandemia e o facto novo, desencadeado pelo Governo, foi a definição do limite do timing para a centralização dos direitos televisivos. Mais uma vez tardiamente. De resto, mais ou menos tudo igual. As mesmas tricas e as mesmas trocas.

Entretanto, surgiu a guerra na Ucrânia perante a qual todas as ‘guerras’ do futebol português parecem estúpidas e ridículas.

Se o futebol com a pandemia ficou soterrado pelas prioridades da saúde e da economia, a guerra na Ucrânia retirou muito naturalmente o futebol da primeira linha de prioridades e de consumo.

Muita coisa mudou no Mundo nos últimos dois anos, mas o futebol em Portugal, nos últimos tempos, continuou a projectar os comportamentos e os dichotes mais inconvenientes. Com a Ucrânia debaixo de fogo e com os Estados Unidos e a NATO a jogarem este ‘jogo’ como se estivessem perante um tabuleiro de xadrez, a ponderarem até ao limite cada avanço; com os ucranianos aos milhões em debandada por causa da destruição e dos bombardeamentos, só nos faltava mais uma alma absolutamente perturbada, sem respeito pelo emblema que representa, referir-se aos ‘filhos de Putin’ para visar os clubes de Lisboa.

Sem consequências, como é hábito no futebol cá da paróquia.

O episódio não teve a atenção do país - e ainda bem - porque neste momento estamos todos concentrados na guerra da Ucrânia, naquilo que pode acontecer àquele país, nas mobilizações para ajudar o povo ucraniano, e as ‘guerrinhas’ do futebol, se antes já pareciam em grande parte estúpidas e promovidas por gente sem escrúpulos, todavia ‘certificada’ pelo medo e também pelo comodismo, agora ainda parecem mais estúpidas e ridículas. Porque tudo deve ser relativizado perante a tragédia que se vive na Ucrânia e pelas consequências que esta guerra está a ter e vai ter em toda a Europa.

O Desporto e o Futebol, em particular, têm dado um bom exemplo da condenação da guerra promovida por Putin e o peso das sanções parece pouco em comparação com aqueles que nunca mais recuperarão o futuro mas não deixa de ser muito quando se realizou - sem reação da comunidade internacional - um Mundial de Futebol na Rússia (2018), quatro anos depois da anexação da Crimeia. E, neste aspecto, Aleksander Ceferin merece uma palavra de apreço porque, em nome da UEFA, tomou posições que, uma vez tomadas, parecem fáceis mas são de uma coragem assinalável.

O Futebol, nos últimos dois anos, perdeu valor em relação às óbvias prioridades, mas continua a ocupar um lugar importante na vida de milhões de pessoas. Devemos perceber que este é um tempo muito específico, mas também deveríamos alcançar que, em Portugal, este deveria ser o tempo de os clubes reverem as suas dinâmicas de comunicação e ponderarem as escolhas.

Tudo tem a ver com lideranças e com privilégios de muitos anos (toda a gente percebeu que há um mercado paralelo do qual muitos se alimentam, directa ou indirectamente) mas se nunca houve, até agora, capacidade autocrítica para reconhecer os erros e os excessos, ao menos que a guerra no Ucrânia sirva para se entender que as ‘guerras’ cá do burgo só têm servido para afastar as pessoas (de bem) dos estádios e para proteger aqueles que, à custa da indiferença e de uma óbvia falta de coragem, não querem abdicar de um poder e de um regime que lhes garante tantas e, em muitos casos, ilegítimas regalias.

Não compreender isto é retardar ainda mais o ‘regresso’ do futebol. Num estado de mínima decência. 

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