ANÁLISE. Visita de Emmanuel Macron à China fez abrir bocas e revirar olhos, mas também acenar algumas cabeças. Ex-governantes, deputados, eurodeputados e analistas explicam as várias faces destes (e de outros) dados lançados.
A entrevista do Presidente de França e o seu encontro com Xi Jinping contrastaram com as posições da Comissão Europeia, em particular com as de Ursula von der Leyen. Entre os eurodeputados e os think tanks, ouvem-se críticas. Junto da NATO, até ironias. Mas a diplomacia portuguesa não condena “o realismo” de Emmanuel Macron. Pelo contrário, é também o seu. Pelo menos, por enquanto.
Uma eurodeputada condena o timing e teme o pior. Um ex-ministro subscreve que Portugal não se deve intrometer na questão de Taiwan. O presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros rejeita a sobreposição, quando não confusão, entre o que é político e o que é económico. Uma antiga governante, também investigadora, considera que essa sobreposição é inevitável neste século. A autonomia estratégica de Macron não é independente da sua indústria de Defesa. “Nem do seu contexto interno”, apontam.
Com a França dividida em casa, Macron acabou por dividir a Europa fora dela.
Presidentes em viagem
Em Bruxelas, não há consenso fora da crítica ao timing deslocado do presidente francês. Em Portugal, o posicionamento nacional entre o choque dos gigantes não é unânime, nem entre partidos, nem entre governos, nem entre embaixadores.
Para onde ir quando não se sabe onde vai o mundo? Ninguém sabe. E poucos concordam entre si.
Talvez nada ilustre melhor o imbróglio do que a agenda. Na semana em que a presidente de Taiwan visitou os Estados Unidos da América, Emmanuel Macron foi à China defender que a Europa se deve manter alheia aos assuntos da ilha. Ao mesmo tempo, Pequim ordenava manobras militares em seu redor. Três semanas antes, Xi Jinping brindava com Vladimir Putin no Kremlin.
Se não percebe à primeira, não se apoquente, porque ninguém percebeu inteiramente.
Num primeiro olhar, o último ano foi marcado por uma revitalização do eixo transatlântico (entre os Estados Unidos da América e a Europa) e por uma manutenção da “parceria sem limites” entre a Rússia e a China, com Xi Jinping em Moscovo na sua primeira visita de Estado após ser reeleito e exercícios militares conjuntos entre os dois países.
Se a revitalização da NATO foi uma consequência clara da invasão da Ucrânia, a amizade entre Xi e Putin tem mais que ver com o mundo que sair da guerra do que com o mundo ainda em conflito. A visita de Emmanuel Macron a Pequim, acompanhado pela presidente da Comissão Europeia, também. E o contraste entre a mensagem do presidente francês e o discurso de Ursula Von der Leyen tem a ver com isso.
Para hoje e para amanhã
Leyen falou da importância de Taiwan, de um plano de paz viável não ceder território ucraniano, do risco da China fornecer armas à Rússia, da necessidade de maior reciprocidade. É uma visão sobre hoje, sobre o que se passa agora; sobre o que mudou de 2022 para 2023.
Macron falou de autonomia estratégica, de diálogo militar entre a China (neste momento em exercícios com a Rússia) e a França, e de uma Europa que não se deixe levar para crises que não são suas. É um olhar para amanhã, para depois, para a ordem internacional que virá a seguir à guerra na Ucrânia, para lá de 2023.
À primeira vista, parecem discursos díspares para dois líderes europeus que viajaram juntos para o mesmo país, do outro lado do planeta. E, de um modo, são. Mas o seu propósito distinto ajuda a deslindar esse contraste, assim como as funções diferentes que Macron e Leyen exercem.
Até ao final da primavera, todo o diretório europeu terá ido a Pequim. Scholz, Sánchez, Meloni, Macron. E só o último teve a coragem de anunciar o que todos realmente querem: não ficar colado à posição americana. António Martins da Cruz
Como notam os especialistas ouvidos pela CNN Portugal, Macron era um presidente de um país em visita de Estado à China e Leyen é presidente da Comissão Europeia sem poderes de política externa. O primeiro está focado primordialmente nos interesses do seu país; a segunda está limitada no que pode defender enquanto interesse europeu.
António Martins da Cruz, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e antigo embaixador de Portugal na NATO, salienta esse ponto. “A ida conjunta de Macron e Von der Leyen foi bem entendida pelos chineses. Ao contrário da sra. Leyen, os chineses conhecem os tratados que dizem quais as competências do presidente da Comissão Europeia”, ironiza.
De outro ângulo, Ana Santos Pinto, professora universitária e secretária de Estado da Defesa (2017-19), constata o mesmo. “Os Estados-membros da União continuam a ter as suas políticas nacionais. Macron fala só e apenas pela França”.
Se falou bem ou não, já é questão diferente. E as razões para o ter feito idem.
Para Martins da Cruz, "os países pequenos como Portugal e médios como Espanha e Itália têm de saber distinguir a política da economia" e é isso que explica que Sánchez tenha ido a Pequim e que Meloni o venha a fazer em breve. "Repare que, até ao final da primavera, todo o diretório europeu terá ido a Pequim. Scholz, Sánchez, Meloni, Macron. E só o último teve a coragem de anunciar o que todos realmente querem: não ficar colado à posição americana”.
No fundo, à ambiguidade chinesa sobre a guerra acrescenta-se uma ambiguidade europeia sobre a paz. Este texto é sobre ela.
A União Europeia é feita de consensualizações. E a relação com a China não está consensualizada. Ana Santos Pinto
Santos Pinto, por sua vez, identifica a ausência de unanimidade sobre a matéria em Bruxelas. “O que ficou claro com a visita Macron/Leyen é que existem posições divergentes sobre a forma como a UE se deve relacionar com a China. A União Europeia é feita de consensualizações. E a relação com a China não está consensualizada”, diagnostica. Acerca da primazia da economia sobre a política, a académica sustenta que “não é possível separá-las, no mundo que temos hoje, com o nível de interdependência que temos hoje”.
Sobre o conceito de autonomia estratégica, empunhado por Macron desde a sua chegada ao Eliseu, Ana Santos Pinto refere que “teoricamente tem razão”, mas que “era preciso ter trabalhado a consensualização europeia para aí chegarmos”. Ou seja, autonomia face às superpotências (EUA, Rússia, China) sim, mas a defesa do conceito não chega para concretizá-lo.
Segundo a especialista, o facto de o projeto europeu contar com 27 Estados, e de tanto a China como os Estados Unidos fazerem por condicionar cada um deles, bipolarizando, dificulta esse trabalho. E faz com que a autonomia permaneça no imaginário do presidente francês.
Compreensão institucional
Escutando os presidentes das comissões parlamentares portuguesas mais dedicadas ao tema, há uma compreensão institucional sobre as intervenções de Macron e a sua proposta de relação com a China.
Para Sérgio Sousa Pinto, presidente da comissão dos Negócios Estrangeiros e comentador da CNN Portugal, “os interesses entre os países europeus e os da NATO são convergentes, mas não se sobrepõem completamente. Existem, naturalmente, tensões entre os Estados Unidos e a Europa em resultado de existirem interesses diferentes dos dois blocos. Serem os nossos aliados naturais não invalida isso”, contextualiza. “No dia em que achássemos que os nossos interesses são exatamente os mesmos dos Estados Unidos, seríamos vassalos. Sermos as duas regiões mais próximas do mundo não significa uma coincidência total de interesses”.
Sobre Macron em particular, Sousa Pinto analisa. “Vivemos num mundo pós-europeu e presidente da França acredita que ainda é possível a Europa contar nesse mundo. Eu acredito que é preciso termos alguma esperança, sem deixar de olhar por cima do ombro”, remata.
No dia em que achássemos que os nossos interesses são exatamente os mesmos dos Estados Unidos, seríamos vassalos. Sérgio Sousa Pinto
Marcos Perestrello, que preside a Comissão de Defesa Nacional e foi duas vezes secretário de Estado da pasta, avalia positivamente “o diálogo como princípio” e qualquer tentativa de manter Pequim mais próxima do Ocidente que de Moscovo.
A aproximação de Macron a Pequim não pode ser lida, diz o parlamentar, sem ter em conta dois factores: a necessidade sentida pelos franceses de contrabalançar o acordo do AUKUS (entre a Austrália, o Reino Unido e os EUA) e de preservar os interesses estratégicos da França no Indo-Pacífico.
“É um dos poucos países ocidentais com capacidade militar efetiva na região. E antes dos interesses de qualquer aliança estão os interesses do próprio Estado”, conclui.
O tabu Taiwan
Uma das demarcações mais evidentes de Macron em relação à atual política da NATO (e da administração Biden) foi Taiwan. Para o presidente francês, “não é do interesse da Europa haver uma aceleração sobre o tópico”, sendo que tanto a revisão do conceito estratégico da NATO como as posições mais recentes da Casa Branca pressionam para essa “aceleração”.
Não podemos abordar o diálogo com a China com espírito de fechamento, mas a subserviência não é uma opção. E a mensagem [de Macron] passou esse tom. Isabel Santos
Biden, mais do que uma vez, prometeu defender militarmente Taiwan de uma invasão chinesa, sendo uma das vezes desmentido pelo seu Departamento de Estado.
Ora, se Martins da Cruz recorda que Portugal reconheceu que Taiwan faz parte da China, aquando da visita de Xi a Lisboa em 2018, há quem apresente outras preocupações no Parlamento Europeu.
Isabel Santos, eurodeputada do grupo dos Socialistas e Democratas, espera que “a União Europeia reaja, caso tal aconteça”, mas não tem certezas. “Quando olho para aquilo a que assistimos nos últimos dias, começo seriamente a temer que a nossa fidelidade aos nossos princípios seja colocada em causa”, caso Xi ataque Taiwan. “Espero que nunca aconteça”, diz a portuguesa.
Não repetir erros
Talvez a mais crítica das vozes a que a CNN Portugal chegou, Isabel Santos vê a posição de Macron em Pequim como “um baixar de cabeça”. “Não podemos abordar o diálogo com a China com espírito de fechamento, mas a subserviência não é uma opção. E a mensagem [de Macron] passou esse tom. Não me revejo”, admite.
A eurodeputada lamenta que estejamos “a repetir os mesmos erros que cometemos com a Rússia”, mas com a China. “E se não aprendemos com a história mais longínqua, era bom que aprendêssemos com a mais recente”, atira.
“Quando vamos ao Azerbaijão fechar negócios de gás e lhe chamamos parceiro estratégico confiável, também é difícil entender”, revela. “Devíamos medir melhor as palavras”. E, a seu ver, Emmanuel Macron, não o fez em Pequim.
“A Europa corre o risco de acabar cercada pelos seus próprios erros, com um enorme passivo acumulado de dependências”, afirma Isabel Santos. “Para resolvermos um problema, vamos criar outro, e acabamos sem resolver nenhum”, continua, sobre a aproximação à China no seguimento da guerra na Ucrânia.
Macron engana-se quando diz que o maior risco que a Europa corre é ser arrastada para uma competição entre os EUA e a China. O maior risco que a Europa corre é perder o apoio dos EUA. Diana Soller
A investigadora universitária Diana Soller, analista da CNN Portugal, partilha da mesma contundência sobre a posição francesa. “Macron comete vários erros: compromete a relação transatlântica em plena guerra e oferece à China aquilo que ela pretende: a divisão entre o seu país e os Estados Unidos. Talvez mais grave, coloca a unidade da NATO em causa no momento em que a militarização da Europa é um imperativo quase impossível de alcançar fora das estruturas militares da aliança”, enumera.
“O presidente da França engana-se quando diz que o maior risco que a Europa corre é ser arrastada para uma competição entre os Estados Unidos e a China. Isso parece-me inevitável quando estamos em transição de poder. O maior risco que a Europa corre é perder o apoio dos Estados Unidos”, considera Soller.
Junto da Aliança Atlântica há a preocupação de não existir uma perspetiva consistente na União Europeia sobre o desafio chinês. “Chamam-lhe tudo: parceiro, rival sistémico, perturbador da ordem internacional, essencial para a ordem internacional. E quando é permitido a algo ser tudo a consequência é não termos nenhuma posição sobre ele”, chama a atenção um diplomata que conhece bem os meandros da NATO.
No colégio de comissários, em Bruxelas, há a noção de que a relação com a China mudou substancialmente com a pandemia, particularmente devido ao excesso de vulnerabilidade das cadeias de logística. “Há uma vontade de refazer a relação com a China com um sentido estratégico”, adianta um quadro europeu familiarizado com as discussões internas da Comissão.
“No passado, havia uma ingenuidade fictícia, quase cínica, em que os interesses dos exportadores se sobrepunham a tudo o resto. Por uma nesga de mercado chinês, abríamos a porta a qualquer investimento. Hoje, já não é assim. A reciprocidade passou a exigir maior proporcionalidade entre as partes”, explica a mesma fonte, que pediu anonimato.
“Não podemos cometer os erros com a transição verde que cometemos com a tecnologia dos painéis solares, em que partilhámos tanto que acabámos ultrapassados pela China. Nem devemos cair na hipocrisia de exportar os componentes poluentes das nossas indústrias para a China, para cumprirmos as nossas metas por cá. O mundo é o mesmo”, salienta, em jeito de conclusão.
Do ponto de vista político, as prioridades europeias na relação com a China são estas. É nelas que é possível a tal consensualização indispensável para uma autonomia estratégica.
Não planeiem amanhã o que já acontece hoje
Jorge Costa Oliveira, que escreve semanalmente sobre estes tópicos na imprensa nacional, foi secretário de Estado da Internacionalização e conhece bem o quadro chinês. Esteve quase dez anos envolvido no processo de transição de Macau, como conselheiro jurídico e viaja frequentemente pelo continente asiático. À CNN Portugal, o antigo governante chama a atenção para o sucesso da China em afirmar-se como “promotora de paz” fora do Ocidente.
“Fora da perspetiva eurocêntrica, em África e na América Latina, iniciativas como o acordo entre o Irão e a Arábia Saudita e a proposta de paz para a Ucrânia enaltecem o poder da China como ator internacional. Para futuro, isso não é nada irrelevante”, considera, recomendando uma atenção redobrada à disponibilidade de um conjunto de países a comercializarem com a moeda chinesa como referência, e não com o dólar.
“Os principais países europeus aceitam que estamos em rápida transição para um mundo multipolar e que é necessário acomodar os interesses europeus aos das potências emergentes, como a China. Os Estados Unidos recusam frontalmente qualquer acomodação nesse sentido”, descreve, dando a entender que a bipolarização, no fim de contas, tem origem dupla.
Do seu ponto de vista, Macron “está genericamente correto”. A racionalidade económica da China e dos chineses dificilmente permitirão “aventuras loucas como a invasão da Ucrânia”, isto é, Taiwan. “O mar das Caraíbas vive há mais de um século sob a Pax Americana. O Mediterrâneo vive desde há muito tempo sob a Pax Europea. Se o Mar do Sul da China viver sob uma Pax Sinica não é necessariamente uma desgraça geopolítica, sobretudo para o Ocidente”, desdramatiza.
Henrique Burnay, consultor familiarizado com os corredores europeus, destoa. "A autonomia estratégica de Emmanuel Macron parece sempre formulada por oposição aos Estados Unidos. Para ele, parece não haver Ocidente, o que deixa nervosos os europeus a centro, ao leste e ao norte", adianta, notando que Macron não conseguiu nada em contrapartida. "Uma declaração útil à Ucrânia ou a travar a Rússia, por exemplo", lamenta.
Ter posição dentro da não posição
Entalada entre as ambições da potência incumbente ‒ os Estados Unidos ‒ e as da potência ascendente ‒ a China ‒, a Europa procura o seu caminho com as hesitações de uma arquitetura que integra 27 interesses nacionais diferentes.
Portugal, cuja política externa transcende áreas políticas e até regimes, mantém uma regra: não ter inimigos. Curiosamente, o realismo de Macron não é assim tão distante do nosso. Se será possível mantê-lo ou não ao longo deste século XXI é a pergunta sem resposta que cruza toda esta auscultação.
Ninguém sabe.
E, afinal, de que serve ter uma posição quando à nossa volta mais ninguém a tem?