Sebastian Steudtner recorre à ciência enquanto persegue as maiores ondas do mundo. E até dizem que é o cérebro de um campeonato inglês conquistado pelo Liverpool
Sebastian Steudtner detém o recorde mundial da maior onda alguma vez surfada, com 26,21 metros, o equivalente a um edifício de oito andares.
O recorde foi estabelecido na pitoresca vila piscatória da Nazaré, cuja Praia do Norte tem sido aclamada como o Monte Evereste do surf de ondas gigantes e foi palco de sete das dez maiores ondas alguma vez surfadas.
O alemão é uma figura central numa comunidade internacional de surfistas que se deslocam todos os anos à costa ocidental de Portugal para a temporada, que decorre entre outubro e março.
Mas há um método por detrás da aparente loucura do homem de 37 anos - que é uma espécie de cientista do surf na sua abordagem aos mares mais agitados do mundo.
Na sua equipa, conta com um médico militar e um nadador-salvador, e pensa repetidamente fora da caixa na sua abordagem para apanhar a, até agora mítica, onda de 30 metros.
Steudtner é também uma das figuras centrais do novo livro "Nazaré: Life and Death with the Big Wave Surfers”, um olhar em primeira mão de uma temporada com este grupo arrebatador de atletas.
O seguinte excerto do livro mostra como a abordagem alternativa de Steudtner funciona, desde a entrada num túnel de vento de última geração até inspirar a equipa de futebol da Premier League, o Liverpool, a alcançar glórias passadas.
Quando o Liverpool venceu a Champions, em 2019, o seu treinador, Jürgen Klopp, procurou descobrir novas formas de inspirar e fortalecer os seus jogadores, depois de terem atingido o auge do futebol europeu.
De forma a obter uma vantagem psicológica contra os seus rivais nacionais e evitar que o seu plantel repleto de estrelas se tornasse obsoleto após o triunfo, ele recorreu a Sebastian Steudtner.
No último dia do estágio de pré-temporada da equipa em Evian, no sudeste de França, e a poucos dias do início da época 2019/20, pediu ao compatriota que desse uma palestra à equipa e ensinasse aos jogadores o tipo de técnicas de respiração que o próprio Steudtner utiliza nas suas sessões de treino na piscina e nas grandes ondas, para se manter vivo.
Para além de lhes ensinar exercícios aeróbicos e de controlo da respiração, para quando se está em estado de pânico, também falou sobre o mantra de manter a calma sob pressão.
Klopp e o capitão Jordan Henderson têm, desde então, manifestado reconhecimento ao surfista alemão pelo impacto que a troca de palavras teve nos jogadores. Steudtner, por seu lado, desvaloriza, em particular alguns artigos que sugerem que o surfista foi o cérebro da conquista do título inglês que se seguiu.
Na sessão de piscina naquele dia, a retenção da respiração variou de apenas 10 a 90 segundos, na melhor das hipóteses. No final, houve um duelo direto pela supremacia subaquática entre o defesa Dejan Lovren, que, entretanto, deixou Anfield, e o avançado Mo Salah, com os dois a aproximarem-se da marca dos quatro minutos; Lovren foi o último a vir à superfície.
Foi uma sessão que claramente teve impacto nos presentes. Para o defesa Virgil van Dijk, a mensagem de Steudtner sobre como lidar com a pressão teve um significado especial. O holandês comparou a experiência de Steudtner no surf de ondas gigantes com a relativa trivialidade da sua própria pressão em grandes jogos: "Ele dizia: 'um pequeno erro e a vida pode acabar'".
Tal como Klopp e o Liverpool, Steudtner, na sua busca pelo autoaperfeiçoamento, está sempre à procura de novos caminhos para além do surf, muitas vezes recorrendo a métodos de outros desportos e atletas para alcançar conquistas. O facto de estar lesionado e fora da água deu-lhe ainda mais tempo para o fazer.
O boxe é, provavelmente, o desporto ao qual recorre mais, atraído pelo paralelismo que vê entre esse desporto e o seu - e não apenas pelas pancadas que leva.
"É a mesma coisa - temos de estar preparados para morrer. Essa é a primeira coisa, de certa forma, e não é porque os pugilistas ou surfistas morrem frequentemente, mas é a mentalidade que tens de trazer para o ringue 'vou matar-te ou vais matar-me' - ponto final."
Mas a analogia vai mais além. "É uma dança, uma estratégia. É o desporto mais bonito, não há nada mais técnico do que o boxe, nada. Eu adoro boxe. Se não tivesse entrado no surf, de certeza que teria praticado boxe".
Com a sua altura e peso, estaria provavelmente na categoria de pesos ligeiros. Poderíamos imaginá-lo confortavelmente no ringue, com a sua estrutura musculada, capaz de se aguentar com qualquer adversário.
Os pugilistas russos e mexicanos são os que mais admira - a forma como reduzem as suas vidas aos termos mais básicos, levando-os para um refúgio na floresta ou qualquer outra existência espartana para os mais simplistas campos de treino pré-combate.
Mas o homem de negócios que há em si também admira o pugilista britânico Anthony Joshua, talvez mais pela perspicácia comercial, que levou o britânico a acumular um património líquido na ordem dos 230 milhões de euros e a aumentar, do que pelo que realmente se passa entre as cordas.
As parcerias comerciais de Steudtner são, em parte, de caráter financeiro, mas são também uma relação simbiótica que visam melhorar a parte técnica da sua atividade de surfista. Não fica pedra por virar durante a época; tudo tem como objetivo evoluir, mesmo quando não está na água.
No Centro de Desenvolvimento da Porsche em Weissach, nos arredores de Estugarda, ele ocupa por breves instantes um túnel de vento. Em vez do habitual carro desportivo, está a sua prancha de surf, com ele em cima. O fabricante alemão utiliza a sua ciência de ponta de décadas na indústria automóvel para aperfeiçoar a aerodinâmica da posição do seu corpo, da prancha e do fato de mergulho.
À medida que os cientistas da empresa se debruçam sobre os dados relevantes, verificam que mesmo a mais pequena alteração da posição de Steudtner na prancha melhora a aerodinâmica. É uma abordagem ao desporto que nenhum outro surfista está a fazer atualmente. "É fixe", diz sobre a experiência. "Eles tratam-me como um carro. E é um processo emocionante testar todas estas coisas e ver o que é possível."
Admite que muitas vezes é levado a ultrapassar os limites do que é possível alcançar, mesmo que muitos dos seus testes e ajustes não cheguem a bom porto. "OK, talvez 80 ou mesmo 90% das coisas novas não funcionem - mas tem de ser assim, sempre a tentar. É a mesma coisa com o surf. Estamos sempre a tentar e a maior parte das vezes falhamos."
Para além do túnel de vento da Porsche, está também a trabalhar em parceria com a Siemens num projeto de investigação sobre a biomecânica do surf de ondas gigantes. Trata-se de um estudo que só deverá estar concluído em 2025.
Steudtner reflete se o seu impulso invulgar para ultrapassar os limites, ao contrário dos seus pares, poderá dever-se em parte às suas próprias influências e à sua natureza aventureira enquanto crescia.
Quando era criança, o seu lugar preferido era a quinta dos tios, cujas recordações lhe provocam um sorriso imediato no rosto. Pescavam no rio - ele e a irmã apanhavam os peixes com paus, como um Tom Sawyer e um Huckleberry Finn da vida real - e matavam as suas galinhas para a refeição da noite, cortando-lhes as cabeças. Para um jovem impressionável na altura, era o derradeiro parque de diversões de aventura.
O casal de agricultores teve um grande impacto em Steudtner, que ainda hoje se faz sentir. Lembra-se da altura em que o tio se cortou acidentalmente na mão e o seu sangue jorrava de uma ferida enorme e aberta. O tio sentou-se e coseu-se a si próprio. E o lema do tio, "se é a minha hora, é a minha hora", também se aplica ao sobrinho na escolha da sua profissão.
Para o tio de Steudtner, esse dia chegou aos 64 anos, quando morreu de ataque cardíaco. Entretanto, a tia do surfista continuou a sua vida e aos 70 anos foi-lhe diagnosticado um cancro. Depois de ter sido submetida a um tratamento inicial, disse "que se lixe", desafiou a medicina convencional e seguiu a sua própria abordagem, ultrapassando as expectativas médicas por mais uma década do que o previsível.
A família era, no início do século XX, muito rica, proprietária de uma grande quinta com centenas de hectares num vale pitoresco. O seu bisavô combateu na Primeira Guerra Mundial e o seu avô na Segunda Guerra Mundial, destacado em Itália; a missão do seu batalhão era destruir todos os recursos que restavam na zona e garantir que não ficava nada para o inimigo quando chegasse.
Isso implicava, em grande parte, que matasse animais, uma parte da sua vida que o assombrou sempre e até aos seus últimos, da qual nunca recuperou totalmente, de acordo com a família.
Como diz o neto, "nunca mais foi o mesmo". Para além disso, todos ficaram a saber que ele não era fã de Adolf Hitler. A notícia espalhou-se e, segundo a história da família, alguém o denunciou, o que deixou a família numa lista de deportação. Evitaram esse desfecho quando, pouco tempo depois, a guerra terminou, ele perdoou o acusador e, tal como grande parte do resto da Alemanha, a vida simplesmente seguiu em frente.
As linhas elegantes da nova casa de Steudtner na Nazaré, com vista para o mar, contrastam com a antiga quinta da família. As suas raízes, pelo menos durante grande parte da época, estão aqui em Portugal, embora esta seja apenas a sua casa sazonal.
O período em que esteve lesionado e à margem da competição proporcionou-lhe muitos momentos de reflexão sobre o seu passado e o seu futuro - e, no entanto, ele não faz ideia de quando é que o seu tempo vai acabar, quando é que a vontade de estar nas ondas gigantes vai diminuir.
Por muito que anseie voltar à água, parece fortalecido perante as adversidades - neste momento, o problema é a lesão que se arrasta sem fim à vista. Mas, de certa forma, prefere assim. Estar sempre no topo sem se preocupar com nada, simplesmente não combina com ele.
Para o realçar, recorre a outro paralelo desportivo. "É uma perseguição constante, certo? A certa altura, há que esgotar o desempenho. É natural, acontece a toda a gente. Ganhar, ganhar, ganhar ou cumprir, cumprir, cumprir."
"A não ser que sejas alguém como o Lewis Hamilton, que é tão obcecado, a dada altura acaba. Se eu fosse o Lewis Hamilton, estaria aborrecido. Quão aborrecido é ganhar e ganhar e ganhar? Agora as coisas ficaram mais interessantes para mim."
Apesar dos seus comentários, há semelhanças entre ele e o sete vezes campeão mundial de Fórmula 1. Apenas um ano os separa em idade, passaram uma vida inteira nos seus equipamentos poderosos e ambos criticaram os seus desportos.
No caso de Hamilton, trata-se da falta de diversidade na Fórmula 1 e no desporto automóvel em geral.
Para Steudtner, a segurança continua a ser a sua luta. Mas há também o sentimento partilhado de que, independentemente do que consigam alcançar nas suas respetivas carreiras, nunca será suficiente.
Para ele, é difícil alcançar a satisfação total. O seu lema é: "Não estou satisfeito" - e não apenas devido à atual lesão, o pé partido que pôs fim à sua parceria sazonal com a [colega surfista de ondas gigantes Maya] Gabeira.
Recua no tempo até aos seus primeiros dias na Nazaré, na sua segunda época, e um dos melhores dias de que se lembra. A data não é importante, apenas a lembrança de que ele e Tom Butler surfaram algumas das melhores ondas da sua vida, com o médico militar Axel Haber também no local.
Butler estava em êxtase quando começaram a fazer as malas no final do dia, e Haber estava igualmente feliz pelos seus dois amigos.
Para Steudtner, a sensação foi diferente. Em vez de celebrar a adrenalina desse dia de trabalho na água, analisava o que podia ter feito melhor, os passos que devia ter seguido, como podia a sessão ser melhorada, já a pensar na próxima vez.
De vez em quando isso desgasta-o, mas, acima de tudo, é algo que o faz crescer. "Significa que posso não gostar tanto de algo, mas foi por isso que melhorei bastante. Tenho amigos no mundo dos negócios que dizem a mesma coisa."
A ausência de Butler ainda deixa um vazio na sua vida. Amigos próximos e parceiros de surf de longa data, Steudtner adorava tê-lo de novo ao seu lado. É difícil encontrar uma parceria que inexplicavelmente encaixe - como a que teve com Butler desde o início - mas o regresso do córnico (habitante da Cornualha) não parece iminente para já.
Embora sejam diferentes – para Steudtner, como fogo e gelo - o que leva a discussões de loucos em certas alturas, funcionou. Algumas relações na Nazaré que não se esperam que funcionem, acabam por resultar. "O Tom é e será sempre meu irmão. É genuíno, é honesto", uma faceta que acredita não haver em quantidade suficiente na vila. A lealdade entre eles é e sempre foi inabalável.
E, no entanto, a lealdade nem sempre é a palavra de ordem aqui na Nazaré. Steudtner não hesita em dizer que alguns "apunhalar-se-iam uns aos outros pelas costas", se isso servisse os seus objetivos, e ri do absurdo de tudo isto. Não se trata necessariamente de uma crítica, mas apenas de uma realidade do desporto, e das ondas que todos perseguem, numa eterna busca pela liderança.
"Não é como um campo de basquetebol, onde temos o nosso momento para jogar. Se houver mais surfistas, isso significa menos ondas - e é um desporto ganancioso. Se eu quiser apanhar ondas, não penso em ti porque estás no meu caminho, por isso és naturalmente competitivo. Há todas estas vibrações no surf, do género 'eu estava aqui primeiro'. Tens de ser um caçador e naturalmente competitivo", diz sobre a sua profissão.
"É um mito os surfistas serem todos calmos, fumarem erva e ajudarem-se uns aos outros para alcançarem as ondas. Se apanhares a maior onda, ficas famoso rapidamente. Temos os exemplos do Garrett [McNamara], da Maya [Gabeira], o meu. É o que precisas de fazer ou sintas que tens de fazer."