Davide e Leslie vieram trabalhar para um call center em Portugal, mas acabaram despejados dos quartos que pagavam à empresa

27 mai, 07:00
Call Center

Uma multinacional que opera em Portugal fornece quartos em Lisboa a trabalhadores estrangeiros por 280 euros, mas basta uma falta injustificada para os funcionários serem postos na rua - sem que para isso seja emitida uma ordem do tribunal. Sindicato está a ultimar ação judicial sobre o caso que já chegou às mãos do Governo. Empresa "não comenta"

 Davide Salvi, 32 anos, estava sentado à frente do ecrã do computador no seu apartamento no norte de Itália. Tinha acabado de se despedir do trabalho que tinha como designer de instrumentos médicos e, debatendo-se com dívidas que tinha contraído num empréstimo pessoal, começou a sentir um aumento de pressão para encontrar um novo emprego rapidamente. Aliado a isso tinha um desejo: “Queria sair do meu país, encontrar uma nova experiência, um novo sítio a que pudesse chamar casa”, conta. Estávamos em outubro de 2023 e do outro lado do ecrã, um recrutador da Webhelp, uma empresa multinacional de call center, oferecia-lhe um pacote de vantagens caso aceitasse mudar a sua vida para Portugal: “pagavam-me o voo, tratavam de me arranjar um Número de Identificação Fiscal e um número de Segurança Social e, para além do mais, arranjavam-me um quarto numa residência partilhada”. 

Davide aceitou a oferta de emprego e ao chegar a Lisboa, já a Webhelp tinha sido comprada por uma gigante multinacional de serviços de call center, a Concentrix, foi informado que iria passar a morar num quarto em Marvila. Em troca, refere, a empresa deduzia-lhe todos os meses 280 euros do seu salário e tinha de cumprir uma série de regras para manter a habitação: assegurar que o seu quarto estava limpo, não dar festas, não ter animais e não poder dar faltas injustificadas, segundo um documento interno a que a CNN Portugal teve acesso. “Todas as regras pareciam-me bastante justas, na altura. Mas achei um pouco estranho o facto de perder a casa se não conseguisse justificar a minha ausência do trabalho”. 

O mesmo documento interno, que é apresentado aos novos trabalhadores quando se juntam à empresa em Lisboa, refere explicitamente que ao aceitarem aquele quarto não teriam acesso a um contrato de arrendamento. "O contrato de arrendamento de alojamento não é um contrato de aluguer de casa” entre a empresa e o empregado. Quando chega a Portugal, a empresa “apenas o apoia, no início, certificando-se de que tem as condições para viver e trabalhar enquanto procura o seu próprio apartamento", lê-se no documento confidencial. “Nunca assinei nada, apenas respondi a um e-mail e fui para lá viver”, conta Davide. “De qualquer das formas, o preço era aliciante o suficiente para não me importar muito com essas coisas”, acrescenta.

Até que, em março deste ano, Davide adoeceu. “Apanhei uma grande gripe, fiquei com febre, dores de garganta, tosse, dores de cabeça e tonturas”, recorda, explicando que trabalhou “assim durante uma semana, porque era um período de trabalho intenso e queria dar todo o apoio possível à equipa para não os deixar em apuros”. Mas, no final, os sintomas eram tão fortes que foi obrigado a ficar em casa.  “Na altura, atravessava altas dificuldades financeiras e não tinha dinheiro para ir ao médico”, conta, referindo que enviou um e-mail a avisar a Concentrix da sua ausência e a perguntar quantos dias poderia ficar sem justificar a falta”.

​ Sede da Concentrix em Lisboa. Empresa opera em mais de 70 países/ DR

A resposta da empresa, conta, chegou no dia 13 de abril. “Era a avisar-me que, no prazo de 72 horas tinha de sair do quarto”. “Fiquei aterrorizado, não tinha qualquer solução, nem dinheiro para alugar um apartamento em Lisboa”. Foi nesse momento que começou a contactar o sindicato do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (CESP) que o aconselhou a não sair de casa sem uma ordem de despejo de um tribunal. 

No dia em que funcionários contratados pela empresa de call center entraram pelo quarto dentro, Davide estava com membros do CESP que telefonaram para a PSP a denunciar o que se estava a passar. Quando os polícias chegaram, conta Orlando Gonçalves, delegado do sindicato que acompanhou esta situação, informaram os funcionários que “o despejo só poderia acontecer com uma ordem de um tribunal e que forçar o trabalhador a sair seria um ato ilegal”. 

Davide sublinha que os funcionários que foram contratados pela empresa para o obrigarem a sair do quarto foram embora após aquela primeira tentativa, mas acabariam por voltar uma semana depois. “Dessa vez estava sozinho, entraram quando estava na casa de banho”. “Simplesmente abriram a minha porta, começaram a levar as minhas coisas”. “Mal tive tempo para telefonar novamente para as autoridades e para o sindicato que, quando chegaram, disseram-lhes exatamente a mesma coisa”. Era manhã do dia 30 de abril. Os funcionários foram embora, a polícia e o sindicato também e ele foi trabalhar. 

Quando saiu do escritório para um coffee break, recebeu uma mensagem do colega de apartamento. “Disse-me que estavam a trocar a fechadura e que todas as minhas coisas foram postas num armazém da empresa”. Depois disso, foi ao e-mail e recebeu a confirmação: já não tinha quarto. 

Ao mesmo tempo que Davide ligava freneticamente para amigos naquela noite, numa tentativa de arranjar um sofá para dormir, a sua colega Leslie Reste, uma trabalhadora francesa de 37 anos, soube por um telefonema que os seus pertences tinham sido colocados num armazém e que iria deixar de ter acesso à habitação da empresa.

Há sete anos a morar em Lisboa, Leslie transferiu-se para um quarto fornecido pela Concentrix, em Marvila, em janeiro deste ano. “Gostava do sítio e o preço era acessível, tendo em conta como está o mercado da habitação”, recorda, sublinhando que também não assinou “qualquer contrato ou documento acerca da questão da residência”.

Por problemas de saúde, conta, Leslie acabou por dar sete faltas injustificadas no trabalho, levando-a a receber um e-mail em abril deste ano por parte dos recursos humanos da empresa a acentuar que, no prazo de 72 horas, teria de abandonar o quarto. “Não fazia ideia de que as faltas injustificadas podiam levar alguém a ser despejado, quando comecei a trabalhar na Concentrix não me avisaram de nada disso”, sublinha. 

Era uma terça-feira quando recebeu o aviso: na sexta-feira, teria de ir embora. “Disse que não ia sair porque não tinha qualquer alternativa e enviei um e-mail aos recursos humanos da empresa a referir que poderia deixar o quarto, mas só quando arranjasse outro, acho que era o justo”. 

Não recebeu qualquer resposta e, no dia 30 de abril, enquanto estava a fazer chamadas relacionadas com apoio a clientes franceses e alemães, soube a partir de uma mensagem de um amigo seu que “tinham tirado todas as coisas” do seu quarto e que a fechadura tinha sido trocada. “Fiquei sem roupa, sem uma estante, acessórios, cabides, artigos de higiene, utensílios de cozinha”, enumera, destacando que até ao momento ainda não as conseguiu recuperar na totalidade. “Preciso de uma carrinha para trazer o resto das coisas”.

Após o despejo, Davide Salvi passou dois dias na casa de uns amigos em Lisboa. “Depois disso”, diz, “fiquei a dormir no meu carro até encontrar um hostel suficientemente barato para conseguir pagar”. “É onde estou neste momento”. Já Leslie Reste arranjou um quarto na Amadora e agora está a procurar um novo emprego.

Ação do CESP junto da Webhelp, agora Concentrix, reúne vários trabalhadores / DR

Empresa não comenta casos que já chegaram ao Governo. Sindicato vai avançar com um processo judicial

À CNN Portugal, fonte oficial da Concentrix, a multinacional cotada na bolsa de Nova Iorque, recusou comentar o caso. “Neste momento, a empresa não vai fazer comentários”, disse. 

No início deste mês, o PCP deu a entrada de um requerimento ao Ministério do Trabalho e da Segurança Social a alertar para esta situação. No documento, assinado pelo deputado Alfredo Maia e entregue no dia 10 de maio, é referido que a Concentrix “tem plena consciência de que qualquer ordem de despejo só poderá ser ordenada pelo tribunal, como aliás reconheceu a polícia quando chamada ao local”. “Estamos, pois, perante uma prática que viola direitos dos trabalhadores constitucionalmente consagrados, que deveriam ter consequências punitivas para as empresas", acrescenta.

Para Patrícia Baltazar Resende, advogada especialista em direito laboral, podem estar em causa crimes de abuso de poder no ambiente de trabalho “pelo facto de a habitação dos trabalhadores estar a ser utilizada como forma de coação para impedir que existam faltas injustificadas na empresa”. “Estas regras de conduta para que o trabalhador possa ter acesso a um quarto violam transversalmente as leis laborais, porque impõem regras que vão muito além do ambiente de trabalho”, afirma. 

Ao mesmo tempo, o Sindicato do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal está a preparar uma ação judicial no tribunal de trabalho. “Pretendemos que os dois trabalhadores recebam uma indemnização pelos custos que tiveram com alojamento após terem sido despejados”, diz Orlando Gonçalves. 

Para além dos casos de Leslie e de Davide, o sindicato identificou mais três situações de funcionários alvo de despejo por parte da mesma empresa. “Num dos casos, uma trabalhadora francesa foi mesmo forçada a regressar para o seu país depois de perder o quarto”, refere o sindicalista, apontando que o CESP irá reforçar as ações de luta nas próximas semanas.

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