Xi Jinping tem todo o poder que quis. E vai precisar dele

22 out 2022, 12:09
Xi Jinping no 20º congresso do PCC

Xi Jinping pode ter alcançado todo o poder com que sempre sonhou mas terá tempos difíceis pela frente - ou “tempos interessantes”, como diz a velha maldição chinesa. Ele que "sofre do mesmo problema de Putin", "que é o facto de terem transformado os seus círculos de conselheiros políticos em câmaras de eco, de modo que as pessoas já não são capazes de falar livremente". Uma análise

O 20º congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) deu a Xi Jinping tudo o que este podia querer: reforçou o seu controlo sobre o partido - e, portanto, sobre o país e sobre as suas Forças Armadas -, encheu os órgãos partidários de topo com os homens da sua maior confiança, consolidou o seu pensamento como parte essencial do programa e dos princípios do PCC e sufragou a sua visão do país e do mundo. 

Xi não só confirmou um terceiro mandato como secretário-geral do PCC - que nenhum dos seus antecessores havia conseguido desde Mao Tse Tung - como o conseguiu em condições únicas. O poder conquistado por Xi e reforçado na longa cerimónia de coroação da última semana só tem paralelo com o poder de Mao, o fundador do PCC e primeiro líder da China moderna. Nos próximos cinco anos, Xi tem mãos livres para governar como quer na cúpula de um partido que deixou de ter uma direção colegial. 

As suas prioridades ficaram bem definidas no discurso com que abriu o congresso. Mas são muitos, e complexos, os desafios que enfrentará para concretizar essas prioridades. 

1. Consolidar o poder pessoal

Num partido vergado ao culto de personalidade, Mao acumulou títulos: era o “timoneiro”, o “grande líder”, o “presidente Mao”. Deng Xiaoping, o líder forte que se seguiu, foi elevado a “arquiteto chefe”. Depois de uma sucessão de lideranças que não deixaram lastro, Xi volta a estar no centro de um formidável culto de personalidade, de que é sintoma o regresso de títulos hiperbólicos. 

O epíteto absoluto de “lingxiu”, ou “líder”, costumava ser guardado para Mao, mas começa a ser cada vez mais aplicado a Xi na forma de “renmin lingxiu” - “líder do povo”. Segundo o Japan Times, dois dirigentes do Politburo referiram-se nestes termos a Xi durante o congresso e outras intervenções referiram-no com as mesmas palavras. Xi também é frequentemente descrito como o “núcleo do partido” ou o “líder máximo”. Joseph Torigian, professor especializado em China na American University, considera que “o desafio de Xi é usar esses títulos para aumentar ainda mais a sua estatura sem que isso faça ricochete". Isto porque o uso destes títulos honoríficos pode gerar ainda mais ressentimentos entre os que já veem o poder de Xi como excessivo. Talvez por isso o congresso terminou sem acrescentar formalmente novos títulos honoríficos a Xi. 

Desde os exageros do tempo de Mao, o culto do líder é visto com maus olhos por vários sectores da sociedade chinesa - e oficialmente repudiado pelo PCC.  De resto, após o turbulento regime maoísta, o partido adotou o princípio da liderança coletiva - que Xi, discretamente, voltou na prática a eliminar. E esse é um dos principais indicadores da bem-sucedida consolidação do seu predomínio sobre o partido. Mas há outros.

Depois de ter alterado em 2018 as regras do PCC, acabando com a limitação de dois mandatos sucessivos para o cargo de secretário-geral, neste congresso Xi não apenas prolongou a sua liderança (que poderá agora ser vitalícia, como foi a de Mao) como se promoveu alterações na carta estatutária do partido, moldando-a às suas ideias e aos seu princípios de governação. 

Expressões de Xi como “luta” ou “espírito combativo” foram acrescentadas na parte sobre as ameaças que a China enfrenta. E as palavras “prosperidade comum” foram incluídas onde a constituição do partido fala sobre redistribuição de riqueza.  Mais um passo na afirmação do seu domínio sobre o partido, depois de o "Pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era" ter sido consagrado na Constituição da China em 2018. Nenhum dos antecessores imediatos de Xi (Jiang Zemin e Hu Jintao) tem qualquer pensamento ou teoria com o seu nome. Deng Xiaoping viu a sua teoria política incorporada na Constituição chinesa - mas antes de Xi só Mao deu nome a um “pensamento” que faz parte da lei fundamental do país.

Não é por acaso que por toda a China se veem dezenas de livros sobre o pensamento de Xi à venda lado a lado com os clássicos livrinhos vermelhos de Mao Tse Tung. São gestos como estes que solidificam uma posição de domínio como verdadeiro e único guia do partido, mas também um mito e uma herança.

O comunicado do Comité Central que precedeu o arranque do congresso não podia ser mais ilustrativo da centralidade do líder comunista na liderança e no ideário do PCC. “O Partido estabeleceu a posição central do Camarada Xi Jinping no Comité Central e no Partido como um todo e definiu o papel orientador do ‘Pensamento de Xi Jinping sobre o Socialismo com Características Chinesas para uma Nova Era’. Isto reflete a vontade comum do Partido, das forças armadas e do povo chinês (...) e tem um significado decisivo para fazer avançar a causa do Partido e do país na nova era e para impulsionar o processo histórico de grande rejuvenescimento nacional”, lê-se no documento. 

Xi também reforçou a subordinação das Forças Armadas ao partido e ao seu líder e teve mãos livres para escolher os homens que o vão acompanhar nos próximos cinco anos em todos os cargos decisivos do partido e do governo. O método de escolha dos dirigentes já é, por tradição, opaco, mas Xi assumiu para si todas as escolhas importantes e preencheu os órgãos com o critério principal de lealdade a si e ao seu pensamento. 

2. Conter os opositores

A forma como Xi controlou este congresso e domina o PCC significa que não tem opositores? Claro que tem. Dentro e fora do partido. A história do PCC é uma longa história de tensões e disputas (quase sempre nos bastidores mas às vezes bem às claras) e Xi, apesar de ter afastado muitos dos seus críticos, sobretudo com o argumento da luta contra a corrupção no partido, não os eliminou. Pelo contrário: os saneamentos que já levou a cabo criaram ressentimentos e aumentaram a lista de inimigos. 

Dentro do partido há os que foram afastados e silenciados, há os velhos dirigentes que sentem que se tornaram apenas decorativos e há os reformadores que gostam pouco da abordagem centralizadora e do fechamento de Xi - uma geração formada no ambiente de modernização e abertura dos anos 80, sob a liderança de Deng Xiaoping, e que vê o atual secretário-geral a combater esse espírito, revertendo muito do caminho feito nas três décadas anteriores à sua chegada ao poder. Também há os velhos maoístas que desconfiam da espécie de gelatina ideológica em que se tornou o pensamento de Xi.

Fora do partido também não faltam forças contra o novo “imperador” da China. Destacam-se dois grupos: os grandes empresários e novos magnatas do capitalismo chinês, cuja margem de manobra está a ser fortemente restringida por Xi - o punho do Estado começou por se fechar sobre as grandes empresas tecnológicas; e os que defendem a continuação das reformas democráticas, destacando-se professores universitários, estudantes, jornalistas e ativistas pró-democracia.

3. Evitar a síndrome de Putin 

Mas o maior obstáculo à consolidação do poder de Xi poderá ser o próprio Xi, sobretudo se a sua obstinação centralizadora começar a prejudicar o crescimento económico do país. O acordo tácito entre a população e a elite chinesa pressupões que estes podem governar de forma autocrática desde que as condições de vida no país continuem a melhorar. Esse pressuposto ficará em risco se a China deixar de ter os índices de crescimento próximos dos 10% que teve nas últimas décadas. Erros como a política de covid zero podem estar a pôr em causa esse contrato social.

"Penso que o pior inimigo da longevidade de Xi Jinping no governo da China é o próprio Xi Jinping", disse à CNN Internacional Steve Tsang, director do Instituto SOAS China, em Londres. "É quando ele comete um enorme erro político que causa estragos na China que pode potencialmente iniciar o processo de desmantelar o domínio de Xi Jinping no poder."

Segundo este analista, Xi e Vladimir Putin "sofrem do mesmo problema de síndrome do homem forte, que é o facto de terem transformado os seus círculos de conselheiros políticos em câmaras de eco, de modo que as pessoas já não são capazes de falar livremente", acrescenta Tsang. "Estamos a ver grandes erros serem cometidos porque esse debate político interno foi reduzido ou mesmo eliminado em termos do seu alcance" - é o caso da política de tolerância zero com a covid (já lá vamos).

4. Controlar o “caos” 

Poucos dias antes do arranque do congresso, um insólito protesto contra o PCC e Xi Jinping agitou Haidian, uma localidade no noroeste da cidade de Pequim - e as redes sociais chinesas. Duas tarjas com inscrições contra o partido único da China e o seu líder máximo foram colocadas num viaduto. Uma apelava à greve para derrubar “o ditador e traidor nacional Xi Jinping”. Na outra lia-se: "Não aos testes covid, sim à comida. Não ao confinamento, sim à liberdade. Não à mentira, sim à dignidade. Não à revolução cultural, sim à reforma. Não ao grande líder, sim ao voto. Não seja um escravo, seja um cidadão".

As autoridades chinesas reagiram com toda a força do seu aparelho repressivo. A polícia foi destacada em força para o local, tendo detido o autor da façanha - aparentemente, terá sido um protesto solitário -, interrogado transeuntes e lojistas e dispersado os curiosos. Mas, mais importante do que isso, a máquina de censura chinesa tratou de apagar todas as referências a este caso na internet, sobretudo nas redes sociais. Antes disso, as fotos desse momento alastraram pelas redes sociais chinesas como fogo em capim seco. Depois desapareceram, assim como todas as referências ao incidente. Tornou-se impossível escrever as palavras Pequim, viaduto, ponte, ou Haidian. Uma canção chamada Ponte Sitong (onde aconteceu o protesto) foi retirada das plataformas de música online. 

Utilizadores do Weibo (a cópia chinesa do Twitter) viram as suas contas suspensas por terem partilhado imagens das tarjas ou por terem escrito sobre o assunto. O mesmo aconteceu no WeChat. Há relatos de que um homem terá sido preso por ter partilhado fotografias do protesto no Twitter, que pode ser acedido na China por quem tenha VPN.

A repressão e a censura têm uma longa história na China comunista, mas com o aparecimento das redes sociais o desafio de controlar todas as comunicações exigiu uma máquina colossal - Xi Jinping assumiu esse desafio. Os seus antecessores haviam permitido muito mais liberdade no acesso à internet, admitindo alguma margem de manobra a opositores e ONG. Muitos académicos e ativistas tornaram-se bloggers destacados, com espaço para críticas ao governo, embora sob vigilância. 

Isso acabou com Xi. Em 2020, segundo a Economist, o PCC terá gasto mais de 6 mil milhões de euros só em ações de censura - e esta é só uma parte da realidade. A outra parte é assegurada pelos operadores, que não podem permitir nas suas plataformas a mais vaga crítica às autoridades. 

O controlo, que já era imenso, apertou-se ainda mais com a covid. A proteção da saúde pública foi a justificação para afinar ainda mais a máquina de vigilância e controlo. Com as políticas implementadas com a covid, a China tem a capacidade para rastrear os movimentos de praticamente todos os seus cidadãos. E limitá-los. 

Dezenas de milhões de cidadãos são submetidos a testes a cada três dias, ou duas vezes por semana, e as entradas e saídas dos edifícios continuam a ser controladas por seguranças e máquinas que medem as temperaturas e registam quem passa. E são inúmeros os relatos de pessoas que viram os seus códigos de saúde subitamente alterados nas apps de controlo de covid, obrigando-os a ficar em casa ou impedindo-os de sair do seu bairro ou da sua cidade. 

Os recursos humanos e tecnológicos envolvidos nesta operação de vigilância e censura são colossais. Segundo uma investigação do jornal Nikkei Asia, a rubrica de “segurança pública” - que inclui a ordem pública e o controlo de abusos de liberdade de expressão - chegou aos 210 mil milhões de dólares em 2020. Este valor mais do que duplicou em dez anos (incluindo oito anos de liderança de Xi). Mais: é um valor 7% superior ao orçamento de Defesa da China no mesmo ano. Isto, mesmo tendo em conta que a China é o país que mais tem aumentado anualmente os seus gastos militares…

Hong Kong, em tempos uma democracia funcional, viu as suas liberdades esmagadas nos últimos dois anos, primeiro à boleia das políticas anticovid e depois com o argumento da manutenção da ordem pública. Na abertura do congresso, Xi congratulou-se por ter assegurado o “controlo total” da antiga colónia inglesa, o que permitiu a "grande transição do caos para a governação". Por “caos” Xi entende uma democracia plural, com liberdade de expressão, de imprensa, de associação, de manifestação - enfim, tudo o que é garantido por uma democracia liberal. 

5. Impedir um descalabro “à soviética”

Um dos momentos mais importantes para a formação da persona política de Xi Jinping foi a desagregação da antiga União Soviética. Nesse período, Xi testemunhou o tal tipo de “caos” que o atormenta. A URSS era o “farol” do comunismo e em pouco tempo desapareceu, em consequência do processo de democratização lançado por Mikhail Gorbachev. Foi uma lição para Xi sobre os riscos de perder o controlo político e social de um país enorme, multiétnico e multicultural. Esse trauma ainda hoje guia a obsessão de Xi com o controlo da sociedade pelo partido.

Até porque Xi assumiu para si o papel de porta-bandeira do comunismo internacional. “O socialismo com características chinesas tornou-se o porta-estandarte do desenvolvimento socialista do século XXI", defendeu Xi num artigo publicado antes do congresso. "Temos a responsabilidade, a capacidade e a confiança de fazer contribuições históricas para o progresso do socialismo científico. (...) O nosso destino reside no caminho que escolhemos. Se enveredarmos pelo caminho errado, não alcançaremos os nossos objectivos e poderemos mesmo quebrar o grande rejuvenescimento da civilização chinesa."

6. Afirmar a China como superpotência global  

"A partir deste dia, a tarefa central do PCC será liderar o povo chinês de todos os grupos étnicos num esforço concertado para realizar o Objectivo do Segundo Centenário de transformar a China num grande país socialista moderno em todos os aspetos e fazer avançar o rejuvenescimento da nação chinesa em todas as frentes através do caminho chinês para a modernização." As palavras de Xi Jinping na abertura do congresso assumem um objetivo claro: a China como maior potência global quando se cumprirem 100 anos da atual República Popular (fundada em 1949). Isso significa ultrapassar os Estados Unidos como maior economia do mundo (falaremos de economia mais abaixo) e suplantar os EUA enquanto superpotência militar.

Sob a liderança de Xi, o Exército Popular de Libertação (EPL, nome oficial das Forças Armadas da China) conheceu um crescimento e modernização sem paralelo na história recente. Os dois milhões de soldados do EPL viram-se com armamento novo e capacidades operacionais nunca antes existentes, sobretudo na Marinha e Força Aérea. A tecnologia de mísseis passou para um novo patamar.

Por outro lado, Xi orientou uma mudança profunda nas chefias militares, com milhares de oficiais, alguns de alta patente, afastados sob acusações de corrupção. Num país a braços com uma corrupção endémica, em muitos casos as acusações seriam fundamentadas, mas em muitos outros terão sido uma forma de afastar elementos desalinhados do pensamento do grande líder, à semelhança do que aconteceu nas estruturas de topo do PCC.

Para o futuro, Xi promete acelerar ainda mais esse reforço e modernização, melhorando o seu equipamento, tecnologia e capacidade estratégica. "Precisamos de reforçar de forma abrangente o treino militar e a preparação para a guerra, melhorar a capacidade do Exército Popular de Libertação para vencer (...) através da atualização da tecnologia de defesa", assumiu o presidente chinês, prometendo construir umas forças armadas de “classe mundial”. A China, disse, “tem de estar preparada para perigos em tempos de paz”.

O líder chinês apresentou uma visão abrangente para esse poderoso aparelho militar. Por um lado, falou em “estabelecer um sistema forte de dissuasão estratégica”, o que indicia nova aposta de Pequim no seu arsenal nuclear quando as preocupações globais perante os riscos de uma guerra atómica são exacerbadas pelas ameaças russas e norte-coreanas. Por outro lado, realçou a aposta em “forças do novo domínio, com novas capacidades de combate”, o que será uma referência ao apuramento das capacidades de guerra cibernética mas também de drones e outros tipos de armamento não tripulado e altamente tecnológico, inclusivamente com recurso a inteligência artificial. 

Na pirâmide de comando, Xi quer fazer outra revolução: implementar mudanças radicais na liderança da Comissão Militar Central, garantindo o total domínio de Xi sobre os militares. Também neste caso esta é uma consequência das falhas que o líder chinês identificou na história do desmoronamento da URSS.

Toda a retórica e ação de Xi indicia uma China ainda mais belicista e potencialmente mais ameaçadora do status quo no Indo-Pacífico. Seja em relação a Taiwan, seja em relação aos muitos vizinhos com os quais Pequim tem protagonizado conflitos territoriais por domínio marítimo, reivindicando soberania sobre águas internacionais ou sob tutela de outros países. Para fazer frente ao poderio militar dos EUA e seus aliados, a China tenciona aumentar a sua esfera de influência a todo o Pacífico e até à costa ocidental de África, onde tenciona estabelecer bases navais. O objetivo será “cercar” os EUA pelo Atlântico e pelo Pacífico, como a velha URSS pretendeu fazer no auge da Guerra Fria.

7. Liderar a aliança antiocidental

Quando recebeu Putin em Pequim, em fevereiro, na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, Xi Jinping sabia que o Kremlin estava a preparar a invasão da Ucrânia mas isso não o impediu de declarar uma “amizade sem limites” com o seu “amigo” Vladimir. O longo comunicado que saiu dessa cimeira era esclarecedor sobre o interesse comum de chineses e russos nessa aliança: era o núcleo duro de uma “nova ordem mundial” contrária à hegemonia das últimas décadas dos EUA e dos seus aliados.

"A actual ordem internacional está enraizada em normas intrinsecamente antagónicas aos princípios organizadores nos quais o sistema do Partido Comunista Chinês se baseia e, portanto, é vista como uma ameaça permanente à legitimidade do regime", resumiu Nadège Rolland, analista de questões de segurança, num relatório entregue ao Congresso dos EUA e citado num artigo recente da agência Lusa.

Xi não esconde o objetivo de liderar essa frente antiocidental e essa é a razão por que se recusou até hoje a condenar a invasão russa da Ucrânia, apesar de Pequim e Kiev terem historicamente excelentes relações e terem sido ao longo de anos fortes parceiros comerciais. É também a razão por que a China tem protegido a Coreia do Norte de novas sanções no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Não é que Pequim não perceba que há riscos na imprevisibilidade de Kim Jong-un, e ainda mais tendo acesso a armas nucleares - por reconhecer esse perigo é que a China aprovou no passado várias sanções internacionais a Pyongyang para tentar travar o seu programa nuclear e de mísseis. Mas, no contexto da “nova Guerra Fria”, voltámos ao tempo em que o inimigo do meu inimigo meu amigo é. 

Ao mesmo tempo que os EUA reúnem em Washington as democracias do mundo, Pequim contesta o que chama de “visão ocidental” da democracia - que considera caótica e decadente - e promove uma frente de autocracias e “democracias iliberais”, como agora se chamam. "Hoje existem cerca de 130 partidos socialistas ou comunistas ativos em 100 países. Muitos países em desenvolvimento olham para a China com inveja e querem aprender sobre a nossa experiência de governação”, disse Xi Jinping, assumindo-se como porta-estandarte da causa autocrática.

A China conseguiu nos últimos anos aumentar a sua influência junto de inúmeros países em desenvolvimento, e até países da UE, graças a programas maciços de investimento em infraestruturas e volumes enormes de empréstimos, por regra com condições draconianas. O projeto internacional de infraestruturas Belt and Road, uma das políticas com a assinatura de Xi Jinping, aproveitou a tendência de isolacionismo norte-americano e as dificuldades económicas do Ocidente pós-crise financeira para marcar pontos em diversas geografias, com a construção de portos, linhas ferroviárias ou autoestradas, ligando o leste da Ásia à Europa, Médio Oriente e África. 

Porém, será mais difícil prosseguir esse caminho de seduzir amigos com dinheiro se o dinheiro faltar - e o abrandamento da economia chinesa poderá ter essa consequência e dificultar a continuação do projeto Belt and Road.

Por outro lado, nesta afirmação global, a China patrocinou diversos fóruns multinacionais alterativos e assumiu uma diplomacia com “espírito lutador”. Foi isso mesmo que disse esta semana o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, à margem do congresso, quando apresentou o “Pensamento de Xi Jinping sobre relações externas da China”. "A diplomacia chinesa continuará a demonstrar espírito de luta, a melhorar a nossa capacidade de luta, a estar sempre pronta na linha da frente para proteger o nosso interesse e dignidade nacional."

Curiosamente, a declaração foi feita quando a China se envolveu num conflito diplomático com o Reino Unido por um manifestante pró-democracia ter sido agredido dentro do terreno do consulado chinês em Manchester. As palavras do vice-ministro foram ouvidas como a validação dessa agressão, que aconteceu em resposta a tarjas e cartazes que apelavam ao derrube de Xi. O “espírito lutador” da diplomacia chinesa, neste caso, incluiu espancar um ativista que participava numa manifestação legal numa rua de Inglaterra. 

Noutra declaração sobre política externa, feita pelo Plenário do Comité Central antes do arranque do congresso, o PCC acabou por reconhecer que, mais do que lutar por uma nova ordem global multipolar, a prioridade da diplomacia chinesa é mesmo a defesa do interesse nacional. O partido, lia-se nesse documento "deu prioridade aos interesses nacionais e colocou a política interna em primeiro lugar, manteve a paciência estratégica, demonstrou espírito de luta, lutou para salvaguardar a dignidade nacional e os interesses centrais".

8. Vencer o braço de ferro com os EUA

Há anos que Xi Jinping se convenceu que o futuro é da grande China e que os EUA são uma potência em decadência. Vê sinais dessa decadência no fraco ritmo de crescimento económico americano nas últimas décadas, em comparação com a China, mas também na profunda divisão política da sociedade norte-americana, que teve o seu auge na invasão do Capitólio por republicanos acicatados por Donald Trump. As fraturas que também marcam outros países ocidentais, com a concretização do Brexit, a ascensão de políticos iliberais e antissistema de extrema-direita ou as tensões provocadas pelo combate à covid são outros sinais desse plano inclinado, segundo Xi.

O braço de ferro com os EUA é aquele que Xi precisa de vencer. Antes da pandemia, e com Trump na Casa Branca, Xi parecia estar a ter algum sucesso na estratégia de dividir o Ocidente. Mas o surgimento da covid na China, o seu impacto global e as consequências que ainda hoje se fazem sentir da pandemia dificultaram a causa chinesa. E deixaram à vista a verdade desconfortável de que boa parte do mundo estava dependente da China para a produção de bens básicos - e o acesso a esses bens estava dependente de cadeias de produção e de distribuição sobre as quais a China tinha mais controlo do que qualquer outro ator. 

Surgiu aí uma vontade de desacoplar as economias ocidentais da economia chinesa ou, pelo menos, de reduzir a dependência. A concretização dessa desacoplagem começa a fazer o seu caminho, sobretudo nos EUA (mas também na Europa, que quer ressuscitar o seu tecido industrial), e as consequências serão imprevisíveis. 

Entretanto, a guerra comercial entre os EUA e a China, que Donald Trump promoveu sobretudo como arma de afirmação ideológica, prossegue sob a administração Biden e entrou numa fase particularmente dolorosa para Pequim: as leis aprovadas este mês em Washington, restringindo de forma inédita o acesso da China a tecnologia de ponta norte-americana, sobretudo no sector dos semicondutores mais avançados, podem ser decisivas para atrasar por muitos anos a indústria tecnológica chinesa. 

A nova estratégia de segurança nacional revelada pela Casa Branca revela como prioridade conter a ascensão da China, ao mesmo tempo que volta a sublinhar a importância de trabalhar com aliados para enfrentar os desafios que se colocam às nações democráticas - nomeadamente face à Rússia e, sobretudo, à China. "A República Popular da China tem a intenção e, cada vez mais, a capacidade de remodelar a ordem internacional em favor de uma ordem que incline o campo de jogo global em seu benefício, mesmo quando os Estados Unidos continuam empenhados em gerir responsavelmente a concorrência entre os nossos países", disse o conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan ao apresentar a nova política.

Também o Reino Unido está a endurecer os termos em que se refere à China. O governo de Liz Truss, entretanto demissionário, revelou que tencionava designar oficialmente a China como uma “ameaça” ao Reino Unido, substituindo a atual designação “competidor sistémico”. E também a União Europeia está a endurecer a forma como encara as ameaças chinesas (apesar de a Alemanha se mostrar ansiosa por voltar a fazer negócios com a China). Os direitos humanos são sempre uma pedra no sapato e Taiwan pode ser o ponto de não retorno.

9. Relançar a economia

A economia da China está em maus lençóis. Não é a única, longe disso, num momento em que o mundo enfrenta riscos de recessão - mas esta é a novidade em relação pelo menos aos últimos vinte anos: a economia global está a abrandar e a China não é uma exceção. Pelo contrário, este ano a economia chinesa poderá crescer menos do que a média das economias da Ásia-Pacífico. Num relatório publicado em finais de setembro, o Banco Mundial reduziu as suas perspetivas de crescimento da China este ano para 2,8%, contra os 5% previstos em abril e os 5,5% que continuam a ser a previsão das autoridades de Pequim, feita em março. Se assim for, a China crescerá menos do que a média da Ásia-Pacífico pela primeira vez em mais de três décadas.

No segundo trimestre do ano a economia chinesa estagnou (0,4%) e a expectativa é grande sobre o terceiro trimestre - esses dados já deviam ser conhecidos mas as autoridades adiaram a sua publicação por causa do congresso do PCC. Um ato invulgar, que faz crescer a desconfiança em relação ao desempenho da economia chinesa. Não foi adiada apenas a revelação do PIB trimestral mas também os dados de setembro relativos a produção industrial, vendas a retalho, preços da habitação, comércio externo e desemprego. Todos indicadores relevantes, mas em particular este último, tendo em conta que o desemprego entre os jovens está nos 19%.

Entretanto, o yuan está a desvalorizar fortemente em relação ao dólar - na sexta-feira atingiu o valor mais baixo desde a crise financeira de 2008. A depreciação já obrigou o Estado chinês a entrar em campo, através de fundos que lhe estão ligados, para estabilizar o moeda. 

Em setembro, o primeiro-ministro Li Keqiang, que está de saída do cargo, exortou os governos locais a acompanharem o governo central com medidas imediatas para estabilizar a economia. "A nossa economia está neste momento a enfrentar muitos desafios e dificuldades. (...) Temos de concentrar todos os esforços na implementação de medidas para estabilizar a economia."

A economia chinesa está a ser prejudicada pelo abrandamento global, pela guerra na Ucrânia e pela subida da inflação - tudo tem contribuído para a diminuição da procura de produtos produzidos na China, um país fortemente dependente do comércio internacional. 

Mas também há fatores internos que estão a prejudicar o crescimento, hoje bem longe dos tempos em que se cifrava nos dois dígitos ou perto disso. A principal causa interna para o arrefecimento da economia chinesa é a política de covid zero, que continua a impor restrições à circulação, confinamentos parciais e gerais em bairros, cidades e províncias - muitas vezes devido apenas a uma dezenas de casos. A produção industrial tem sido abalada, o emprego também, o rendimento disponível das famílias idem - com reflexos tanto nas exportações como na procura interna. 

Além deste mal autoinfligido, a China também foi afetada este ano por uma onda de calor recorde e por secas severas, que atingiram o complexo de centrais hidroelétricas de Sichuan, que fornece energia a diversas províncias industriais do país. Os cortes de energia agravaram ainda mais as perturbações nas cadeias de abastecimento e no tecido industrial.

No congresso, Xi não só não apontou soluções para os problemas económicos do país (que também passam por uma forte crise na bolha imobiliária chinesa) como reafirmou que irá manter em vigor a política de covid zero.

10. Garantir a autossuficiência

Xi Jinping e a mulher, Peng Liyuan (créditos: Xinhua via AP)

Num discurso em que falou muito de “desafios” e “tempestades” que a China tem pela pela frente, Xi avisou que o país terá de se preparar para “todas as crises”. "Devemos ter um sentido apurado de crise e fazer preparativos minuciosos. Só assim poderemos estar à altura dos desafios que temos pela frente." 

Ouvindo-o, Xi parecia estar a refletir sobre as lições que tem retirado da guerra russa na Ucrânia e das sanções ocidentais sobre o regime de Putin. É como se Xi estivesse a anotar tudo o que tem corrido mal a Putin para precaver esses mesmos revezes se (ou quando) a China estiver em conflito com os EUA e o Ocidente (provavelmente por causa de Taiwan). Ou seja, como garantir os meios para uma operação militar bem-sucedida, e, mais do que isso, como preparar a China para sanções ocidentais como aquelas que têm sido aplicadas a Moscovo.

O líder chinês destacou a importância de reforçar a segurança nacional e melhorar a protecção das infraestruturas e redes, bem como a segurança de dados, a biossegurança e os recursos nucleares e espaciais. "Temos de melhorar a nossa capacidade de combater as sanções estrangeiras, as interferências e a jurisdição de braço longo", disse, numa referência às sanções ditadas pelos EUA em relação a países adversários. 

Xi também realçou a urgência de trabalhar para a autossuficiência chinesa nos sectores alimentar, energético e tecnológico - neste caso, uma necessidade tornada mais evidente pelas sanções dos EUA em relação à exportação de chips e tecnologia de ponta norte-americana para clientes chineses.

11. Cumprir “reunificação” de Taiwan

O momento em que os 2300 delegados ao congresso do PCC aplaudiram com mais vigor as palavras de Xi Jinping foi quando este prometeu resolver a “questão de Taiwan”, se necessário pela força, e sem dar qualquer relevo à vontade do povo taiwanês. “Reunificação” é a palavra utilizada para este processo - mas é tecnicamente incorreta, pois Taiwan nunca esteve sob controlo de Pequim desde a criação da República Popular da China, em 1949, o mesmo ano em que foi proclamada a República da China (vulgo, Taiwan), pelas forças derrotadas da guerra civil chinesa.

Alheio a estes detalhes, para Xi a inevitabilidade da “reunificação” é indiscutível. "As engrenagens históricas da reunificação nacional e do rejuvenescimento nacional estão a avançar. A reunificação completa da nossa pátria deve ser realizada e pode definitivamente ser realizada", declarou aos congressistas, explicando que essas engrenagens históricas são alheias à vontade dos taiwaneses: “A resolução da questão de Taiwan é um assunto para o próprio povo chinês, a ser decidido pelo povo chinês." 

Embora garanta que prefere e “tudo fará” para uma “reunificação pacífica”, Xi reafirmou o que já havia dito no passado: "Não renunciaremos ao uso da força e tomaremos todas as medidas necessárias para deter todos os movimentos separatistas". Um aviso aos próprios “separatistas” mas também “à interferência de forças externas” - leia-se: os Estados Unidos e aliados, como o Japão. Xi já declarou a reunificação como “missão histórica” do PCC e parece mais determinado do que nunca a consegui-lo.

Em reação às suas palavras no congresso, na segunda-feira o secretário de Estado norte-americano Anthony Blinken admitiu que uma invasão chinesa de Taiwan “vai ser mais cedo do que antecipávamos”. Na mesma linha, o almirante Michael Gilday, chefe das operações navais dos EUA, alertou na quarta-feira que a invasão de Taiwan “pode acontecer ainda este ano ou em 2023”. O responsável militar norte-americano citou o discurso de Xi mas, mais do que isso, invocou em defesa da sua tese a forma como chineses se comportam: “Nos últimos 20 anos, eles cumpriram todas as promessas antes do prazo estabelecido. Quando falamos de uma janela até 2027 [para a invasão de Taiwan], não podemos excluir um prazo potencial até 2023 ou mesmo 2022”.

12. Encontrar uma estratégia para a covid

Durante os últimos meses, observadores internacionais e chineses ligaram a insistência de Xi na política de covid zero à realização deste congresso do PCC. A tolerância zero contra a covid tem a assinatura de Xi Jinping e nunca seria abandonada antes da consagração do líder, que tem apresentado esta estratégia como um sucesso. Como se previa, Xi declarou perante os congressistas, e o mundo, que o combate da China à pandemia tem sido exemplar; ao contrário do que seria previsível, não deu qualquer indício de que possa vir a alterar essa política - jurou que será prosseguida.

Segundo Xi, a insistência na política de covid zero protegeu vidas e, ao mesmo tempo, a economia. "Aderimos ao princípio de 'as pessoas primeiro, a vida primeiro'", disse Xi, congratulando-se porque “[a política] protegeu ao máximo a vida e a saúde das pessoas e alcançou grandes resultados na coordenação da prevenção e controlo da epidemia e do desenvolvimento económico e social".

De facto, a mortalidade por covid na China é infinitamente inferior aos índices registados no países ocidentais, mas o custo é um país e uma economia que continuam reféns do novo coronavírus, ao mesmo tempo que o resto do mundo se tornou capaz de viver com ele e retomou a normalidade.

Milhões de cidadãos na China (eram quase 200 milhões na semana passada) continuam sob fortes restrições por causa do SARS-Sov2, seja em isolamento domiciliário ou em internamento compulsivo em centros de quarentena, seja com restrições de circulação no seu bairro, na sua cidade ou na sua província. Isto apesar de os índices de contágio serem extremamente baixos. Em setembro, as únicas mortes na China relacionadas com covid foram a de 23 pessoas que seguiam de madrugada num autocarro que as levava para um centro de quarentena a 300 quilómetros da sua cidade, Guiyang. 

A aproximação do congresso do PCC levou os governos locais por toda a China a redobrar esforços, impondo mais bloqueios preventivos e proibições gerais para eliminar surtos. Os controlos mais apertados de covid-19 levaram muitas pessoas a abandonar os planos de viagem durante a chamada “golden week”, ligada ao feriado do Dia Nacional. E a obrigação de testagem e os bloqueios à circulação em Pequim foram ainda mais acentuados, talvez para limitar o risco de que qualquer incidente manchasse a cerimónia de “coroação” do grande líder.

As consequências, além de grande descontentamento social, veem-se sobretudo na economia, como se escreveu acima.

Tudo isso poderia ser aliviado daqui em diante, mas depois de dois anos com a política de covid zero a China enfrenta vários problemas para fazer o mesmo que aconteceu noutros países. O primeiro é político. A luta contra a covid não é apenas uma questão de saúde pública, é sobretudo uma bandeira política - a demonstração de que o “modelo chinês” é melhor do que o ocidental e a prova de que a liderança de Xi Jinping é superior a qualquer outra. Depois de declarar “grandes vitórias” e “um feito histórico” no combate à covid, não faria sentido mudar subitamente de estratégia. 

Mas o tudo mudou, certo? 1) as variantes dominantes da covid são mais contagiosas e menos agressivas; 2) agora há vacinas eficazes a proteger de doença grave; 3) as populações já foram expostas ao vírus, o que cria algum grau imunidade, reforçado pela vacinação, certo? Sim. Mas não na China. 

A política de covid zero protegeu a esmagadora maioria da população de contactar com o vírus, mas isso significa que a imunidade natural devido à exposição ao vírus é muito baixa. Por outro lado, as vacinas chinesas são demonstradamente menos eficazes do que as ocidentais, sobretudo as que utilizam a tecnologia inovadora de RNA mensageiro. Mais: a população chinesa em geral tem boa cobertura vacinal, mas não os mais velhos, que são os mais frágeis perante o vírus.

Ou seja, relaxar agora o combate à covid poderia significar uma catástrofe para a China. Segundo uma simulação recente, podiam morrer nos primeiros seis meses 1,6 milhões de pessoas. Por isso, o Global Times, jornal em língua inglesa do Partido Comunista Chinês, escrevia recentemente: "Assim que a prevenção e o controlo da epidemia forem relaxados, um grande número de pessoas será infetado num curto espaço de tempo, um grande número de casos graves e mortes ocorrerão”.

Xi Jinping pode ter alcançado todo o poder com que sempre sonhou mas terá tempos difíceis pela frente. Ou “tempos interessantes”, como diz a velha maldição chinesa.

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