É mais do que evidente porque é que Vladimir Putin concedeu uma entrevista a Tucker Carlson.
Ao longo das mais de duas horas de conversa, o antigo apresentador da Fox News, que se tornou comentador online, absteve-se de desafiar o líder autoritário russo, cuja guerra cruel contra a Ucrânia causou a morte desnecessária de centenas de milhares de pessoas. Quem estava à espera de um confronto duro terá certamente ficado muito desiludido com a entrevista longa e incoerente, em que o próprio Tucker pareceu por vezes perdido.
Em vez de pressionar Putin sobre os muitos tópicos em causa, incluindo acusações credíveis de que a Rússia cometeu crimes de guerra e a detenção do líder da oposição Alexei Navalny, Carlson deu ao autocrata uma via livre para manipular o público e contar a sua versão da história, por mais enganadora que fosse. Por várias vezes, entre a exposição de queixas, Putin parecia ensinar a Carlson os acontecimentos históricos, enquanto o apresentador olhava perplexo. Ou, dito de forma mais clara, Carlson deu a Putin uma plataforma para divulgar a sua propaganda a uma audiência global, com pouco ou nenhum escrutínio das suas afirmações.
"O que se vê ao ver durante os primeiros 45 minutos é que esta é a plataforma do presidente Putin", assinalou Clarissa Ward, correspondente internacional da CNN, acrescentando que ficou "claro desde o início" da entrevista que Carlson "não tinha controlo".
Em certos casos, Carlson até alimentou as narrativas de Putin. Por exemplo, Putin avançou uma teoria absurda de conspiração ao estilo do estado profundo, segundo a qual o governo dos EUA não é controlado pelos seus líderes eleitos, mas por poderes não eleitos da Agência Central de Inteligência que dirigem o presidente como uma marioneta a partir das sombras.
"Por isso, por duas vezes, descreveu presidentes dos EUA que tomam decisões e depois são destituídos pelos chefes das suas agências", afirmou Carlson depois de Putin ter feito a afirmação, resumindo com seriedade a narrativa maliciosa do líder russo. "Então, parece que está a descrever um sistema que não é gerido pelas pessoas que são eleitas, no seu entender?"
"É isso mesmo, é isso mesmo", respondeu Putin.
Carlson não chegou a contestar o absurdo.
Foi uma enorme conquista de propaganda para Putin, que pode - e vai - agora distorcer o encontro para os seus próprios fins. Se houvesse alguma dúvida de que Putin não encarou a entrevista com Carlson como uma grande vitória, um olhar sobre a forma como os seus próprios meios de comunicação estatais cobriram o caso deveria dissipá-la. Imediatamente depois de Carlson ter publicado a conversa online, os porta-vozes de Putin apressaram-se a amplificá-la.
A TASS apresentou a conversa como notícia principal na sua página inicial, ampliando a afirmação de Putin de que a Ucrânia é um "Estado artificial" e dedicando uma secção inteira do seu site à cobertura especial da entrevista. A RT, a emissora de língua inglesa atualmente banida de grande parte do mundo ocidental, transmitiu uma parte significativa da entrevista no seu canal.
"A ENTREVISTA DE VLADIMIR PUTIN GANHA MAIS DE 20 MILHÕES DE VISUALIZADORES NAS PRIMEIRAS DUAS HORAS", vangloriava-se a RT num gráfico apresentado no ecrã.
Nada disto deveria ser uma surpresa.
Embora Carlson já tenha sido um crítico do governo russo, nos últimos anos tem sido muito mais simpático para com o Estado liderado por Putin, arrastando o Partido Republicano com ele. Os comentários de Carlson sobre a guerra brutal da Rússia contra a Ucrânia têm sido tudo menos favoráveis a Kiev, tendo o extremista de direita chegado a comparar Volodymyr Zelensky a um verme no ano passado.
Foi precisamente por isso que Putin concordou em dar a entrevista a Carlson, enquanto os verdadeiros jornalistas, que teriam pressionado o líder russo sobre uma série de questões críticas, tiveram o acesso negado durante anos. Não precisa de acreditar na nossa palavra. O próprio porta-voz de Putin, Dmitry Peskov, disse aos jornalistas esta semana que Carlson foi selecionado porque "tem uma posição diferente do resto" dos meios de comunicação ocidentais.
Houve um momento, no entanto, em que Carlson pressionou suavemente Putin. No final da entrevista, Carlson perguntou a Putin se ele estaria "disposto a libertar" Evan Gershkovich, o repórter do The Wall Street Journal que está preso. Putin recusou-se a libertar Gershkovich imediatamente, ao que Carlson disse: "É um miúdo e talvez tenha infringido a vossa lei de alguma forma, mas não é um super-espião e toda a gente sabe isso".
Embora Carlson tenha defendido a libertação imediata de Gershkovich, o seu comentário não foi bem recebido no The Journal. Ted Mann, um repórter do jornal, escreveu no X que era "vergonhoso da parte de Carlson sugerir que Evan estava a 'quebrar a lei'".
"Não estava", acrescentou Mann. "Carlson sabe disso. Evan é um repórter decente e respeitador da lei que está a ser mantido refém para servir de vantagem geopolítica. Deve ser libertado imediatamente".
O Journal também divulgou um comunicado após a entrevista.
"Evan é um jornalista e o jornalismo não é um crime. Qualquer afirmação em contrário é pura ficção", afirmou o jornal. "Evan foi preso injustamente e foi injustamente detido pela Rússia durante quase um ano por fazer o seu trabalho, e continuamos a exigir a sua libertação imediata".