«Vivi o Benfica quase na clandestinidade»

9 mar 2023, 09:11
Raquel Vaz Pinto (Foto DR)

«Um café com...» Raquel Vaz Pinto, investigadora em relações internacionais, que gosta de futebol desde que se lembra e gosta de juntar esses dois interesses para, a partir do jogo, olhar o mundo. Uma conversa com humor e muita paixão. Pelo Benfica, desde que o avô lhe falou das bancadas da Luz como «um mar de papoilas»

Raquel Vaz Pinto vive futebol desde que se lembra. Investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), professora convidada da Universidade Nova, comentadora, é autora de vários livros sobre política internacional e também do livro «Para lá do relvado», onde concilia os dois interesses para falar do que podemos aprender sobre o mundo através do futebol.

Esta é uma conversa que passa pelas memórias das discussões sobre futebol à mesa e pelos jogos intermináveis com o avô, que a conquistou para o Benfica quando um dia a levou ao Estádio da Luz e lhe disse que aquele mar encarnado era «um mar de papoilas». Uma conversa com humor, em que conta como viveu muito tempo o benfiquismo na «clandestinidade» em respeito pela mãe, que era «doente pelo FC Porto».

É também assim, apaixonada, que ela vive o seu clube: «De uma maneira que outros dirão um bocado doente e que eu digo que é intensa e como deve ser.» No estádio, nos jantares que organiza no dia do aniversário de Eusébio ou no dia a dia - a única questão burocrática que a preocupa realmente é saber se o Red Pass foi renovado. 

Passa horas a ver bola, acompanha muito futebol internacional e agora às vezes até vê jogos da Liga francesa, por causa de Messi. Mas assume que perde toda a objetividade quando se trata do futebol nacional e do Benfica. 

O que não perde é a capacidade de partir do jogo para olhar o mundo. Como se percebe ao longo de toda a conversa.

Foto: Isabel Santiago

Qual é a primeira memória que tem de futebol?

É difícil responder a essa pergunta, porque o futebol era um tema que fazia parte dos almoços de família lá em casa. Talvez a imagem mais marcante tenha sido o Europeu de 84. Aquele nosso entusiasmo e depois a deceção francesa, que me ficou aqui atravessada e que na verdade só foi genuinamente revertida com o Euro 2016. Se tivesse de escolher uma memória que guardo, e por aquilo que toda a gente sofreu lá em casa, seria essa.

Que idade tinha?

Tinha 11 anos. Essa seria uma boa memória, daquelas em que de facto sentimos que éramos portugueses, que éramos qualquer coisa diferente. E agora, uns bons anos depois, é engraçado pensarmos que 84 foi um ano feliz, apesar da tristeza do fim. Há aquele livro fabuloso do Pedro Adão e Siva e do João Tomás, Deixem-nos sonhar, sobre o que foi depois Saltillo, em 86. O livro põe tudo isto em perspetiva. 84 é uma espécie de milagre, porque nós não tínhamos estrutura profissional no sentido do que é hoje. Óbvio, o futebol também mudou muito. Mas isto de ser apurado para os Campeonatos da Europa e do Mundo não era nada adquirido. É muito interessante isso. E depois também o facto de no mesmo ano o Carlos Lopes nos ter dado outra alegria. Esse ano, do ponto de vista do desporto e das coisas boas que o desporto nos traz, foi muito relevante. Até mesmo isso de cantar o hino. Foi um momento muito relevante para mim. Depois, a primeira memória a nível clubístico… Era miudinha e nem sei bem dizer como, quando ou onde. Mas foi o meu avô de forma muito inteligente levar-me a um jogo de um certo clube e, perante aquele mar encarnado, responder-me: ‘Isto é um mar de papoilas.’ E pronto.

Estava conquistada…

Completamente. O meu avô foi muito inteligente. Lá em casa havia uma guerra tremenda. A minha mãe era completamente, mas completamente, doente do FC Porto. Isto dava uma certa rivalidade familiar. De tal maneira que a minha mãe dizia-me sempre, no início meio a brincar meio a sério e depois totalmente a sério, que eu não lhe desse o desgosto de ser sócia do Benfica. Cumpri esse desejo e só me tornei sócia do Benfica bem depois. Depois de ela morrer e depois de eu fazer o luto. Eu vivi o Benfica quase, como gozava um amigo, na clandestinidade.

Porque não podia manifestar-se em casa?

Só assim muito qb. Mas sofri muito. Porque eu e todos os não portistas tivemos o azar de este percurso coincidir com a época de ouro do FC Porto, portanto a minha mãe dizia: ‘Meus amigos, contra factos não há argumentos’. Mas, como eu também não consigo estar nas coisas a meio gás, quando entrei entrei à séria. E hoje vivo o meu clube de uma maneira que outros dirão um bocado doente e que eu digo que é intensa e como deve ser.

De onde veio essa paixão da sua mãe por futebol? Era de uma geração onde não seria muito comum as mulheres viverem tão intensamente o futebol

De todo, de todo. A minha mãe sempre foi muito independente e talvez o facto de ser pouco comum uma mulher gostar e perceber de futebol – eu aprendi a perceber futebol com a minha mãe – fosse em si mesmo um dos aspetos que mais a atraía. Depois, como nós viemos de Angola em anos quentes, eu penso que o facto de em Lisboa naqueles anos ser do FC Porto ser algo de diferente terá sido o que motivou a minha mãe para atravessar o Rubicão e ser adepta do Porto.

Era uma questão de afirmação também para ela?

Sim. E ela sempre nos tentou transmitir também a importância de ser independente, de se fazer o que se gosta, de ter uma vida profissional e ser independente.

Então e em casa havia muitas discussões sobre futebol à mesa?

Ui, Jesus… Havia discussões sobre tudo. Entre as posições políticas que eram diferentes, tudo. E o futebol era mais uma delas. Muitas vezes era uma forma de falar de todas as outras coisas que não se podiam discutir, porque as posições políticas eram mesmo muito diferentes e as discussões não acabavam bem. Daí a minha irritação solene quando me dizem ‘Ah, o futebol é só um jogo’. Não, não é. Há muitas leituras, há muitas dimensões.

Lembra-se que jogo era e que idade tinha quando o seu avô a levou ao futebol pela primeira vez?

Não. Papoilas. Ficou para a vida, sempre, o mar de papoilas. Tenho n imagens dessas. Mas não sei dizer.

Em miúda jogava à bola?

Sim, gostava de jogar à bola. Era um bocadinho maria-rapaz. Eu e o meu avô perdíamos horas os dois a jogar. À tarde, a minha avó gritava para o lanche e nós ‘Sim, sim, já vamos’. Depois gritava para o jantar e aí tinha mesmo de ser. Ou no recreio. O desporto tem essa coisa boa. Quando estamos a jogar não interessa quem se é, jogamos todos. Não interessa quem tem mais, quem tem menos. Estamos todos com o mesmo objetivo. Só muito mais tarde é que damos valor a esses momentos de prazer absoluto, sem condições, sem uma agenda. Nesse sentido, o futebol é uma ótima memória que eu tenho da infância e que perdurou.

E que perdura até hoje, não é?

Sim. Eu gosto muito de ver futebol internacional. Claro que em relação ao futebol nacional tenho um conflito sério em termos de objetividade e assumo isso sem problema. Lembro-me sempre, e aliás incluí isso no meu livro, daquela expressão ótima que é de um amigo do Ricardo Araújo Pereira, como ele escreve na Chama Imensa. Há um amigo que lhe diz ‘Ó Ricardo, eu sou do Benfica mas sei ver as coisas’. E ele passou-se. Porque obviamente não sabe ver as coisas. Eu sou assim.

Não consegue nem quer ter esse distanciamento?

Não, não quero. E sabe-me bem não querer. Futebol internacional eu gosto imenso, sigo sempre a Liga inglesa, a Liga espanhola e a Liga italiana. A Liga francesa recuso-me. Há limites. Tenho pena, porque tenho uma daquelas regras importantes na vida, que é ver os jogos todos do Messi.

Então tem um conflito…

Lá tenho de ver. Custa-me um bocado ver aquele PSG, mas Messi é Messi, não há muito a fazer. Mas também é uma questão de tempo, claro. Depois há a vida, há a nossa profissão, a política internacional que anda aqui ao rubro e isto tudo é difícil de gerir.

Vê muitas horas de futebol por semana?

Vejo muitas horas. Por semana, dependendo se depois há Liga dos Campeões ou não, vejo em média seis jogos.

E vai ao estádio ver o Benfica quando joga em casa?

Sempre. É das poucas preocupações que tenho em matéria de organização, de prazos, porque geralmente é o meu marido que trata de tudo. Talvez a única coisa com que eu me ralo genuinamente é se o Red Pass já foi renovado. Se está tudo bem, se os Red Passes já foram renovados.

Vão normalmente juntos à bola ou vai sozinha? Como é que prefere ver futebol?

Eu tenho dois Red Passes, portanto normalmente vou com o meu marido ou vou com amigos, quando ele não pode.

Acompanha os jogos fora também?

Isso não consigo. Tenho pena, mas não consigo encaixar profissionalmente essas saídas. Com imensa pena minha, porque quem fica a perder sou eu.

Já foi ver algum jogo no estrangeiro, já se organizou de maneira a que uma viagem coincida com um jogo?

Geralmente quando vou para fora, a conferências, tento encaixar de modo a ver jogos, se for em sítios onde o futebol vale a pena. Porque é uma forma de ler, é outra dimensão que tem às vezes uma leitura até política. Agora com a pandemia e com todo este horror da guerra há um ano, tudo se torna mais difícil. Mas por exemplo, seria muito interessante ir à Ucrânia e ver um jogo do Shakhtar Donetsk. Acho que era uma outra lição, uma outra dimensão da guerra.

E ver os jogos do Benfica lá fora, nunca foi?

Não consigo. Pode ser que consiga agora. De facto, além de tudo o resto, tem sido um prazer imenso ver a minha equipa jogar futebol este ano. O Mundial veio quebrar muito o ritmo do Benfica e agora estamos lentamente a recuperar, com uma ou outra maior dificuldade. Também estamos a jogar sem o Enzo Fernández e isso tem um impacto que é preciso recuperar, mas tem sido uma maravilha. Pode ser que eu consiga, espero que sim. Farei por isso.

Qual é a melhor memória que tem de futebol, um momento mais especial?

Há um momento que acho extraordinário e sempre que revejo fico em contemplação total, que é aquela meia-final da Liga dos Campeões em que o Bayern Munique foi jogar a Barcelona. O Pep Guardiola regressava a casa, a treinar o Bayern. O jogo foi taticamente muito rico, sentia-se a tensão dentro de campo … Depois há aquela jogada do Messi, o Boateng vai ao chão e ele faz aquele chapelinho por cima do Neuer, que é um granda guarda-redes. É daqueles momentos em que se percebe, como é que hei-de explicar? O génio, claro, mas sobretudo a forma como ele vira… Naquele momento nós sabíamos que o Barcelona ia ganhar a Liga dos Campeões. O desespero do Guardiola, tudo ao rubro. É daqueles momentos mágicos, que vejo e revejo e fico arrepiada. Outro momento de que também gostei muito, mas que obviamente tem outra dimensão, foi quando ganhámos ao Porto no Dragão e o João Félix marca e vai celebrar daquela maneira, naquele sítio. Outra memória que guardo é esta final do Campeonato do Mundo. O sítio e tudo o resto é outra conversa, mas a final em si foi excelente. O momento em que o guarda-redes argentino defende aquela bola no fim do prolongamento é outra imagem muito forte. E depois, claro, a justiça desportiva, leia-se a vitória do Messi.

E o pior momento que viveu como adepta?

Eu tento sempre ir esquecendo esses momentos. Acho que é a única forma de a pessoa gerir a vida e continuar.

Deixar as coisas ficar no estádio, limitadas àquele momento?

Sim, embora haja coisas que nos acompanham. Os piores ainda são os jogos que se veem pela televisão. Nesses, sinceramente, sofre-se mais. Há sempre aquela sensação de que estando no estádio a pessoa ajuda, de qualquer modo. Estar a ver pela televisão é muito pior. Um momento que me tenha deixado totalmente verde, azul, deixe-me pensar… Talvez pela simbologia, quando foi um certo golo de um tal de Kelvin no Dragão e, no seguimento daquele golo, o então treinador do Benfica cai de joelhos. Essa imagem para mim é imperdoável.

O Jorge Jesus ter-se ajoelhado?

Sim. Caísse para o lado, fizesse o que ele quisesse. Aquela imagem, para mim, foi mesmo imperdoável.

E qual foi a coisa mais maluca que fez como adepta do Benfica?

Ah, isso não vou dizer. (Risos) Isso não vou dizer. Acho que todos temos, sei lá, momentos menos felizes, ou superstições parvas. E não se pode falar delas, porque se falarmos delas estamos a contribuir para uma eventual derrota do nosso clube. Isso faz parte do código de honra de um adepto.

Algo que também lhe interessa é analisar o que o futebol pode dizer sobre o mundo. Escreveu um livro sobre isso. Como foi crescendo esse interesse?

Talvez pelo meu percurso familiar e por o futebol ter essas várias leituras e várias dimensões. Para mim o futebol é sobretudo o que acontece no relvado, mas nunca foi apenas isso. Basta estarmos em Itália e irmos ver um jogo, por exemplo, entre um Nápoles e uma Lazio, ou ver um jogo entre as duas equipas de Milão. Há uma dinâmica extra e que contribui para o futebol dentro de campo. Depois, por exemplo, a forma como algumas vezes canalizamos as nossas alegrias para figuras, mesmo quando vivemos momentos difíceis. Eu lembro-me sempre do meu querido avô e da paixão autêntica assolapada que ele tinha pelo Eusébio. Para ele o Eusébio era um herói e alguém que, como ele dizia, o fez sorrir quando vivíamos em ditadura e nada disto era fácil. Aliás, vem daí uma tradição que ele tinha e eu agora também, aí muito por culpa do João Noronha Lopes e do seu movimento aquando das eleições contra o Luís Filipe Vieira, que acabou por reforçar um conjunto de pessoas e por nos fazer sentir o benfiquismo de uma forma por um lado mais saudável e por outro mais intensa. É a tradição de festejar o 25 de janeiro.

Dia do aniversário do Eusébio…

Exatamente. Com um jantar à séria, como deve ser, para festejar o dia de anos do Eusébio.

Tem feito isso?

Eu recuperei agora essa tradição, vá, e convido um conjunto de amigos. Este ano foi giríssimo, foi um jantar ótimo. É uma forma também, lá está, de viver o Benfica e viver esta figura absolutamente extraordinária que foi Eusébio. Portanto, essa leitura do futebol sempre esteve mais ou menos presente. Porque eu sempre fui uma pessoa muito curiosa em relação à História e uma coisa ia com a outra. Sei lá, há um jogo do Benfica com uma equipa internacional e uma pessoa vai estudar a equipa, a cidade, o país. Os jogos de Portugal nas competições internacionais… A isso junta-se a nossa vivência. Depois tudo se foi conjugando. Isto de gostar de futebol, quando damos aulas, acaba por ser uma forma por onde pegar. Em algumas situações é um quebra-gelo e é muito interessante também para ver como os miúdos reagem. Uma vez, estava na altura a dar aulas ao 1º ano, era história do século XX, e eu tinha uma aula preparada com os meus powerpoints, com mapas e tal, sobre a importância da energia, o petróleo e depois o gás natural, e como isso era uma marca distintiva do século XX. E é.

Como se viu agora com a Ucrânia…

Exatamente. Eu pensei: esta questão da energia é algo que nós achamos que é um dado adquirido, e o cerne desta aula vai passar ao lado dos meus alunos. Então, cheguei à aula e saiu-me. Foi no ano em que o At. Madrid foi campeão em Espanha e tinha um patrocínio do Azerbaijão. E eu comecei a aula a dizer: ‘Meus amigos, digam-me lá porque é que o At. Madrid tem o Azerbaijão nas camisolas.’ Bom, meia turma entusiasmou-se logo. Começámos a discutir, falámos sobre o Azerbaijão, depois sobre os Emirados, o Chelsea e o Abramovich, fizemos ali um percurso muito interessante e dessa forma introduzi o tema de uma maneira que pode parecer ligeira, mas que foi na mouche. Ou seja, porque é que estes países, que não têm propriamente, - para dizer isto de maneira muito elegante -, não têm de todo uma boa imagem em termos de direitos humanos a nível internacional, porque é que eles andam a comprar e a patrocinar clubes. E fomos por aí. Entretanto o António Araújo convidou-me para escrever no seu blogue Malomil justamente sobre esta ideia do futebol, mas nesta vertente. E assim começou. Diverti-me imenso, foi das coisas que mais gozo me deu fazer. E depois acabou por sair em livro.

Fez muita pesquisa para o livro?

É um interesse que eu tenho, e que continuo a ter. Mas na altura, claro, para o livro sair impecável fiz também muita pesquisa. Lembro-me por exemplo daquele relatório sobre, enfim, certas práticas menos corretas sobre a atribuição dos dois Mundiais em simultâneo a uma tal de Rússia e a um tal de Qatar. Esse relatório e tudo o resto, foi para mim um exercício muito interessante. Importante para perceber também que em todas as atividades que geram milhões há o outro lado, ou seja, o lado da corrupção, do tráfico de influências, do reverso da medalha. Isso é dos aspetos que têm vindo a ser colmatados, ou não, mas esse esforço tem de ser feito, porque esta tendência do futebol-negócio parece-me imparável.

Foto: Isabel Santiago

Essa questão não é nova, pois não?

O futebol é uma atividade humana, logo aí tem todo o potencial para o bem e para o mal. Por outro lado, esta instrumentalização do futebol e do desporto em geral sempre existiu. O que hoje talvez a distinga é a dimensão ou a escala. Nós hoje às vezes acordamos de manhã e somos confrontados com ideias cretinas como a Superliga ou coisa assim. Ou agora com a crescente pressão e tentativa de compra de clubes ou com história, ou com muitos adeptos e/ou sucesso desportivo, seja de países do Golfo Pérsico, seja por exemplo dos Estados Unidos, que se começa a ver muito. E aí sim, é muito a vertente do negócio.

São tendências diferentes, as compras por norte-americanos ou por árabes?

Não os estou a equiparar. No caso das compras por norte-americanos são empresas ou figuras privadas. No caso do que se tem visto em relação ao Qatar, que foi o precursor e o pioneiro, aos Emirados, ou mais recentemente a Arábia Saudita, para já são Estados que compram. OK, é a empresa deste ou daquele, mas por amor de Deus, é como quando há compras muito significativas no mercado europeu por empresas chinesas e dizem ‘Ah, é uma empresa privada’. Pois, com certeza. E o Pai Natal existe. Aqui são Estados que compram e há claramente uma estratégia, agora sob esta ideia de sportswashing, o conceito que é lavar, ou tentar lavar, a imagem de um país cuja folha em matéria de direitos humanos é terrível, tentando projetar uma imagem positiva através daquele clube. Vamos ver ainda como é que isto vai correr. Não me parece óbvio que seja um sucesso. Da mesma forma que a China durante algum tempo andou muito entusiasmada com o futebol, mesmo muito, e agora anda bastante menos, as coisas não correram nada bem.

Porque é que acha que a estratégia da China no futebol não vingou?

É um conjunto de razões. Primeiro, algumas das compras ou das apostas não me parece que tenham sido as melhores. Em segundo lugar, penso que houve alguma hubris da parte da China: pensar que era comprar o clube, aquilo corria bem e pronto, a imagem em relação à China era alterada. Em terceiro lugar, a nível internacional as coisas também mudaram muito. Depois, há regiões e países onde o futebol tem décadas e décadas e é, como se costuma dizer, o desporto-rei. E há outras regiões do mundo onde não é assim. No caso da China houve essa aposta muito forte nas estruturas, nas escolas, mas tudo isto leva o seu tempo. Leva muito tempo até conseguir criar uma cultura futebolística. Não basta ir buscar os jogadores e treinadores estrangeiros, é preciso esperar e dar tempo para que essa estratégia funcione. Depois, algumas das equipas maiores dentro da Liga chinesa estavam associadas a grupos que entretanto ou entraram em falência, ou foram obrigados a cortar muitas atividades, ou tiveram maior influência do Partido Comunista da China, porque com Xi Jinping há uma maior presença do partido em todas as áreas, incluindo o futebol. Depois também há outro ponto, que é a competição regional.

A nível continental?

Ao lado da China há dois países que jogam muito bem à bola, leia-se a Coreia do Sul e o Japão. É um pouco um conjunto destes aspetos. Houve umas experiências que correram melhor que outras, seja em Itália seja na República Checa. Talvez até hoje o exemplo de maior sucesso seja através da Fosun e do Wolverhampton, em Inglaterra. Mas não tem sido de todo uma aposta bem sucedida.

Falou de sportswashing, corrupção... Ter a perceção de tudo isso em redor do futebol não afeta a sua paixão pelo jogo? Separa as coisas, o jogo é o jogo e o resto é o resto?

Tudo isso. E ter noção de tudo isso ainda me dá mais vontade de ver, assistir e tentar participar, tentando ajudar a que haja a possibilidade de resolução.

Ajudar a descodificar?

Ajudar a descodificar, a desconstruir. Há várias coisas que me incomodam muito em relação ao futebol e uma delas é a ideia da excecionalidade. A ideia de ‘Ai, o futebol está podre’, colocando ao futebol um conjunto de fasquias que não colocamos noutras atividades. Dito de outra maneira: o que está podre e há de errado no futebol deve ser combatido e erradicado. Mas devemos ter esse mesmo grau de exigência em outras áreas das nossas vidas e não apenas no futebol. O que me incomoda é que o futebol é muitas vezes uma espécie de bode expiatório de um conjunto de aspetos que estão errados. Em relação a duas organizações cujo papel ou cuja forma de estar tem de ser claramente melhorada, a UEFA e a FIFA, por exemplo o Miguel Poiares Maduro tem escrito e trabalhado imenso sobre estas questões importantes associadas à governance, ou seja, à gestão e responsabilização. A maior transparência, as boas práticas. Coisas tão simples como, se calhar, quando se atribuem Campeonatos do Mundo, ter em conta práticas laborais, de direitos humanos, ambientais, enfim. Mas eu gosto demasiado de futebol, eu preciso de futebol na minha vida, não imagino a minha vida sem futebol. Portanto, para mim vale a pena lutar por aquilo no qual eu acredito. Na medida do que é possível nós temos de ajudar. Por exemplo, quando fui convidada para fazer parte do grupo de revisão dos estatutos do meu clube, o meu espírito foi exatamente este aspeto da governance, das boas práticas. Todos podemos contribuir e ajudar a que as coisas fiquem melhores, porque obviamente o clube vale a pena, o futebol vale a pena. Precisamos é de quebrar essa lógica de que o futebol é diferente. Não é, não pode ser. Claro que comanda multidões, faz parte das nossas vidas, mas o lado da organização tem de ser regulamentado, tem de ir ao encontro das boas práticas, que justamente se pedem aos jogadores dentro de campo. Se eles não cumprirem, há um árbitro que os penaliza. Penso que esse é o exemplo a seguir em muitas destas organizações.

O subtítulo do seu livro é «O que podemos aprender com o futebol». Consegue resumir em algumas ideias o que podemos então aprender com o futebol?

Conseguimos aprender com o futebol a história dos países. Por exemplo, se eu quero perceber o que tem sido a história de Itália e o modo como Itália se tornou um país unificado apenas na segunda metade do século XIX e dentro do qual há uma heterogeneidade riquíssima, histórias plurisseculares e rivalidades tremendas, basta-me assistir a um jogo entre o Nápoles e a Juventus, para perceber o que é isso de um confronto entre o Norte mais rico, mais industrializado, mais hegemónico, e aquela ideia do mezzogiorno, do Sul…

Que não faz nada…

Alegadamente, exatamente. Ou perceber a tensão imensa entre as equipas de Roma, às quais Mussolini deu cunhos importantes para ter uma espécie de equipas da capital, no seu registo fascista. Seja a Roma, que surge de três clubes que foram fundidos para fazer um clube que pudesse dar luta àqueles clubes do Norte que na altura jogavam muito melhor futebol - o Inter, o Milan, o Torino e a Juventus -, seja a Lazio, à qual ele depois deu evidentemente um cunho fascista. E ainda hoje há claques dentro destes dois clubes que infelizmente mantêm esse registo.

Porque é algo que também existe se calhar ainda na sociedade italiana, não?

Pois. O meu ponto é que muitas vezes o futebol é tratado como o bode expiatório de tudo, quando infelizmente nesses aspetos acaba por ser uma montra do que acontece na sociedade. Não podemos é esquecer-nos de olhar para o problema e tentar confrontá-lo no seu todo. Continuando. Aprendemos com futebol a assistir a um Barcelona-Real Madrid. Aquilo não é apenas um jogo de futebol, é um jogo de muitas coisas. Ou assistir a um jogo entre o Liverpool ou o ManUnited e uma equipa de Londres. Dá sempre gozo aquela derrota, no sentido de ser a derrota dos clubes de Londres, da capital… Portanto, o futebol permite-nos conhecer melhor a história dos países. Em segundo lugar, a liderança e a estratégia. São duas palavras que usamos muito e o futebol dá-nos lições, permite-nos aprender muito. Estamos a falar de um desporto no qual os craques têm 10, 15 anos de carreira. E nesses 15 anos têm de ser tomadas um conjunto de decisões extremamente difíceis. Essas opções, a forma como se está em campo, como se relacionam com o público, são extremamente difíceis de gerir. Por exemplo, já se percebeu quem é para mim o maior de todos...

O Messi?

O Messi. Para mim não há volta a dar, é o que é. A pressão sentida nos ombros daquele jogador durante tanto tempo para que a Argentina voltasse a ser campeã do mundo, do ponto de vista psicológico, é de uma brutalidade tremenda. Da mesma maneira que é sempre difícil, em todas as nossas profissões, saber sair. Sair no auge. Ou ser aquilo a que os italianos chamam um jogador-bandeira, um jogador que nunca conheceu outro clube. Isso hoje é muito difícil, mas há exceções, e isso também é uma decisão de carreira. E depois a exigência, a devassa a que são sujeitos. Os holofotes e os três milhões de interpretações sobre isto e aquilo.

E o que é que isso nos ensina?

Em termos de liderança, em termos de estratégia, como gerir uma carreira, penso que podemos de facto aprender muito. Da mesma forma que há exemplos de países, e Portugal é um deles, que pensaram numa estratégia para tornar o seu futebol melhor, sobretudo do ponto de vista estruturado, e hoje são potências a nível mundial em termos da qualidade dos seus futebolistas. A mesma coisa com os treinadores. Porque é um desporto com tantos holofotes mediáticos, no qual muito se ganha e muito se perde, a estratégia e depois as várias táticas para lá chegar podem ensinar-nos muito. Outra coisa que eu adoro e de que sou consumidora ávida é biografias.

Biografias de jogadores?

Leio-as todas. O Steven Gerrard tem das melhores que li até hoje. Outra foi a do Andrea Pirlo. Nessa, é muito boa a forma por exemplo como ele explica, na altura em que estava na seleção, a questão do racismo e o racismo a que o Balotelli era sujeito. Ele conta como tinham ordens do selecionador para, se acontecessem insultos, o que fosse, irem todos a correr abraçá-lo, estar com ele. E ele explica que nem era preciso, porque eles fariam isso de forma intuitiva. Mas voltando ao Steve Gerrard. É um dos futebolistas que eu mais admiro, também porque tomou a decisão difícil de nunca sair do Liverpool, quando teve convites. É conhecido, o José Mourinho quando estava no Chelsea bem o tentou puxar. Às tantas perguntam-lhe porque é que nunca saiu, porque é que nunca aceitou aqueles convites milionários. E ele disse: ‘It always means more when you win for your people.’ É isto, é este sentimento, a identificação com a nossa gente. Isso não tem preço. É uma decisão entre ficar na história e ganhar não sei quantas Ligas dos Campeões, ou…

Ficar com a sua gente…

Ficar com a sua gente. Hoje em dia é uma decisão que cada vez mais se coloca e em idades cada vez mais novas. Isso também é um bocadinho assustador, devo dizer. Aliás, um dos jogadores do meu clube a que estou completamente rendida é o meu António Silva. Este ano comprei duas camisolas. A do Florentino, eu adoro o Florentino. Médio defensivo é talvez a posição que hoje em dia eu mais gosto de ver. E a do António Silva. O miúdo que fez 19 anos em outubro ou novembro, 19 anos! Que fez jogos na Liga dos Campeões absolutamente notáveis… Tem uma atitude dentro de campo, uma forma de estar e de sentir o clube… O que diz, a forma como fala, é genuinamente glorioso. Sente o clube, é do clube. Dificilmente o vamos conseguir manter no Benfica, nem imagina a pena que eu tenho. Mas tem sido um prazer ver o miúdo jogar da forma como ele joga. E aquela imagem maravilhosa no jogo com o PSG, quando ele impede que o Donnarumma faça um pontapé de baliza no fim do jogo. Lá está. Ainda no outro dia estava à conversa com um amigo e ele dizia que de facto o futebol é extraordinário. É, de facto. Como é que eu, com 50 anos, visto a camisola de um miúdo de 19?

Essa paixão é também um pouco prolongar a infância, continuar a ser um bocadinho criança?

Não é tanto a parte de ser criança. Mas sim, é manter essa relação com o lado da inocência. E sobretudo esta relação que temos com o nosso clube que é: não interessa a idade, não interessa o que fazemos na vida. Zero. No estádio, para mim o momento mais importante é cantar o hino. Eu canto o hino aos berros. Esse é o meu momento. E tenho ao meu lado 60 mil pessoas a pensar o mesmo, pessoas que sei lá o que fazem ou deixam de fazer da vida. Não me interessa, nem a elas. O que interessa é estarmos ali todos até ao fim do jogo a torcer pela nossa equipa. E durante aqueles 90 minutos não há o mundo terrível da guerra horrenda. Não há pandemia… É também essa possibilidade que a forma como eu vivo o meu clube e o futebol abre. E isso para mim vale ouro e é justamente desse lado que eu não quero abdicar. Não abdico, é importante para mim. Em relação ao futebol nacional é essa a minha forma de ver. Em toda a linha. Aquela conversa quando nos dizem: ‘Ai, quando jogamos fora, os clubes portugueses, temos de ser patriotas’. Eu reviro os olhos. Quer dizer, desculpem lá.

Não torce por um clube português lá fora?

O Sporting é-me indiferente. A sério, se ganharem, no problem. Agora, o Porto… Tem de levar sete em todos os jogos. Lamento profundamente. Eu sei, faz sentido, porque assim os clubes portugueses têm mais pontos para o ranking… Eu percebo os argumentos racionais todos. Mas começa o jogo, vejo o azul e branco e já fui. Não há nada a fazer.

«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura, o cinema ou a política enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas.

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