Groundhoppers: os peregrinos dos relvados

3 jul 2017, 09:57
Groundhoppers

Passam a vida a saltitar entre campos de futebol, dando vida a um fenómeno com quarenta anos de descobertas. Os «groundhoppers» não são muito populares por cá, mesmo se Portugal tem entrada garantida nos roteiros dos colecionadores de estádios.

O futebol transporta vários rostos. Um deles, demasiado tradicional, é desenhado por homens e mulheres com instinto explorador. Afinal, que amante do desporto rei não passou uma infância de caderneta em punho à procura das principais figurinhas das provas internacionais?

Pois bem, mudam-se os tempos, reformam-se as vontades. Os livros de cromos continuam de peito feito nas montras, mesmo sem o vigor do século passado. Nas entrelinhas aparece o fenómeno dos «Groundhoppers», junção do vocábulo «ground» (chão, na língua inglesa) com a forma verbal «to hop» (traduz a ação de saltar). Por outras palavras, pular entre cidades para conhecer novos estádios. Inédito, não?

Ora, o fenómeno já apareceu no século passado, tendo merecido revisão académica. «Em outubro de 1974, o britânico Geoff Rose sugeriu, através de um artigo na “Football League Review”, listar todos os adeptos que tinham visitado os 92 estádios que compunham a Premier League, bem como as três categorias subsequentes», refere Hendrik Kren no artigo «Groundhopping: A phenomenon in European fan culture».

«Quatro anos depois, Gordon Pearce propôs à liga que estabelecesse um clube para todas as pessoas que tivessem estado nesses 92 campos de futebol. A ideia foi amplamente difundida pelos meios de comunicação britânicos e o “The 92 Club” foi finalmente fundado em 1978», completa o aluno da universidade germânica de Kiel.

Em favor das tendências, o conceito original proposto pelo adepto do Bristol Rovers permanece em atualização. Dependendo, pois claro, dos clubes que são promovidos ou relegados a cada temporada nos quadros ingleses. Duncan Adams, por exemplo, é um representante fiel dos valores que movem o fenómeno «groundhopper». Adepto assumido do Birmingham City, leva 53 anos e já colocou uma sinalética à frente dos 92 templos.

«Um dia, por volta dos meus trinta anos, viajava de comboio para uma partida fora de Birmingham, frente ao Exeter City. Comecei a contar quantos estádios tinha visitado dos 92 clubes da Premier e da Football League. Creio que registei cerca de 28 visitas naquele momento. Na minha mente não parecia tão longe da cifra máxima. Por isso embarquei na missão de visitá-los todos», começa por rememorar à MF Total.

Contudo, um problema temporal ousava estragar os planos projetados na cabeça. «Tinha subestimado severamente quanto tempo demoraria. Até porque naquela época ainda era titular do bilhete de temporada em St. Andrews [estádio do Birmingham] e estavam a abrir novos recintos no país. Ao todo, demorou mais seis anos para completar todas as visitas», estima.

Filho de pai escocês e adepto do Rangers, Duncan assume que a conquista foi construída durante a adolescência. «Quando o meu pai veio para Inglaterra por questões laborais já não tinha fidelidade real a uma equipa local. Levava-me sim a diferentes estádios nas West Midlands [região oficial de Inglaterra] para assistir aos jogos. Também estava envolvido no futebol local aos domingos. Penso que foi aqui que comecei a ter interesse em ir a diferentes campos. Aliás, ficava bastante feliz de ver futebol, mesmo se a minha equipa favorita não estivesse a jogar», confessa.

Pelo caminho foi elaborando o blogue «The Football Ground Guide». Lá entram todas as experiências pessoais de Duncan, assim como as avaliações conferidas por outros milhares de fãs através das caixas de comentários. «Estava frustrado com a falta de informações na web sobre o estádio visitante. Por isso esperava que o blogue ajudasse outros. Aos poucos tornou-se popular, mesmo que hoje haja muitos dados na Internet», diz, indicando que já pisou mais de 300 campos de futebol.

«Cultivar este vício é algo que não percebes, até planeares a próxima viagem»

A experiência jamais se limitaria à principal ilha britânica. «Continuei a visitar estádios diferentes, pois gosto de viajar para outras partes e provar a vida local. Juntem os adeptos, a cerveja e o futebol e sou um homem feliz!», graceja Duncan Adams, destacando um «Old Firm» em Ibrox. «Tive muitas experiências inesquecíveis nas minhas viagens de futebol e algumas não tão agradáveis. Ver as cores dos adeptos de Rangers e Celtic e sentir a atmosfera incrível do estádio foi um momento marcante».

Ignasi Torné é outro fiel dedicado à onda «groundhopper». Criado em Barcelona, foi viver há alguns anos para a América do Sul. Por entre os «hinchas» argentinos diz ter encontrado um país sagrado para os amantes da bola. Toda uma realidade outrora aprofundada na universidade, aquando da graduação em Marketing, Publicidade e Relações Pública pela ESERP Business School catalã.

«O projeto final foi sobre o impacto do turismo no futebol e vice-versa. Por isso é fácil entender a conexão entre viajar e visitar os estádios. Sempre fui muito apaixonado pelo futebol. Lia notícias, assistia a jogos, colecionava camisolas, conversava no bar com amigos sobre futebol. Cultivar este vício é algo que não percebes, até planeares a próxima viagem para assistir a um jogo da segunda divisão», frisa o autor do blog «Groundhopper Barcelona» em conversa com a MF Total.

Ignasi Torné vislumbra na Argentina um caldeirão de fanatismo pelo futebol (Foto Reuters)

O entusiasmo à volta do fenómeno é tão grande que até já originou uma aplicação para dispositivos móveis. Cortesia de Lars Erik Bolstad e Geir Florhaug, dois noruegueses fanáticos pelo Manchester United e maníacos por arquivar cada experiência à volta dos relvados. «Não somos propriamente “groundhoppers”. Acabámos por encontrar essa ideia para uma aplicação que surpreendentemente não havia sido feita. Ela junta todo o tipo de estatísticas, como o teu número total de estádios, partidas e países visitados, que equipas viste e quantas vezes», refere Geir à MF Total, especificando a característica que mais gosta na base de dados.

«São as partidas próximas. Ou seja, lista todos os jogos que estão a ocorrer na sua vizinhança ou num local escolhido num determinado momento. É excelente para planear uma viagem. Mais recursos estão a caminho», promete, reivindicando um crachá comemorativo por ter visitado 150 estádios.

«Lisboa deve ser a cidade mais louca do futebol que visitei»

Desengane-se, caro leitor, se pensa que as excursões estão limitadas pelo tempo regulamentar de uma partida de futebol. «Gosto de chegar à cidade algumas horas antes do início e ter algumas cervejas de antemão. Normalmente vamos ao centro da cidade, o que dá a oportunidade de ver um pouco do lugar, antes de passar para um bar mais perto do estádio, para desfrutar um pouco da cultura do adepto», indica Duncan, um aventureiro dos quatro costados.

«Se a equipa joga numa cidade histórica interessante ou numa zona costeira, então posso ficar para o fim-de-semana e fazer algumas visitas», admite. Ignasi alinha pelo mesmo discurso. «Tentamos sempre conhecer a cidade quando viajamos para ver um jogo. Há casos em que fazemos uma grande visita a lugares como Barcelona, Madrid, Milão e Lisboa exclusivamente para um jogo de futebol. Adoro estar cedo no estádio, para assumir a atmosfera antes de jogo. O que muitas vezes é muito melhor do que depois do jogo», sublinha.

E por falar na capital, Portugal não poderia deixar de estar inscrito nos roteiros destes peregrinos. Em novembro de 2011, Duncan veio assistir à derrota do Birmingham em Braga para a Liga Europa. «Foi uma excelente viagem. Ter um estádio estabelecido numa pedreira desordenada foi certamente único e um tipo de construção que nunca vi antes», garante o inglês. Ignasi também explorou o norte, mas com focos virados para um dos principais duelos do futebol português.

«Visitei o Estádio do Dragão em 2013, para participar no clássico em que o Kelvin marcou um golo aos 92 minutos. Fui com uma das minhas melhores amigas, recebendo um convite de um rapaz português que conhecemos. Foi uma experiência incrível, porque vivemos o jogo como adeptos do FC Porto».

Antes de entrar no Dragão, Ignasi foi entrevistado por uma televisão holandesa. Queriam saber o que fazia ali. (Foto Groundhopper Barcelona)

Por outro lado, os inventores da aplicação «Groundhopper» preferiram circundar a capital. «Estive lá em 2011, com a sorte de pegar o dérbi Benfica-Sporting. Muita gente no estádio, a águia pousou onde devia e o Benfica venceu. Visitei o Estádio do Restelo no dia seguinte. Um ambiente um pouco mais descontraído, mas um cenário espetacular com o pôr do sol sobre o rio Tejo», recorda Geir. Lars Erik veio no ano passado e ficou igualmente rendido a Lisboa.

«Vi o jogo entre Benfica e Braga. Todas as pessoa que conheci naquela semana, fosse a equipa do hotel, os motoristas da Uber ou apenas colegas de trabalho, conversavam com entusiasmo sobre o jogo. Lisboa deve ser a cidade mais louca do futebol que visitei», atira. Para o futuro ficam suspensas no ar promessas de cá voltar. «Gostava de ir ao estádio de Aveiro, pela sua arquitetura a fazer lembrar as construções de legos. E obviamente ir conhecer os outros grandes, como o Estádio do Dragão e o José Alvalade. Quando se trata dos mais pequenos, uma ida e volta à Madeira seria bonito», afiança Geir.

Rastreando o mundo da bola, muitos estádios esgotaram funcionalidades ao longo do século passado. Precisaram de ser retocados, fosse pelo simples aumento da lotação ou com melhorias ao nível dos acessos. Mesmo assim, o fascínio pela antiguidade teima em superar. «Nada ultrapassa um antigo estádio com assentos de madeira, moldados por fortes tempestades e campos pesados», atira Geir Florhaug. «Gosto realmente de sentir história quando estás a caminhar para o estádio. Claro que vou visitar novos estádios, mas não são os meus preferidos», desabafa Ignasi Torné.

Duncan, espetador atento do «Kick and Rush», recua na barra cronológica para explicar o que mudou na arquitetura britânica. «Ao mesmo tempo, cada terreno em Inglaterra era muito diferente. Normalmente tinha quatro bancadas de aparência diferente. Muitos estádios novos que foram construídos para substituir os antigos são projetos de tigelas fechadas, que se assemelham bastante e não possuem caráter. Por isso prefiro visitar recintos antigos, que são únicos, parte da nossa história e estão a desaparecer rapidamente, mesmo em níveis não-profissionais».

«Visitar estádios? É uma desculpa perfeita para fazer bons amigos»

Perante tanto tempo vivido longe de casa, a compreensão familiar torna-se vital. A mulher de Duncan sabe da poda como poucas. «Bem, a minha esposa já passou por mais de 50 estádios. Com uma filha jovem a crescer rapidamente, vai poder acompanhar-me nas minhas futuras viagens. Às vezes vou viajar sozinho ou com amigos. Não há problemas em deixar a casa, desde que planeie as visitas com bastante antecedência, para encaixar com as atividades familiares e de trabalho», conta o gestor de marketing.

«Temos a sorte de viver perto de muitos campos de futebol. Portanto assistir a um jogo não rouba muito tempo», acrescenta Geir, defendendo que «assistir a um grande jogo no exterior é uma desculpa perfeita para fazer bons amigos». Mesmo que os custos flutuem como quem troca de residência durante um ano inteiro.

«Não precisa de ser muito caro. Grandes atmosferas e jogos intensos podem ser encontrados em qualquer lugar, a qualquer preço. Mas se quiseres marcar presença em lugares como Camp Nou, Allianz ou Old Trafford, obviamente tens de pagar o preço», sustenta. Ignasi, por sua vez, dá outra sugestão. «Quando viajas sozinho, acabas por fazer novos amigos em torno do futebol. Mas quando vais com amigos, nem sempre fica caro. Podes ficar nos lugares deles e tudo. No final convida-os para algumas cervejas e fica igual ao orçamento final», ironiza.

O fenómeno é global, mas em Portugal os índices de popularidade não fascinam. Traços de uma realidade demasiado marcada por argumentos culturais. «Talvez vocês estejam mais interessados em apoiar as vossas equipas do que em colecionar estádios? Nada de errado com isso», pensa Florhaug, antes de ser completado por Adams. «No Reino Unido há mais de 100 clubes profissionais. Em Portugal não passam dos 50».

Seja como for, as recordações agarradas à bagagem falam mais alto. «Além de construir uma coleção e assistir a futebol, é uma maneira de ver novos lugares e experimentar diferentes culturas e tradições. Espalhou-se de Inglaterra para países como Alemanha, Bélgica, Holanda e Noruega», observa. «Portugal? Quem sabe. Talvez vá passar por França e Espanha até chegar a Portugal», afiança o adepto escandinavo.

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