Ataques da Ucrânia aos navios russos podem ser mais eficazes que sanções do Ocidente. Rotas do Mar Negro "podem tornar-se economicamente inviáveis"

14 ago 2023, 07:00

A Ucrânia tem a tecnologia e, agora, tem a vontade para o fazer. A nova estratégia ucraniana para o Mar Negro pode vir a ter um forte impacto na economia russa e na sua capacidade de continuar a financiar a guerra

Navios de guerra, cargueiros e até petroleiros, todos passaram a estar na mira das forças armadas ucranianas. Desde 17 de julho, data em que caiu o acordo para exportação de cereais, que a Ucrânia não o esconde. Kiev “tirou as luvas” no combate pelo controlo do Mar Negro e, esta sua nova estratégia, pode vir a ter um forte impacto económico no esforço de guerra russo, ao pressionar o setor que mantém a economia russa viva.

“Uma seguradora teria de ser muitíssimo irracional para querer dar um seguro a um navio que se desloca para uma zona de guerra. Se não houver uma rota alternativa para o transporte das mercadorias, estas rotas podem tornar-se economicamente inviáveis”, explica António Martins, presidente-executivo da Associação dos Transitários de Portugal.

A promessa ucraniana é mesmo de atingir todos os navios que naveguem de ou para qualquer porto russo no Mar Negro, o que coloca debaixo de fogo cargueiros e petroleiros, além dos navios militares. E isso poderá indicar que, em Kiev, existe uma nova estratégia, que passa por apertar o cerco económico ao Kremlin. Talvez por esse motivo, o anúncio de que os navios comerciais russos vão passar a ser alvos militares tenha sido feito pela voz do conselheiro económico do presidente ucraniano, Oleg Ustenko, e não pelas chefias militares.

Os primeiros efeitos dessa estratégia fizeram-se sentira na noite do dia 5 de agosto, junto ao estreito de Kerch, que liga a Crimeia ao território russo, quando um drone marítimo atingiu um dos maiores petroleiros russos, causando danos muito significativos na estrutura da embarcação. Horas antes, com recurso à mesma tecnologia, a Ucrânia atacava um navio militar de desembarque anfíbio no porto de Novorossiysk, um dos maiores e mais importantes portos russos do Mar Negro. Os efeitos do ataque estão prestes a atingir os mercados.

“Os valores dos prémios dos seguros ainda não foram atualizados. No entanto, tendo em conta as atuais circunstâncias, é natural que o prémio [preço que as transportadoras] dos seguros possa aumentar consideravelmente, dado todos os riscos inerentes a que as transportadoras estão expostas”, explica Henrique Tomé, analista de mercados financeiros da XTB.

Isto significa que, de um momento para o outro, transportar matérias-primas dos portos russos no Mar Negro, fica substancialmente mais caro. O transporte marítimo internacional é feito em barcos que, em muitos casos, custam centenas de milhões de euros. Por isso, para as transportadoras, não ter seguro num navio que ruma a uma zona de guerra é um risco que pode ser demasiado caro. Mas não é só o navio que precisa de ter um seguro, também a carga e a tripulação têm de estar cobertos pela seguradora. No caso dos petroleiros, existe ainda o seguro de impacto ambiental, que os especialistas acreditam não estar sequer a ser contratualizado.

“Embora fosse uma boa bandeira publicitária, não acredito que nenhuma seguradora tenha interesse em segurar um navio numa zona de conflito. Na Ucrânia, por padrão, as seguradoras não garantem o risco de guerra. Se isso está a acontecer, acredito que esteja a ser coberto pelo país interessado”, explica Luís Teixeira, diretor-geral da corretora de seguros F. Rego.

Quando uma transportadora não paga um seguro, o risco tem de ser assumido pelo balanço da própria empresa. Ou seja, caso o navio seja alvo de um ataque como aconteceu ao petroleiro Sig, no Mar Negro, em teoria, é a própria empresa a cobrir as perdas. Neste caso, devido ao elevado risco que se vive nesta região, os especialistas em seguros navais acreditam que o risco está a ser assumido não pelo balanço das transportadoras (que têm muito a perder), mas pelos países interessados, tanto em vender como em comprar estes recursos. “Só existem três hipóteses: os armadores viajam sem seguro ou têm apoio de base política ou os fretes estão a ser muitíssimo bem pagos”, insiste Luís Teixeira.

Apesar de a Rússia ter sido atingida por um vasto leque de sanções – a União Europeia prepara-se para lançar o seu 12.º pacote – a economia russa continua a ser capaz de suportar o aumento significativo dos gastos na área da Defesa. Mesmo tendo em conta a desvalorização do rublo, que perdeu 30% do seu valor face ao euro desde o início do ano, vários indicadores económicos russos mantêm-se positivos, graças à venda de matérias-primas, principalmente o petróleo e cereais.

Apenas no mês passado, a Rússia transportou 59 milhões de barris de crude, cerca de um terço do total das suas exportações desta matéria-prima, através do porto de Novorossiysk, no Mar Negro, de acordo com a firma de informação de mercados Kpler. Segundo o jornal digital Politico, 32 milhões destes barris acabam por rumar à União Europeia.

“Caso os ataques continuem a intensificar, o impacto pode estender-se para os mercados globais. As cadeias de abastecimento poderão sofrer o efeito bola de neve, um pouco como o que assistimos durante o período da pandemia (embora numa escala muito menor)”, sublinha Henrique Tomé.

Além disso, a Rússia encontra-se refém das suas próprias infraestruturas. O porto estratégico de Novorossiysk, que agora está à mercê dos ataques ucranianos, tem também terminais consideráveis que permitem a exportação de outros produtos derivados, como diesel, gasóleo ou cereais. Além disso, é ali que termina o oleoduto do Consórcio do Cáspio, que transporta 1,3 milhões de barris de petróleo por dia vindos do Cazaquistão, que são vendidos aos mercados internacionais.

Caso a Ucrânia avance com o seu plano de atacar todos os navios do Mar Negro, isso significaria que a Rússia não teria grandes alternativas capazes de escoar a enorme quantidade de crude e matérias-primas que saem diariamente do Mar Negro. O impacto que esta ação terá nas receitas russas pode mesmo vir a complicar a situação económica russa, já muito pressionada por milhares de sanções.

“O que a Ucrânia fez é mais do que uma promessa, porque a Ucrânia tem concretizado aquilo que disse. A Ucrânia desenvolve, há já algum tempo, uma capacidade notável de drones navais. A Ucrânia tem capacidade para atingir qualquer lugar do Mar Negro. Por este andar, a frota do Mar Negro poderá ser dizimada, ao longo do tempo”, afirma o major-general Isidro de Morais Pereira.

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