E se voltássemos aos fundamentos do futebol de rua?

8 abr 2014, 10:42
Sporting vs Académica (LUSA)

Treinadores da formação dos principais clubes e das seleções falam das dificuldades de recrutamento de jovens, que nos dias de hoje passam mais tempo à frente dos computadores e das consolas de jogos do que a lutar por uma bola em campos improvisados

Portugal tem sabido exportar muitos talentos no futebol, muita coisa está a ser bem feita, mas a reflexão é permanente. No colóquio «Falar de futebol», que decorreu esta segunda-feira em Lisboa por iniciativa de Pedro Barbosa, falou-se muitas horas sobre formação e como maximizar o talento do jogador português. Deixaram-se alertas para o futuro, nomeadamente no que diz respeito ao recrutamento.

Numa sociedade digitalizada, a atenção dos jogadores muitas vezes varia para situações que nada têm a ver com o futebol jogado. A virtualização das situações, como o recurso a consolas de jogos, afasta os jovens dos campos, invertendo a tendência existente no passado, quando havia futebol de rua e os miúdos jogavam muitas vezes em terrenos improvisados.

«Temos de perceber que valores tiramos do futebol de rua. No meu tempo o futebol era numa rua a subir, mas os grandes valores era a competitividade, tinha de ganhar. Éramos muitos na rua e tínhamos de ganhar para o próximo jogo, porque senão ficávamos parados muito tempo. Será que podemos reproduzir essas condições? O contexto permite-nos que os jovens sem dinheiro possam jogar de borla e temos de ter atenção a isso Não nos podemos queixar neste momento. As academias são um meio privilegiado, temos as condições ideais, mas devemos reproduzir o que se fez no passado. Há valores que vão para além das questões ligadas ao jogo, como a solidariedade, trabalhar em equipa, respeito pelo colega, pelo jogo, formar como um homem», abordou João Tralhão, o treinador dos juniores do Benfica.

Lima, o seu congénere do Sporting, concorda e acrescenta: «Quando estava no futebol de rua eu desenvolvia as minhas competências individuais. O facto dos treinadores quererem trabalhar como nas equipas profissionais pode levar um jovem com sete ou oito anos quando chegar aos 15 anos já estar saturado. Tiram liberdade do futebol de rua, por isso deixo o alerta, porque o jogador tem de ter prazer no que faz.»

A este ponto acrescenta-se o facto do futebol nas escolas também ter menos espaço, com o preenchimento dos tempos mortos com atividades extra curriculares, e o próprio recrutamento de atletas estrangeiros para as camadas de formação.

«Geralmente as equipas portuguesas estão sempre nas finais da competições internacionais, mas em termos de seleções começamos a ter alguns problemas pela falta de jogadores portugueses. Nos campeonatos de juniores não há limites, qualquer jogador de qualquer nacionalidade pode representar qualquer clube. Por vezes as equipas têm excesso de jogadores de outras nacionalidades, provoca que para as seleções haja um défice de qualidade. Neste sentido o número de estrangeiros pode ser um problema», alerta Lima.

Tralhão concorda: «Pode ser um problema para as seleções, mas dá-me ideia que o número de estrangeiros tem reduzido, nomeadamente nos grandes. Não tenho nenhum preconceito com os jogadores estrangeiros, mas também queremos trabalhar para um objetivo comum, que é ajudar as seleções. As opções devem recair mais nos nosso jovens, mas temos de de ter paciência com eles e por vezes os clubes não têm essa paciência. Felizmente há muitos casos de sucesso, mas esquecemo-nos do caso de insucesso porque os clubes não têm paciência. Opta-se por descriminar jovem com talento e potencial, em detrimento de um jovem para rendimento, independentemente de ser nacional ou estrangeiro.

Seguindo esta linha de raciocínio, o selecionador dos sub-18, Edgar Borges, defende que seria importante encontrar um modelo uniformizado para a formação no futebol português. «Seria importante definir um projeto de desenvolvimento do futebol português tendo em vista a formação. Se já está bem, podia ser melhor. Existem pontes, existe vontade e um excelente relacionamento, mas falta ligar o projeto de forma mais consistente. Gostava que as pessoas se empenhassem mais num esforço para a formação», frisou, admitindo que também será relevante ter preocupações ao nível da formação de formadores, pois «não há especialização para o treino feminino ou jovem».

O sucesso das equipas B


Uma das formas encontradas para potenciar o jogador português são as equipas B, colocadas com sucesso na II Liga e com impacto evidente nas seleções. Rui Jorge, o selecionador sub-21, agradece a alterações e esclarece que «existe uma diferença no nível competitivo e é claramente uma mais valia para o jogador e para o treinador». «Atualmente o leque de jogadores com competição é muito maior», acrescenta.

Abel, o treinador do Sporting B, está maravilhado com o processo no seu clube e diz que só assim faz sentido. «Vale a pena ter uma equipa B se o clube acreditar no que se faz. Tenho uma relação fantástica com o treinador da equipa principal e é bom ver casos como o de Carlos Mané, em que o jogador passa por todos os processos e chega à equipa principal. Não vale a pena ter equipas campeãs nas camadas jovens se depois não existe ligação. A equipa B do Sporting é um tubo de ensaio, onde dou oportunidades aos jogadores, em relação estreita com o treinador da equipa principal. Fiquei estupefacto com esta abertura», refere, elogiando Leonardo Jardim.

Rui Jorge sublinha que o objetivo das equipas abaixo da principal é sempre conduzir o jogador para o topo. «É evidente que queremos vencer e tudo fazemos para que isso aconteça, mas o nosso objetivo é formar jogadores para a equipa principal. É o grande objetivo de todo o escalão de formação. Muitas vezes temos de abdicar do nosso melhor jogador para passar para um patamar superior, porque é assim que tem de ser para beneficiar o crescimento e a evolução», advoga o treinador.

E quando não há dinheiro


No seguimento desta reflexão era importante ouvir treinadores das equipas principais que apostem em jogadores nacionais. Rui Vitória concorda com a tal ideia da importância de regresso aos fundamentos do futebol de rua e diz que não há outra solução senão apostar nos atletas portugueses.

O treinador do Vitória de Guimarães defende que a competitividade financeira dos clubes «grandes» vai sofrer um «duro golpe» com o fim dos fundos, sendo por isso «urgente» apostar mais na formação de novos futebolistas: «Os fundos vão acabar e os clubes vão ter muitas dificuldades em comprar jogadores com qualidade. Deixam financeiramente de ser competitivos. Por isso, é preciso cada vez mais apostar na formação de jogadores e também na formação de formadores. Só assim os clubes vão ter hipótese de ter jogadores de qualidade».

Para o treinador dos vimaranenses, a crise financeira acabou por «abrir a perspetiva» que a formação será a única forma de sustentabilidade do clube. «Em Portugal, grande parte dos treinadores que trabalham na formação estão danados para passar para o futebol sénior. Lá fora não é bem assim e isso também tem que mudar. Nos jovens também se vê que se perdeu a cultura e a paixão pelo jogo, embora os miúdos sejam mais profissionais e têm mais cuidado, principalmente com o corpo», referiu.

Nesse sentido, o técnico do Vitória de Setúbal, José Couceiro, que esta temporada também foi obrigado a apostar na formação devido a problemas financeiros, lamentou a «pressa» que os jogadores têm em dar o salto para outros clubes, acabando muitas vezes por prejudicar a própria carreira. «O Ruben Vezo saiu muito cedo para o Valência. Fez 10 jogos na equipa principal do Vitória de Setúbal. Corre o risco grande de estar a jogar na equipa B na próxima temporada. Devia ter continuado. O crescimento do jogador faz-se a jogar e não só a treinar. Se não joga, não se desenvolve», considerou Couceiro.

Para o antigo dirigente do Sporting, é preciso com urgência «criar mecanismos para reduzir a diferença para os mais poderosos, não só financeiramente, mas também a nível estrutural». «Como querem formar quando nem relvados temos para trabalhar. Os mais poderosos serão sempre os mais poderosos, mas é preciso dar mais condições aos outros», frisou.

Também Marco Silva, treinador do Estoril-Praia, lamentou a «cratera enorme» que existe a nível orçamental e estrutural entre os clubes, embora tenha considerado que o futebol português está «mais competitivo». «Prova disso é as carreiras que os nossos clubes têm feito nas competições europeias», lembrou.

Os três treinadores mostraram-se ainda a favor do alargamento da Liga a 18 clubes, algo que já devia ter acontecido «há mais tempo». «Em Portugal treina-se muito e joga-se pouco. Às vezes fazemos 10, 12 treinos para preparar apenas um jogo. Felizmente esse cenário deverá mudar com o alargamento», concluiu Rui Vitória.

Relacionados

Mais Lidas

Patrocinados