opinião

Porque saiu a Apple do negócio dos carros elétricos

29 fev, 20:35

A resposta em modo telegráfico é fácil: para apostar na I.A. Mas para explicar melhor convém ir um pouco mais fundo e ver outros ângulos de análise, pois não se pode ver esta “troca” como uma decisão tomada em cima do ‘hype’ da I.A., sobretudo numa empresa como a APPLE, conhecida pelo seu investimento demorado, refletido e persistente em inovação. É que há mais em jogo do que apenas a I.A. ...

O futuro do automóvel elétrico

Data de 2003 a criação de duas das maiores potências no setor automóvel elétrico atual. A TESLA, do lado norte americano, e a BYD, do lado chinês. Quem diria nesse arranque do milénio que ambas estariam hoje numa posição de liderança. O mundo ainda chorava o 11 de setembro e o ataque terrorista atroz perpetuado no coração de Nova Iorque, Durão Barroso era primeiro-ministro anfitrião na Cimeira das Lajes com a invasão do Iraque como tema da agenda, concluia-se o projeto científico do Genoma Humano, Arnold Schwarzenegger tornava-se governador da Califórnia e o Concorde fazia o seu último voo oficial pela British Airways.

Ainda não havia iPhone, que seria lançado em 2007. E o mundo da Web2.0 com as redes sociais a dominarem os tempos de distração diários estava no seu começo. A Apple tornar-se-ia a marca mais valiosa em 15 anos e a primeira cotada em Wall Street a alcançar os três mil milhões de dólares de valorização bolsista.

O “problema” da Apple doravante, segundo alguns, é que o caminho ia estando ancorado em demasia nesse mesmo gérmen que ressuscitou a empresa: o iPhone. Daí que fosse crítico (como é aliás em todas as empresas) não parar com a inovação. Seguir-se-iam o Apple Watch (o primeiro produto da era Tim Cook como CEO) e os rumores nos anos seguintes tornar-se-iam tema de café:

...dispositivos de saúde?

...um televisor?

...um anel?

...óculos VR/AR?

...um automóvel?

...um telemóvel dobrável?

...

São apenas alguns dos inúmeros produtos que se tem dito e escrito “vai acontecer!”. Ajuda o facto de alguns de facto terem visto a luz do dia, como os recentes óculos Apple Vision Pro, para que o mito se torne mistério e boato.

Projeto TITAN

Já no caso do automóvel a longevidade do projeto de estudo ajudou a que o mesmo saísse do boato para a realidade. Batizado de TITAN (ao que consta, nunca confirmado pela Apple) este seria o projeto secreto em redor de um novo mercado para a Apple, o do automóvel. Mas quando mais de 2000 engenheiros estão envolvidos, é difícil tapar sigilosamente o tema. Com o passar dos anos e sem uma declaração de qualquer elemento da empresa no sentido da mobilidade, a descrença de que algo viria para o mercado foi aumentando. E a acreditar nas notícias publicadas no final deste fevereiro de 2024 a marca de Cupertino parece mesmo ter fechado as portas do projeto. E entende-se porquê.

1. Porque não haveria evidências de como a Apple poderia competir com a filosofia “Apple” no hardware do automóvel, embora no software tal seja evidente (já lá vamos).

2. Há depois o tema crítico já mencionado acima: a concorrência feroz arrancara mais de 10 anos antes, TESLA e BYD e, entretanto, também as gigantes incumbentes foram fazendo deste mercado ainda mais competitivo do que se imaginava.

3. A par do segmento elétrico, a conjugação com a condução autónoma também foi um cenário que se tem tornado mais longínquo de concretizar de forma massificada; a Google rebatizou o serviço em 2015 para Waymo e tem dado passos, mas 10 anos depois segue com perdas anuais de 500M$/ano. Significa isto apenas uma coisa: para uma cultura como a da Apple focada em ter produtos apenas relevantes e muito rentáveis, o negócio estava cada vez menos dado como oportuno.

4. Acresce um ponto mais: o software. A entrada da Apple e da Google no software para os automóveis nos sistemas de navegação e entretenimento (e não só) com o CarPlay/AndroidAuto veio mostrar como há uma alternativa igualmente viável: o foco no software do automóvel ao invés da “full-experience” e das “dores” do hardware de um carro, suporte e manutenção, etc.

I.A. Pódium

Nem de propósito, explode o mercado da I.A. . 2023 torna-se o ano da inteligência artificial e o mundo das BigTech roda agora todo ele para ver quem sobrevive e chega ao pódium. E a Apple sabe bem o que isto significa.

2007-2019:

Após 2007 e o lançamento do iPhone muitas foram as marcas que tentaram o mesmo sucesso e outras que existiam e não resistiram, a mais conhecida a Nokia, outrora líder de mercado, adquirida pela Microsoft em 2014 e que duraria até 2019 com o seu Windows Phone. O seu CEO, Satya Nadella, agora levado em ombros pela aposta até agora ganha com o ChatGPT, bem tentou o mesmo sucesso nessa altura no mercado do smartphone, mas sem conseguir, encerrando o negócio.

Esse período traz essa lição, a mesma que também nas BigTech se provou nos motores de pesquisa e na publicidade digital com o Google ou com a META nas redes sociais- de que um segmento por maior que seja como estes do smartphone ou pesquisa ou redes sociais não é permeável a muitos concorrentes a disputar grandes quotas de mercado globais, antes pelo contrário, numa lógica “flywheel” potencia-se que os grandes ficam cada vez maiores, com cada ronda de investimento em inovação a retornar mais crescimento e portanto numa lógica bola de neve de “retorno-gera-receita-gera-investimento-gera-mais-retorno”, esmagando a hipótese de novos e pequenos players entrarem ou sobreviverem.

Chegamos, portanto, à decisão difícil para qualquer equipa de gestão, nesta caso da Apple. Com o mercado da I.A. até 2023 previsto valer 1,8MM$ e o do automóvel elétrico&autónomo na ordem dos 1,5MM$ (dados da Grand View Research e Statista) já fica alguma ajuda à decisão. Mas se virmos a taxa de retorno constante anual prevista (CAGR), a mesma é de 37,3% para o mercado da I.A. e de 17,8% para o automóvel. Começa a ficar mais fácil tomar a decisão. Sobretudo juntando os pontos acima.

Mas há um outro fator decisivo

Pergunta para exame:

- Na sua opinião, o que pode custar à Apple não apostar no segmento automóvel? E o que pode custar não apostar na I.A?

Sem discussão possível.

Nem é preciso ser um génio para responder curto e grosso.

Mas dirão alguns: “estamos a esquecer que a Apple já aposta na I.A.!”. 

Voltemos, portanto, a um tema muitas vezes esquecido: a cultura de uma empresa. E quem conhece a Apple e o legado de Steve Jobs decerto encontra várias histórias como a que partilho, quando Jobs deu um conselho ao CEO da NIKE, Mark Parker, dizendo-lhe “a Nike produz alguns dos melhores produtos do mundo, mas também cria muitos produtos de qualidade inferior”. A sugestão de Jobs foi que a Nike se concentrasse nos produtos bons e eliminasse os restantes.

O custo de oportunidade não é desprezível. Em grandes ou pequenas organizações. E o jogo da I.A. é demasiado decisivo para a Apple poder perder. Muito mais numa empresa onde a linha de receitas que mais cresce é a dos serviços (icloud, apple music, appletv+, apple care, apple pay, iTunes, etc.) que valeu já 22% do total em 2023.

Quando pensamos na forma como a I.A já é e será ainda mais intrínseca aos sistemas do iPhone, Macbook, iPad, Apple Watch e dos serviços (crítico, como vemos acima) torna-se notório que a empresa terá chegado à conclusão de que não é tempo de dispersar energia e foco – e sobretudo tempo. Inclusive numa lógica de cultura interna, pois se os colaboradores se vêm rodeados de inúmeros projetos, a mensagem será menos clara do que aquela que aparenta ser agora urgente: Foquemo-nos. A corrida tem de ser ganha. E rápido.

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