Afinal, o que aconteceu ao ex-presidente da China que foi retirado à força do congresso do Partido Comunista?

26 out 2022, 07:53

Imagens divulgadas ontem com os instantes que precederam o afastamento forçado de Hu Jintao parecem dar força à hipótese de se ter tratado, mesmo, de um saneamento em direto para mostrar a força de Xi Jinping

Passados quatro dias sobre o momento dramático em que Hu Jintao foi removido à força da sessão de encerramento do congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), no sábado passado, continua a não haver uma explicação oficial sobre o incidente, e permanece o silêncio sepulcral do partido e do Governo de Pequim em relação ao que se passou. 

A única explicação adiantada até agora, através da agência oficial de notícias chinesa, refere de forma vaga que Hu “não se estava a sentir bem” - uma informação nunca publicada em qualquer artigo da agência Xinhua mas incluída, apenas, numa publicação da agência no Twitter no sábado à noite, quando a especulação sobre o destino de Hu Jintao era viral nas na comunicação social e nas redes sociais.

Segundo essa publicação, que cita um repórter da agência (e não qualquer fonte oficial), “Hu Jintao insistiu em participar na sessão de encerramento do 20º Congresso Nacional do Partido, apesar do facto de estar a demorar a recuperar [o seu estado de saúde]”. No tweet seguinte, acrescenta que “quando [Hu] não se sentia bem durante a sessão, o seu pessoal, pela sua saúde, acompanhou-o a uma sala ao lado do local da reunião para um descanso. Agora, ele está muito melhor.”

Estes tweets foram, mais tarde, citados numa conferência de imprensa por um porta-voz do governo chinês, como única explicação para o sucedido. Porém, esta justificação tem sido recebida com enorme ceticismo, não só porque contraria o que é possível discernir a partir das imagens desse momento, como não bate certo com o silêncio absoluto do PCC e do governo desde então. Se estivessem em causa, de facto, razões de saúde, seria expectável uma nota oficial do partido ou do governo desejando as melhoras de Hu. Afinal, trata-se de um antigo secretário-geral do PCC e antigo líder da China, o cargo mais alto do país. Hu governou a China durante uma década, e é um de apenas dois ex-presidentes vivos, juntamente com Jiang Zemin (que tem 96 anos e uma saúde tão débil que não foi sequer ao congresso). Para além disto, Hu é o antecessor de Xi Jinping, e foi quem o indicou como seu sucessor, apesar da tensão que sempre marcou a sua coabitação e, sobretudo, a última década. 

Por todas estas razões - e também por ser essa a tradição - seria de esperar que a hierarquia comunista desse algum sinal público de cuidado com a saúde de Hu, caso fosse essa a razão do seu afastamento forçado da cerimónia. Ainda para mais, tendo em conta o impacto global que essas imagens tiveram. Mas isso não aconteceu. O mutismo de Pequim sobre este caso alimenta ainda mais as especulações sobre o que realmente levou ao afastamento forçado de Hu no momento da consagração definitiva de Xi Jinping como líder absoluto e “núcleo” do PCC.

Por outro lado, a máquina oficial de censura da China foi posta a trabalhar para suprimir qualquer referência a Hu Jintao desde este incidente. Hu não aparece nas notícias publicadas na China - nem é referida a sua saída do congresso - e nas redes sociais não é possível pesquisar o nome do antigo presidente ou escrevê-lo em novas publicações. Durante algumas horas muitos internautas chineses referiram o caso escrevendo comentários em publicações antigas que referiam o nome de Hu Jintao, mas mesmo isso deixou de ser possível entretanto. Também o nome do filho de Hu, Hu Haifeng - membro do PCC que até há pouco tempo era visto como uma figura em ascensão no partido -, passou a ser censurado.

Os papéis que Hu foi impedido de ver

Imagens adicionais divulgadas ontem, com os instantes que precederam esse momento dramático que correu mundo, parecem dar ainda mais força à hipótese de se ter tratado, mesmo, de um saneamento em direto para todo o mundo ver, e para dar prova definitiva do poder inquestionado de Xi Jinping. As imagens inéditas foram divulgadas pelo Channel News Asia, canal de informação baseado em Singapura. 

Os vídeos que percorreram o mundo desde sábado mostravam o momento em que dois homens, chamados por Xi Jinping, removem Hu Jintao ao seu lugar, aparentemente contra a sua vontade. Mas as novas imagens mostram o que aconteceu antes disso. E aconteceu mesmo qualquer coisa que fez com que Xi, sentado à direta de Hu, fizesse sinal para o ex-presidente ser levado à força para fora da sala. Tudo parece relacionado com os papéis que todos os dirigentes comunistas tinham à sua frente sobre a mesa, mas que por alguma razão Hu não deveria ler naquele momento.

A sequência de acontecimentos tem sido analisada ao pormenor por jornalistas e analistas políticos. Hu Jintao está sentado à esquerda de Xi, e do outro lado tem Li Zhanshu, atual presidente do Congresso Nacional do Povo, o órgão legislativo do país. Hu está a dar atenção aos papéis que tem à sua frente, na mesa de trabalho (todos os outros elementos da mesa parecem ter papéis semelhantes, com capas vermelhas iguais). Li Zhanshu tira as folhas da mão de Hu, e coloca-os de novo na mesa, debaixo da capa vermelha, como que para impedir o ex-presidente de as ler. Essa percepção fica reforçada quando Li coloca a mão sobre a pasta e volta a afastar os documentos de Hu, enquanto se inclina para falar com ele.

Sentado do outro lado de Hu, Xi Jinping faz um sinal a alguém por detrás das costas do seu antecessor. Aproxima-se Kong Shaoxun, chefe do secretariado do Partido Comunista, que se inclina para Xi, ouve uma breve instrução, e afasta-se. Wang Huning, também membro da Comissão Permanente do Politburo e considerado o guru ideológico de Xi, está sentado ao lado de Li e gesticula para Hu Jintao - parece dizer-lhe que não com a mão. Li continua a prender os papéis com a mão, impedindo Hu de lhes chegar.

Xi olha para a esquerda, onde está Hu, e parece ansioso. À sua direita, o ainda primeiro-ministro, Li Keqiang, faz um notório esforço para se manter de olhos postos em frente, como se não desse conta do que algo se está a passar.

Um elemento não identificado, que será um segurança, dirige-se a Xi - ouve-o enquanto agarra a cadeira de Hu, como se estivesse pronto para a puxar. Xi parece parece dar instruções ao segurança, de indicador apontado, e gesticula para os papeis que tem à sua frente na mesa. Hu, de rosto tenso, ouve tudo o que Xi está a dizer. O segurança anui com a cabeça. Wang olha de relance para o balcão onde estão os jornalistas e parece dizer alguma coisa sobre isso. 

É então que o elemento do staff levanta Hu da sua cadeira, tendo já em seu poder a pasta vermelha com os documentos de o ex-presidente foi impedido de ler. A partir daí seguem-se as imagens que o mundo já tinha visto: Hu, mostrando grande debilidade física e aparentemente confuso, parece resistir a ser retirado da sala, tenta voltar a sentar-se, mas o segurança força-o a sair. Também tenta agarrar os papéis, que lhe voltam a ser retirados. O presidente da Assembleia levanta-se, mas parece ser travado por Wang, ao seu lado esquerdo. Li é visto, pouco depois, a limpar o rosto - não se percebe se suor ou um lágrima.

Hu e o segurança saem, acompanhados por Kong Shaoxun, chefe do secretariado do PCC. Não sem antes Hu dizer algo a Xi, que responde sem olhar para o seu antecessor. Hu ainda se despede de Li Keqiang tocando-lhe no ombro esquerdo - tanto o ainda primeiro-ministro como o ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, mantêm-se firmes, de olhos postos em frente. Toda a primeira fila finge que não se passa nada enquanto Hu é escoltado para fora da sala. Hu Chunhua, vice-primeiro-ministro e, tal como Li Keqiang, um dos protegidos de Hu (é conhecido como “pequeno Hu”), não se move e permanece de braços cruzados enquanto o seu mentor passa pelas suas costas.

Acaso ou purga ao estilo maoísta?

O incidente aconteceu pouco depois de os representantes da comunicação social terem sido admitidos na grande sala do congresso, e as equipas de televisão ainda estavam a instalar as câmaras no balcão em frente ao palco. Por essa razão as filmagens são tão instáveis. 

A coincidência de a saída à força de Hu acontecer apenas quando os jornalistas já estavam presentes (antes, tinha havido votações à porta fechada) reforçou a leitura de que tudo se tratou de uma ostensiva demonstração de força de Xi Jinping, para mostrar que até os seus críticos mais poderosos podem ser saneados.

Hu era, de facto, um dos críticos mais notórios de Xi, que tem conduzido a China num processo de fechamento e concentração de poder ao arrepio dos que aconteceu nas décadas anteriores, desde os anos 80, com Deng Xiaoping, até aos anos 2000, com Hu. O ex-presidente era visto como o líder informal da facção ligada à Liga da Juventude Comunista, de onde saíram altos quadros como o ainda primeiro-ministro Li Keqiang ou o vice-PM Hu Chunhua. Neste congresso, ambos foram afastados de qualquer cargo político - tendo, previsivelmente, terminado as respetivas carreiras políticas.

Mas há quem acredite que tudo pode não ter passado de um mal-entendido, e que terão sido mesmo razões de saúde - e não de política - a ditar a atribulada saída de cena de Hu. Joseph Torigian, especialista norte-americano em China e Rússia, professor na American University e investigador do think tank de relações internacionais Wilson Center, defende que aquilo que aconteceu no sábado pode não ter sido uma purga em direto e a cores. 

O académico lembra que o ex-presidente tem problemas de saúde há muitos anos, e é um facto que se mostrou fisicamente frágil durante o congresso, e no incidente de sábado passado parece até um pouco desorientado. apesar disso, Hu fez questão de marcar presença na sessões públicas do congresso.

Estaria Hu a preparar-se para votar contra Xi nas votações que ainda faltavam (nomeadamente nas alterações à constituição do PCC, que colocaram o essencial do pensamento de Xi no núcleo da carta do partido)? Torigian não acredita nessa hipótese, pois lembra que o ex-presidente é “o produto de décadas de um sistema em que todos são ensinados que os interesses do partido vêm em primeiro lugar. Mesmo que se discorde de algo, não se exprime abertamente, porque só pioraria a situação para todos e para si em particular”. Ou seja, põe de parte aquela que poderia ter sido a motivação para o súbito afastamento do ex-líder.

E os métodos de Xi, e a tradição do PCC, argumenta o especialista norte-americano, também não indicam um plano para a humilhação pública de Hu. “O estilo de Xi Jinping é minar lenta e deliberadamente as pessoas com alguma fineza política, e não fazer algo súbito e chocante como uma purga num Congresso do Partido”, defende Torigian numa série de comentários no Twitter. Para além disso, “a política chinesa é uma luta de facas, mas não é típico do líder agir de uma forma que contraria as normas de forma mais óbvia do que é realmente útil” - e esta ação não é útil, na medida em que provoca “má imprensa”: “Como vimos, as pessoas interpretaram imediatamente o que aconteceu a Hu da pior forma possível, e isso teve um impacto real, por exemplo, na visão empresarial da estabilidade do PCC.”

Também há o pormenor de, nessa noite, a televisão estatal ter mostrado uma imagem de Hu Jintao numa notícia sobre o encerramento do congresso (não da sua saída, mas de um momento anterior ao incidente). Daí, muitos têm concluído que, se tivesse acontecido uma purga, Hu simplesmente seria apagado desta história.

Mas também há bons argumentos contra estes. É verdade que nas últimas décadas os ajustes de contas no PCC se fizeram nos bastidores, mas também é um facto que o partido tem uma longa história de saneamentos públicos - durante o longo reinado de Mao Tse Tung, as purgas eram um instrumento de exibição de poder e de submissão do partido à vontade do líder - e não é por acaso que Xi é o líder mais parecido com o pai-fundador da China moderna.

Para além disso, muitos analistas têm notado que o passado e o precedente deixou de servir como bússola para a análise da China atual. Neste congresso, Xi rompeu com diversas tradições - desde logo, com aquela que ditava que os líderes só cumprissem dois mandatos e os dirigentes partidários se retirassem aos 69 anos. Xi tem 69 anos, vai para o terceiro mandato, e tem caminho aberto para ser líder vitalício. Também acabou com a tradição de liderança coletiva implementada depois de Mao, assim como obliterou a prática de incluir representantes de várias facções nos órgãos de topo do Partido Comunista.

Ou seja, invocar a tradição ou as regras (escritas ou não escritas) vale hoje menos do que valia no passado recente. Xi está a escrever as novas regras do PCC, de acordo apenas com a sua vontade.

E há um pormenor final que faz supor que Xi quereria - mesmo - fazer uma exibição de poder. Tudo no congresso do PCC é rigorosamente coreografado e planeado. O lugar de Hu, ao lado do de Xi, ficou vago durante um momento tão importante como o encerramento do congresso. Xi podia ter mandado os restantes dirigentes da linha da frente moverem-se, cada um, um lugar para a direita, para compor a imagem. Mas não. O lugar ao lado de Xi ficou vago e essa será a imagem que permanecerá para o futuro. Talvez fosse exatamente isso que Xi pretendia - para que ninguém se esqueça do que aconteceu com Hu Jintao. O que quer que tenha sido.

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