Consagração feliz de um justo campeão

2 jul 2000, 21:20

França consegue «dobradinha» histórica Um novo golo de ouro deu à França o título europeu. Pela primeira vez, uma selecção vence o Euro depois de ter sido campeã do Mundo dois anos antes. Trezeguet consumou a reviravolta aos 102 minutos, após grande jogada do descendente de portugueses Robert Pires.

ROTERDÃO - A França sagrou-se pela segunda vez campeã da Europa, repetindo a vitória de 1984 e conquistando a primeira grande competição internacional fora do seu território. 

A vitória sobre a Itália (2-1 após prolongamento) permite à equipa de Roger Lemerre tornar-se a primeira selecção campeã do mundo em título a conquistar o Europeu. 

Tal como há quatro anos, com a Alemanha, foi o golo de ouro a decidir a posse do troféu. Tal como há quatro anos, foram jogadores saídos do banco a consumar a reviravolta (então Bierhoff, agora Wiltord e Trezeguet). E, tal como há quatro anos a vitória da Alemanha assentava bem a um Europeu cinzentão e dominado pelo físico e pela táctica, também agora o triunfo francês, repleto de piscadelas de olho à História e conduzido com mão de mestre por um fantástico Zidane é o tributo justo para uma competição com muitos mais motivos de interesse, que voltou a dar expressão prática a conceitos como técnica, ousadia e criatividade. 

O guião para a final parecia estabelecido de início. Descontando eventuais ressentimentos lusos em relação à meia-final de Bruxelas, os franceses eram os bons da fita, tentando impor o seu futebol habitual, feito de posse de bola, circulação de passes e explosões ofensivas. 

Do outro lado estava uma Itália que parecia cumprir o papel ingrato de estraga-festas, intérprete fiel de um catenaccio conservador e aborrecido, que nem por isso deixa de trazer resultados, se interpretado por actores adequados. 

A agradável surpresa italiana 

Felizmente, o futebol prima por não respeitar sempre a distribuição de papéis. E, embora a final só tenha valido como espectáculo na segunda parte, trouxe-nos pelo menos a grata surpresa de uma Itália disposta a discutir o jogo no campo todo. 

Sem abdicar dos seus traços particulares, a equipa de Zoff teve pudor em repetir na final o esquema ultradefensivo utilizado para neutralizar a Holanda. 

Isso por pouco não lhe deu o título, mas permitiu-lhe, pelo menos, merecer o respeito dos observadores e prestar justiça a um conjunto de jogadores dotados, mas reprimidos por um sistema de jogo que até aqui andava próximo do cúmulo da avareza. 

Foi a melhor Itália deste Europeu que ficou a quinze segundos da consagração suprema e criou constantes dificuldades à favorita França, desta vez muito condicionada pelo rigor táctico do meio-campo adversário. 

A atitude descomplexada dos italianos foi visível desde os primeiros minutos, com o habitual 3-5-2 a permitir desta vez a libertação de Fiore para missões de apoio à dupla de avançados. 

Fiel às suas ideossincrasias, Zoff voltou a não conjugar os talentos de Del Piero e Totti, deixando este como solitário animador ofensivo nas costas de Delvecchio, titularizado em detrimento do irregular Inzaghi. 

Numa primeira parte tensa, com pouquíssimas ocasiões de golo, notou-se acima de tudo a eficácia italiana na interrupção do circuito ofensivo francês a partir de Zidane, alvo da pressão sistematica de dois jogadores quando detinha a bola.  

Assim, do lado dos bleus, apenas as acelerações de Henry criavam alguns desequilíbrios na sólida organização italiana, que desta vez se espreguiçava em contra-ataques ameaçadores, muito bem conduzidos por Totti e apoiados por Maldini e Pessotto nos flancos. Surpresa das surpresas, a Itália chegava ao intervalo com mais tempo de posse de bola do que o seu adversário, algo que lhe acontecia pela primeira vez neste Europeu. 

Zoff arrisca e petisca 

A segunda parte recomeçou exactamente no mesmo ponto, embora uma aceleração de Henry na esquerda quase permitisse o golo de Zidane, milimetricamente atrasado ao cruzamento. 

Mas a Itália não se encolhia e, aos 52 minutos, assumia mesmo a clara vontade de ganhar o jogo, lançando Del Piero para o lugar de Fiore. Dois minutos depois, a manobra de Zoff encontrava a recompensa, com uma preciosidade de Totti a desmarcar Pessotto na direita e com o cruzamento deste a encontrar Delvecchio no coração da área, para uma conclusão inapelável. 

Lemerre respondeu de imediato, trocando Dugarry por Wiltord e colocando a França a jogar com dois avançados puros. Mas a confiança italiana permitia-lhe continuar a controlar o jogo e passar mesmo próximo de um decisivo segundo golo, com Del Piero, isolado por Totti, a rematar ao lado só com Barthez pela frente (58 m). 

A França demorou um pouco a responder, mas pareceu encontrar uma brecha no lado direito da defesa italiana. Wiltord fez o primeiro aviso, rematando contra as pernas de Toldo de ângulo fechado (62 m), num tipo de lance que teve reedição aos 68 e 79 m, por Henry. 

Um sintoma importante para o desfecho do jogo, mas que nessa altura não inquietou demasiado os italianos. Por sinal, estes dispuseram de mais duas oportunidades claras, com Delvecchio, primeiro (69 m) e Del Piero, depois, a não conseguirem resolver os seus duelos com Barthez. 

Abençoados suplentes 

Empurrados por uma legião de adeptos cujo hábito de vitórias tornou insensível ao medo, os franceses organizaram-se para um derrdeiro assalto, que parecia destinado a esbarrar na muralha italiana. 

Mas, se todos os campeões têm um pouco de sorte, a França impressiona pela forma como faz do destino o seu aliado permanente. No último instante dos quatro minutos de descontos concedidos por Anders Frisk, Trezeguet (que entrara para o lugar de Djorkaeff, alargando a frente de ataque) conseguiu tocar uma bola de cabeça para Wiltord, que voltou a fugir pela esquerda e bateu Toldo com um remate cruzado. 

Tal como frente a Portugal, a França saía de uma situação de desvantagem para ganhar um decisivo ascendente psicológico. Os italianos, incrédulos, entraram no prolongamento de cabeça baixa. A partir daqui, a haver um golo, este já tinha destino marcado: a baliza do impressionante Toldo. 

Estava escrito que a aposta desesperada de Lemerre teria êxito absoluto. Depois de Wiltord ter salvo um decisivo «matchpoint», foi a vez de os outros dois suplentes lançados para a carga final conseguirem um lugar na lenda. 

Novamente sobre a meia-esquerda, Pires teve uma arrancada espectacular, deixou para trás um desesperado Cannavaro e fez o cruzamento perfeito para o instinto goleador de Trezeguet fazer o resto. 

Estavam decorridos 102 minutos de jogo e com esse golo caía o pano sobre o Euro-2000, após um último acto rico em emoções e surpresas. 

Mas, mesmo com um guião distorcido pelos acontecimentos, a moral da história acabava por estar conforme aos bons costumes: apesar da digna exibição italiana, foi a melhor equipa da competição a ser vitoriada no estádio do Feyenoord. 

Sólida, talentosa, determinada e com inúmeras opções, a França junta a estes ingredientes uma autoconfiança que parece atrair os favores do destino. E quando assim é, tudo se torna possível, mesmo os milagres. 

FICHA DO JOGO 

Estádio De Kuip. Em Roterdão

Árbitro: Anders Frisk (Suécia) 

FRANÇA - Barthez; Thuram, Blanc, Desailly e Lizarazu (Pires, 85 m); Vieira e Deschamps; Djorkaeff (Trezeguet, 75 m), Zidane e Dugarry (Wiltord, 57 m); Henry

Treinador: Roger Lemerre 

ITÁLIA - Toldo; Cannavaro, Neste e Iuliano; Pessotto, Albertini, Di Biagio (Ambrosini, 65 m), Fiore (Del Piero, 52 m) e Maldini; Totti e Del Vecchio (Montella, 85 m)

Treinador: Dino Zoff 

Ao intervalo: 0-0

No final dos 90 minutos: 1-1

Marcadores: Wiltord (93 m) e Trezeguet (102 m); Del Vecchio (54 m)

Disciplina: cartão amarelo a Thuram (57 m); Di Biagio (30 m) e Cannavaro (41 m)

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